Thursday 29 September 2022

Hospital de Campanha Ep. 10 - A Crise dos Abusos em Portugal (Parte 2)

"O povo de Deus merece a homenagem da verdade". É este o princípio que deve conduzir a resposta da Igreja à crise dos abusos sexuais, segundo Pedro Gil, especialista em comunicação de crise. Neste episódio, o segundo dedicado ao tema, falamos do problema das falsas acusações e dos dilemas que podem surgir da parte das dioceses quando confrontadas com uma suspeita. Mais uma vez, uma conversa difícil mas muito necessária.



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Wednesday 28 September 2022

A Pobreza da Riqueza

Pe. Paul Scalia

De quem é que devemos ter mais pena nesta parábola de Jesus, do homem rico ou de Lázaro? Naturalmente o nosso coração inclina-se mais para Lázaro, o homem pobre que jazia ao portão, ansioso por migalhas, mas a quem até os cães vinham lamber as feridas (um detalhe que os amantes de cães dos nossos dias podem achar querido, mas que para os judeus na antiguidade não tinha o mesmo encanto). Na verdade, é do homem rico que devemos ter mais compaixão, não só porque é muito pior fazer o mal do que sofrê-lo, mas também por causa daquilo em que o seu pecado o transformou. Assim, somos chamados a reflectir o triste estado do homem rico e o pecado que o conduziu a tal.

Notem bem a descrição curta, mas esclarecedora, do homem rico: “vestia-se de púrpura e de linho finíssimo, e todos os dias banqueteava-se e regalava-se”. Fala-se aqui da sua roupa luxuosa e das ricas comidas, mas não de amigos ou convidados. Mais ninguém é referido. Ele não está a ter festas ou jantares. Nem sequer está a esbanjar a sua fortuna numa vida de promiscuidade, como o filho pródigo. Não, é só ele, mesmo. Há algo de solitário e de isolado na sua riqueza.

O estado lastimável do homem rico é traduzido para a vida eterna. De facto, o seu destino é mais revelador que punitivo. Está isolado e só no inferno porque tinha feito por isso no mundo. Lázaro, por outro lado, está no regaço de Abraão (uma tradução melhor que “junto de”). Está em comunhão com outro. O homem rico está desprovido dessa comunhão por causa da sua avareza (e não apenas como castigo por ela). Viveu e morreu isolado dos outros e por isso entrou no isolamento eterno.

Este isolamento do homem rico não nos é estranho. Quando Ebenezer Scrooge é convidado a dar esmola para ajudar os pobres responde: “quero que me deixem em paz”. A sua afeição pelo dinheiro faz com que despreze não só a generosidade, mas também a companhia. Do mesmo modo Gollum, no “Senhor dos Anéis”, está tão obcecado pelo anel que, fugindo à companhia dos outros, passa anos na profundidade de uma caverna, sozinho com o seu “precious”.

O forreta é miserável porque está isolado pelas suas posses. Quer tudo só para ele, o que o obriga a estar absolutamente só. A sua ligação à riqueza significa que não se pode ligar a outros. As coisas que mais ama são o que o impedem de amar.

A avareza coloca as posses acima das pessoas. Pela sua própria natureza, isola-nos uns dos outros. Habituamo-nos a possuir e a usar, duas coisas que não são compatíveis com relações humanas autênticas. O homem avarento pode ter pessoas que o ajudam a gerir o seu dinheiro, ou a ganhar mais, mas isso só comprova a teoria. Essas pessoas não são amadas, são usadas.

Não existem pecados inteiramente pessoais. Há sempre uma dimensão social no pecado, porque envolve sempre um virar-se para dentro, e por isso para longe dos outros. Como disse São João Paulo II, “o mistério do pecado é formado por esta dupla ferida, que o pecador abre no seu próprio seio e na relação com o próximo. Por isso, pode falar-se de pecado pessoal e social: todo o pecado sob um aspecto é pessoal, e todo o pecado sob um outro aspecto é social, enquanto e porque tem também consequências sociais.” (Reconciliatio et Penitenza).

No caso do homem rico a repercussão social é a sua incapacidade de ver Lázaro. Reparem que nunca se diz na parábola que o homem rico roubou de Lázaro, ou que era de alguma forma a causa da sua pobreza. Não o pontapeava ao entrar ou ao sair de casa. Mas a questão é precisamente essa. Não é que ele não se interesse por Lázaro, o problema é que ele nem dá pela sua existência. Ele não detesta Lázaro, simplesmente não repara nele.

Vemos assim que a avareza produz uma indiferença ao sofrimento do outro. “Ai daqueles que vivem comodamente em Sião”, diz o profeta Amós, (Am. 6, 1 e 4-7). Ele associa esse comodismo à riqueza. Afeta todos os que se encontram “deitados em leitos de marfim, estendidos em sofás, comem os cordeiros do rebanho e os novilhos do estábulo. Deliram ao som da harpa, e, como David, inventam para si instrumentos de música; bebem o vinho em grandes copos, perfumam-se com óleos preciosos”.

O vício da avareza isola o avarento. Mas ao fazê-lo também priva os pobres da atenção de que precisam para a sua subsistência.

Riqueza e isolamento. Estas duas características da nossa cultura estão relacionadas entre si. Quanto mais temos, mais isolados nos tornamos e menos notamos ou nos interessamos pelos outros. Os confinamentos durante a pandemia foram pensados e impostos pelos ricos, a chamada “geração laptop”, que se podia dar ao luxo de se sequestrar e de prosseguir com a sua vida. Existiu uma indiferença cruel aos efeitos que este isolamento teria ao empobrecer ainda mais os pobres. Os sinais que vimos a dizer “estamos todos juntos” eram uma treta.

“Não se pode servir a Deus e a Mamon”, disse Nosso Senhor recentemente no Evangelho. E quatro domingos antes fez um aviso semelhante: “Quem de vós não renuncia a tudo o que possui não pode ser meu discípulo”. Esta ligação à riqueza – por mais pequena que seja – corrói a nossa capacidade de nos preocuparmos com os outros e isola-nos. Tornamo-nos prisioneiros da avareza.

Damos aos pobres porque precisam da nossa ajuda. As suas vidas disso dependem. Mas damos também porque as nossas vidas disso dependem. Quando damos, desprendemo-nos daquilo que nos empobrece e libertamo-nos do que nos isola. Assim tornamo-nos capazes de ver, de conhecer e de amar os outros.


O Pe. Paul Scalia é sacerdote na diocese de Arlington, pároco da Igreja de Saint James em Falls Church e delegado do bispo para o clero. 

(Publicado pela primeira vez no domingo, 25 de Setembro de 2022 em The Catholic Thing

© 2022 The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de reprodução contacte: info@frinstitute.org

The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing.  

 

Tuesday 27 September 2022

Comentário na SIC Notícias sobre nomeação de D. José Tolentino

Esta terça-feira estive na SIC Notícias para falar da recente nomeação do cardeal D. José Tolentino para o Dicastério da Cultura e da Educação.

Podem ler aqui o artigo e ver a entrevista. 


Brought to you by SIC Notícias

Monday 26 September 2022

Hospital de Campanha Ep. 9 - A Crise dos Abusos em Portugal

A Igreja portuguesa tem estado a lidar bem com a crise de abusos sexuais? 

De volta de férias, depois de um verão quente marcado pela revelação de casos de abusos na Igreja portuguesa, quisemos sentar-nos com Pedro Gil, especialista em comunicação de crise, que partilhou uma perspectiva verdadeiramente humana centrada na vítima e na restauração da confiança, e na fé em Deus e na Sua Igreja.

Esta é uma conversa difícil, mas necessária. A crise dos abusos é uma ferida aberta que deve ser exposta ao sol para curar, e não deixada no escuro para infectar. 

Sendo um tema tão importante, gravámos não um, mas dois episódios com o Pedro Gil. O próximo irá para o ar ainda esta semana, se Deus quiser.


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Thursday 22 September 2022

Rapto nos Camarões e hipersensibilidade no Reino Unido

Depois da Nigéria, agora os Camarões. Num só ataque foi incendiada uma igreja e raptados cinco padres, uma freira, dois catequistas e uma leiga. Neste caso o conflito nem é religioso, a Igreja vê-se apanhada entre os militantes que querem a independência da zona anglófona e o exército do governo maioritariamente francófono.

A Igreja quer ser parte da solução para o conflito em Moçambique. Recorde-se que há pouco tempo foi atacada uma missão católica e uma freira assassinada.

A Igreja no Paquistão avisa que os próximos tempos podem ser de fome e epidemias, devido às terríveis cheias que assolaram o país. Queixam-se ainda de discriminação aos cristãos na distribuição de ajuda humanitária.

Claro que o grande evento da semana foi o enterro da Rainha Isabel II. Nos dias depois da sua morte houve polémica porque algumas pessoas foram detidas por se manifestarem contra a Monarquia. Neste texto explico porque é que isso é mau, independentemente de concordarmos, mas que é apenas parte de um problema maior, que também afecta a liberdade religiosa.

Há dias saiu mais uma reportagem sobre um caso de abusos, neste caso na Diocese de Braga. O caso já está aqui, onde encontram links para os artigos originais. Aproveito para avisar que a questão dos abusos será tema do próximo episódio do podcast Hospital de Campanha, que deve ser publicado no início da próxima semana. Fiquem atentos, porque vai mesmo valer a pena.

Somos todos idólatras? Até certo ponto sim, considera o autor do mais recente artigo do The Catholic Thing em português. Na verdade, sempre que damos prioridade a nós mesmos do que a Deus estamos a cair na autolatria, argumenta, de forma convincente.

Por fim, foram acrescentadas várias declarações de líderes religiosos sobre a Ucrânia ao artigo no blog. Entre outros, temos o Patriarca Cirilo de Moscovo, que numa altura em que a Rússia anunciou a mobilização de 300 mil homens para servirem de carne para canhão na Ucrânia continua a culpar inimigos imaginários por dividirem o que ainda pensa serem “povos irmãos”. 

Wednesday 21 September 2022

Idolatria Escondida (com o rabo de fora)

As palavras têm sempre imagens associadas. O que é que vos vem à cabeça quando pensam na palavra “idolatria?” Charlton Heston a despedaçar um bezerro de ouro com os Dez Mandamentos? Russell Crowe a carregar pequenas figuras de barro na prisão do gladiador? Indiana Jones a substituir uma cabeça em ouro por um saco de areia?

Talvez mais umas coisas, caso tenhamos andado na catequese. Ainda assim, o nosso “deus” é o nosso “objecto de suprema preocupação”, segundo o existencialista protestante Paul Tillich. E sabemos que o dinheiro, o prazer, o sucesso, ou o poder podem transformar-se em deuses quando se tornam uma preocupação maior do que qualquer outra coisa nas nossas vidas.

Duvido que muitos de nós admitiríamos ser idolatras. “Nem tanto ao mar, nem tanto à terra”, diríamos. “Não há qualquer mal em procurar estes bens, desde que não abandonemos a crença em Deus.” Justificamos as nossas buscas com a desculpa de que temos Deus à mistura.

Mas será que a crença em Deus nos livra da idolatria? Não será antes uma questão de justiça litúrgica? Afinal quem é que merece o nosso louvor?

A religião é uma virtude porque dá a Deus o que é de Deus. Quando nos perguntam a quem devemos “latria” (a adoração suprema), a resposta justa é de que apenas devemos adorar o não-criado, e nunca a criatura.

Mas há algo mais grave – e talvez mais comum – do que prestar culto a uma imagem (eidolon-latria). Trata-se de adorar-nos a nós mesmos: auto-latria. A autolatria é mais secreta e mais grave do que a idolatria porque o falso deus habita em nós. Somos nós.

Muitas são as personalidades da tradição que atestam isto.

A abadessa beneditina Cécile Bruvère escreveu que “A acreditar no apóstolo, a idolatria não está confinada à adoração de falsos deuses. Podemos erguer em nós mesmos muitos ídolos, e cegamente lhes oferecer sacrifícios” (Vida Espiritual e Oração).

Esta doi. Posso excluir-me presunçosamente da idolatria externa dos terríveis pecadores que me rodeiam, mas devo recordar-me que “em todos os momentos da vida existe uma idolatria interior”, como escreve François Fénelon. “Tudo o que amamos fora, amamos unicamente por nós” (Perfeição Cristã).

Tanto a crença em Deus como o amor por Deus devem manifestar-se como obediência a Deus. É por isso que os autores espirituais referem as palavras de Samuel a Saúl, quando disse: “A rebelião é tão culpável quanto a superstição; a desobediência é como o pecado de idolatria” (I Samuel, 15). Um dos mestres do asceticismo, Giovanni Battista Scaramelli S.J., explica o que Samuel queria dizer: “A razão é que pela desobediência colocamos a nossa opinião e a nossa vontade própria acima da vontade de Deus que nos é revelada pela sagrada obediência”.

A idolatria é semelhante à desobediência uma vez que no caso daquela adoramos um ídolo de madeira ou de pedra em vez do único verdadeiro Deus, o único a quem é devido o culto e nesta desviamo-nos da verdadeira regra para seguir uma enganadora, que é a dos nossos próprios juízos e dos ditames do mundo. A falsa adoração e o falso juízo estão relacionados. A adoração correcta e a rectidão também estão ligadas.

A vontade de Deus deve ser atendida liturgicamente, isto é, com adoração.

Esta idolatria escondida (isto é, a autolatria) pode andar alegremente de mão dada com a religiosidade, porque a vontade própria e o amor-próprio disfarçam-se até dentro de actos religiosos e de virtude. O autólatro até pratica a religião para se satisfazer a si mesmo! Finge amar a Deus, mas nunca ao ponto da abnegação própria.

Fénelon descreve desta forma essa situação: “Fingem amá-lo sob, mas desde que isso não diminua o amor-próprio cego que depois se transforma em idolatria e que, em vez de se referir a Deus como o Fim para o qual fomos criados, procura arrastá-lo ao seu próprio nível, usando-o como algo que ajuda e conforta quando a criatura falha.”

O meu professor Aidan Kavanagh costumava definir a liturgia como “fazer o mundo como o mundo deve ser feito”. O oposto disto é a mundanidade, que trata o mundo e as acções no mundo sem referência a Deus.

A mundanidade é um estado antilitúrgico: é latria mal-direccionada. É auto-adoração, a idolatria mais secreta de todas. Por isso é que Frederick William Faber descreve o homem mundano como aquele que vive como se nunca tivesse de “prestar contas de si mesmo a um poder maior” (Criador e Criatura).

Onde é que pretendo chegar?

A descoberta desta idolatria secreta não traz Deus para a praça pública? Não introduz no espaço secular uma preocupação com o sagrado? O crime da idolatria não é cometido apenas quando escolhemos o templo em que vamos prestar culto, é cometido sempre que a vontade própria se sobrepõe à vontade divina.

A autolatria acontece quando elevamos a nossa própria opinião e vontade acima da vontade de Deus. Em relação a quê? Não apenas nas questões religiosas (embora exista aí muita autolatria também), mas nas coisas do mundo.

Como é que podemos ajuizar de forma recta assuntos como política, normas sociais, sexo, género, família, a vida intrauterina, o estranho, o criminoso e a vítima se colocámos a nossa vontade acima da de Deus? São João Eudes diz que “o orgulho leva o pecador a fazer de si mesmo um ídolo, e a colocar-se no lugar de Deus, uma vez que quando estão em causa a sua satisfação, vontade e desejos, prefere-se a si do que a Deus” (Meditações).

Os nossos interesses, satisfação, vontade e desejos estão sempre em causa. O problema espiritual do orgulho mete-se em tudo, não apenas no contexto religioso. A quem vamos prestar culto? Vamos escolher-nos a nós em vez de a Deus?

Esta é uma questão espiritual, mas é colocada a partir do coração do mundo. Por isso, os assuntos externos e sociais não estão totalmente separados do conflito interno, espiritual. A Igreja tem uma ou duas coisas a dizer sobre este último.

E tem toda a alegria em partilhar a sua experiência e sabedoria com todas as sociedades em que se encontra.


David W. Fagerberg é professor emérito de teologia litúrgica na Universidade de Notre Dame. O seu mais recente livro é Liturgical Dogmatics.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing no Domingo, 14 de Setembro de 2022)

© 2022 The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de reprodução contacte: info@frinstitute.org

The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing.

Monday 19 September 2022

Detidos por protestar no Reino Unido? O problema não é de agora

Tem levantado alguma polémica o facto de várias pessoas terem sido detidas, ao longo da última semana e meia, por se manifestarem de uma forma ou de outra durante as cerimónias fúnebres da Rainha Isabel II.

Alguns foram detidos depois de gritar ofensas em locais públicos, outros por segurar em cartazes com palavras de ordem contra a Monarquia. Eventualmente os poucos antimonárquicos que optaram por se manifestar fizeram-no em silêncio e ostentando folhas em branco.

Podemos ter as mais variadas opiniões sobre isto. Quer se seja monárquico ou não – e eu sou – podemos achar que é de muito mau gosto aproveitar um momento de profundo pesar e luto nacional para dar voz a essas opiniões em público. Mas também podemos achar que o mau gosto não é necessariamente crime, e que mesmo essa liberdade de expressão deve ser protegida.

Um paralelo interessante chega-nos do outro lado do Atlântico, onde o Supremo Tribunal tem apoiado insistentemente as manifestações absolutamente grotescas dos membros da Igreja Baptista de Westboro que gostam de ir manifestar-se nos funerais de militares americanos mortos em combate, argumentando que todas essas mortes são castigo divino por os EUA terem virado as costas a Deus.

Mas voltando ao Reino Unido, há um ponto muito importante neste debate. É que esta hipersensibilidade das autoridades britânicas não é nova. Vejamos mais alguns exemplos*

  • Em 2002 Harry Hamond, de 69 anos, foi atacado por transeuntes, chegando a ser lançado ao chão, quando mostrou um sinal que criticava a conduta homossexual. Quando a polícia chegou ao local decidiu, contudo, deter Hammond. Acabou por ser condenado a uma multa de 300 libras e a pagar as custas do processo. Perdeu o recurso, e morreu antes de sair o resultado de mais um recurso.
  • Em 2008 o pregador Anthony Rollins foi detido por pregar numa rua em Birmingham e por ter dito que os actos homossexuais são moralmente errados. Acabou por ser libertado e indemnizado.
  • Em 2008 um rapaz de 15 anos foi chamado a uma esquadra por ter participado numa manifestação contra a Igreja da Cientologia, e ter ostentado um cartaz a dizer “a Cientologia não é uma religião, é uma seita”. O caso acabou por ser arquivado.
  • Em 2010 Dale McAlpine estava a pregar na rua quando foi abordado por um agente da polícia que se identificou como homossexual. Enquanto os dois conversavam, em privado, o pregador disse que “a Bíblia diz que a homossexualidade é pecado”. Foi detido por outros três polícias fardados e passou sete horas numa cela. Mais tarde ganhou um processo contra a polícia por estes factos.
  • Em 2011 o adepto do Glasgow Rangers Stephen Birrell foi condenado a oito meses de prisão por ter feito comentários ofensivos a adeptos do Celtic, a católicos e ao Papa, numa página do Facebook.
  • Em 2014 o eurodeputado Paul Weston foi detido por citar uma passagem de um livro de Winston Churchill em que este critica o Islão. O caso acabou por ser arquivado.
  • Em 2014 Tony Miano foi detido por criticar publicamente o “pecado sexual”, incluindo o adultério, a promiscuidade e a prática homossexual”. Passou uma noite na esquadra depois de uma mulher ter feito queixa dele. Uma vez que tudo tinha sido gravado, foi possível, porém, provar que as acusações da queixosa eram infundadas e foi libertado.
  • Em 2014 outro pregador de rua, John Craven, foi abordado por dois adolescentes que lhe pediram a opinião sobre a homossexualidade. Ele citou a Bíblia, ressalvando que “Deus odeia o pecado, mas ama o pecador.” Todavia, os rapazes queixaram-se a um polícia, dizendo que tinham-se sentido ofendidos pelas palavras do pregador, que foi então detido durante 19 horas, 15 das quais sem comer e sem poder tomar medicamentos. Mais tarde foi indemnizado.
  • E, por fim, em 2021 aseptuagenária Rosa Lalor foi detida e multada por estar a rezar o terço diante de uma clínica de aborto em Liverpool. Recorreu da multa e ganhou.

É certo que esta questão não se coloca só no Reino Unido, existe em vários outros países, com uma preponderância para o norte da Europa, mas agora é do Reino Unido que estamos a falar.

Aquilo a que temos vindo a assistir é o fruto de uma cultura que começou a interiorizar a ideia de que ferir os sentimentos de outra pessoa deve ser tratado como um crime. O problema é que quando essa caixa de Pandora se abre, as consequências são imprevisíveis. Mais valia, se calhar, voltarmos a perceber que o debate público nem sempre é bonito, e que para nós termos liberdade de expressão, os idiotas que só dizem porcaria quando abrem a boca também a devem ter. Até porque, sei-o bem, para muitos deles o idiota sou eu.

*Todos estes casos são retirados do livro “Censored” de Paul Coleman, com a excepção do último, que é posterior à publicação da obra

Friday 16 September 2022

Papa no Cazaquistão, entre sincretismos, guerras regionais e amuos

O Papa está no Cazaquistão. Esta é uma viagem importante por uma série de razões. Neste texto de análise falo do equilíbrio difícil que é para um Papa participar num encontro inter-religioso, sem cair em sincretismos e relativismos; da importância de o Papa falar de paz naquela região em específico, e por fim de como esta viagem afecta as relações entre a Igreja Católica e a Igreja Ortodoxa Russa.

Ainda sobre este assunto, recomendo a entrevista do principal bispo do Cazaquistão, que considera que o encontro em que o Papa participa tem as suas raízes nos encontros de Assis, iniciados pelo Papa João Paulo II.

Quando mandei o mail da semana passada ainda não tinha sido confirmada a morte de Isabel II, de Inglaterra. Hoje partilho convosco os artigos que escrevi para a Rádio Renascença sobre ela, a sua vida e o seu reinado. Estes foram dos últimos trabalhos que fiz para a Renascença antes de sair.

Morreu Isabel II, a Rainha da força tranquila que marcou uma era

Isabel II em números

Isabel II – O “annus horribilis” de 1992

Isabel II – Dez frases que marcaram 70 anos de reinado

Morreu Isabel II. 42 voltas ao mundo e duas visitas a Portugal

Esta quinta-feira termina na Síria uma importante peregrinação que visa recordar os cristãos que morreram durante a infindável guerra civil. Saiba mais sobre o ícone de Nossa Senhora das Dores, Consoladora dos Sírios.

“Quando deres um banquete, convida os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos”.

Há mandamento mais universalmente ignorado pelos cristãos? No artigo desta semana do The Catholic Thing, Michael Pakaluk ajuda a aplicar esta passagem aos nossos dias, com um piscar de olho às Famílias Numerosas!

E recupero ainda um dos artigos do The Catholic Thing publicado durante as férias, que muito gosto me deu traduzir. Elizabeth A. Mitchell escreve sobre uma das mulheres mais impressionantes do Século XX, a Santa Edite Stein. Leiam que vale bem a pena.

Por fim, continuo a coligir as declarações dos líderes religiosos relevantes sobre a guerra na Ucrânia. Com as coisas a piorar para os russos, as declarações do Patriarca de Moscovo parecem cada vez mais desligadas da realidade. Vejam por vocês mesmos. A análise mais detalhada das suas últimas declarações está aqui e aqui. Sugiro darem também uma vista de olhos à leitura feita pelo líder da Igreja Ortodoxa da Ucrânia à história do martírio de São João Baptista, e aqui podem ler a análise às mais recentes declarações de Sviatoslav Shevchuk, líder da Igreja Greco-Católica da Ucrânia.

Thursday 15 September 2022

Francisco a ser Papa no Cazaquistão

O Papa está no Cazaquistão. Engane-se quem pensa que esta é apenas mais uma viagem apostólica, é muito mais que isso. Neste texto pretendo falar brevemente da dificuldade de navegar entre o diálogo religioso e o sincretismo, da importância contextual dos apelos do Papa à paz, e à questão da relação com a Igreja Ortodoxa Russa.

Diálogo sem sincretismo

Francisco está na capital do Cazaquistão, uma ex-república da União Soviética gigante que, curiosamente, tem investido muito em promover o diálogo inter-religioso ao longo das últimas décadas.

Os cristãos são uma minoria de 25% no país, e católicos são apenas 1%, na grande maioria membros de outros grupos étnicos, desde polacos a coreanos. A história da Igreja no país também é curiosa, uma vez que muitos dos católicos descendem de pessoas que foram deportadas para a região durante as perseguições na União Soviética. No Cazaquistão havia 11 campos de concentração, parte do sistema Gulag.

A relação da Igreja Católica com o diálogo inter-religioso é complexa. Durante séculos a atitude era de que esta é a Igreja fundada por Deus, quem quiser pode entrar, mas não há mais nada para discutir. O Concílio Vaticano II cristalizou uma mudança gradual de posição, tanto ao nível ecuménico como de diálogo inter-religioso, e Roma passou a interessar-se no diálogo. Em 1986 o Papa João Paulo II iniciou os encontros inter-religiosos de Assis, para rezar pela paz. Foi muito criticado por isso, com os seus adversários a dizer que os encontros promoviam o sincretismo e o relativismo, mas ele persistiu, tentando sempre deixar claro que juntar pessoas crentes para suplicar a Deus pela paz é diferente de dizer que essas crenças são todas igualmente válidas, ou que as diferenças não interessam.

Estes encontros no Cazaquistão surgem desse mesmo espírito de Assis. Quem o diz é o bispo de Almaty, no Cazaquistão, que é espanhol e foi entrevistado recentemente pela fundação Ajuda à Igreja que Sofre. Mas os críticos não desarmam e continuam a levantar o fantasma do relativismo.

Francisco está, por isso, em terreno difícil no Cazaquistão, mas no seu discurso ao Congresso de Líderes de Religiões Mundiais e Tradicionais não desiludiu e falou precisamente como Papa que é. Encorajou a colaboração inter-religiosa pela paz, condenou a utilização da religião para justificar a guerra e criticou, usando mesmo esse termo, o sincretismo. Foi um bom discurso, pleno de referências locais, que pode ser lido aqui. Deixo-vos com uma das principais citações:

Queridos irmãos e irmãs, avancemos juntos, para que seja cada vez mais amistoso o caminho das religiões. (…) O Altíssimo liberte-nos das sombras da suspeita e da falsidade; conceda-nos cultivar amizades ensolaradas e fraternas, através do diálogo frequente e da sinceridade luminosa das intenções. E desejo agradecer aqui o esforço do Cazaquistão neste ponto: sempre procura unir, sempre procura incentivar o diálogo, sempre procura construir a amizade. Isto é um exemplo que o Cazaquistão dá a todos nós e devemos segui-lo, apoiá-lo. Não procuremos falsos sincretismos conciliatórios – não servem –, mas guardemos as nossas identidades abertas à coragem da alteridade, ao encontro fraterno. Só assim, por este caminho, nos tempos sombrios que vivemos, poderemos irradiar a luz do nosso Criador.

Falar de paz numa região de guerra

É certo que Francisco fala muito de paz, e que tem falado sobretudo muito da guerra na Ucrânia. Podem ver aqui a extensa lista das declarações sobre o assunto que tem feito nos últimos meses, desde que a Rússia invadiu o país vizinho. Mas é preciso ter em conta o contexto em que o faz agora, no Cazaquistão. Aqui Francisco está ao lado da Rússia, na sua esfera de influência, e as suas palavras têm mais peso.

Mas é preciso ter também em conta que não é apenas a na Ucrânia que soam as armas neste momento. Sem sair da zona da ex-União Soviética, temos tido também problemas nos últimos dias, com tiros e mortos, na fronteira entre o Quirguistão e o Tajiquistão e, com uma gravidade muito maior, temos assistido a uma tentativa de invasão da Arménia por parte do Azerbaijão. Este último caso era previsível, infelizmente, e escrevi sobre ele exatamente quando a guerra na Ucrânia começou. Preferia ter-me enganado. Os problemas entre o Azerbaijão e a Arménia são mais graves ainda na medida em que o primeiro é muçulmano e o segundo cristão. O conflito é territorial, não religioso, mas existe sempre o risco agravado de adquirir também uma dimensão religiosa e espalhar-se, por isso, a países vizinhos. Esperemos que não.

É aqui, nesta região unida por um passado de forte perseguição às religiões e que se debate ainda com um pesado legado comunista, que Francisco vem falar de paz. E em boa hora o faz.

Diálogo com os russos

Uma dimensão muito importante desta visita é a do diálogo com a Igreja Ortodoxa da Rússia. Já escrevi e falei várias vezes sobre o período difícil que a Igreja Russa atravessa, travando uma luta pelo poder no interior da comunhão de Igrejas Ortodoxas e ao mesmo tempo tentando sobreviver a uma relação demasiado estreita com o poder político em Moscovo.

O Patriarca Cirilo, de Moscovo, quis afirmar-se como o grande representante da ortodoxia no mundo, em oposição a Bartolomeu de Constantinopla, mas acabou, pela sua proximidade a Vladimir Putin, por se tornar um pária aos olhos do mundo religiosos. Tenho comentado, nas minhas mais recentes análises às suas declarações, que já nem se percebe se as suas palavras são para ser levadas a sério, se são críticas (muito) dissimuladas ao regime de Putin, ou se simplesmente perdeu toda a noção. Só na última semana lamentou o facto de o mundo estar a sofrer por causa dos ditadores que espalham o conflito e elogiou a Rússia por não cometer crimes de guerra, algo que se deve ao facto de ter um historial de líderes ortodoxos crentes. E não nos esqueçamos da vez em que se regozijou no facto de a Rússia, apesar de ser um país muito poderoso, nunca ter atacado ninguém. E sim, disse-o já depois da invasão da Ucrânia.

O facto é que Cirilo está quase totalmente isolado e ninguém parece disposto a falar com ele, excepto o Papa Francisco. Há até quem considere que Francisco está a ser ingénuo quando diz que quer falar com Cirilo, mas o Papa parece entender que por mais que esteja a atravessar, digamos, um mau momento, a Igreja Russa não deixa de ser uma grande denominação cristã e que não se deve desistir, por isso, desse diálogo. Aliás, no seu discurso à chegada ao Cazaquistão disse: “Precisamos de líderes que, a nível internacional, permitam aos povos compreenderem-se e dialogarem, e gerem um novo ‘espírito de Helsínquia’, a vontade de reforçar o multilateralismo, de construir um mundo mais estável e pacífico pensando nas novas gerações. E, para fazer isto, é preciso compreensão, paciência e diálogo com todos. Repito: com todos.”

Mais uma vez, porém, Cirilo perdeu a oportunidade de se agarrar a esta mão estendida. Se tivesse ido ao Cazaquistão, como estava inicialmente combinado, teria conseguido tornar-se o centro do evento e o seu encontro com o Papa Francisco seria o ponto alto do congresso, em termos mediáticos. Mas temendo ser alvo de críticas, refugiou-se novamente no seu palácio de cristal em Moscovo e tornou ainda mais pertinentes as palavras do Papa que muitos acreditam terem sido ditas com ele em mente.

Se o Criador, a quem dedicamos a existência, deu origem à vida humana, como podemos nós – que nos professamos crentes – consentir que a mesma seja destruída? E como podemos pensar que os homens do nosso tempo – muitos dos quais vivem como se Deus não existisse – estejam motivados para se comprometer num diálogo respeitoso e responsável, se as grandes religiões, que constituem a alma de tantas culturas e tradições, não se empenham ativamente pela paz?

Irmãos e irmãs, purifiquemo-nos, pois, da presunção de nos sentir justos e de não ter nada a aprender dos outros; libertemo-nos das conceções redutoras e ruinosas que ofendem o nome de Deus com rigidezes, extremismos e fundamentalismos, e o profanam por meio do ódio, do fanatismo e do terrorismo, desfigurando inclusive a imagem do homem. (…) Nunca justifiquemos a violência. Não permitamos que o sagrado seja instrumentalizado por aquilo que é profano. O sagrado não seja suporte do poder, e o poder não se valha de suportes de sacralidade! Deus é paz, e sempre conduz à paz, nunca à guerra.

Mais uma vez, belas palavras. Haja quem as oiça e as ponha em prática!

Wednesday 14 September 2022

Banquetes e Famílias

Michael Pakaluk

Não sei de qualquer outro mandamento de Cristo que seja tão universalmente desobedecido que aquele que ouvimos recentemente no Evangelho de Domingo: “Quando deres um banquete, convida os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos” (Lc. 14,13).

“Ah, mas a minha paróquia organiza um jantar para os sem-abrigo por altura do Natal, e nós contribuímos com bens enlatados…” Lamento, mas não é isso que diz o Grego na Bíblia. Uma tradução mais literal seria “Sempre que deres um banquete”. Jesus está a estabelecer uma regra geral, não uma coisa que se possa satisfazer apenas de vez em quando. Em todas as ocasiões em que se der um banquete, diz Ele, é isto que deve fazer.

E mais, Ele afirma que só devem ser convidados aqueles que não tenham meios para retribuir (Lc. 14,14). Convidar um ou dois pobres, simbolicamente, não cumpre com a intenção do mandamento.

Eu já participei em milhares de “banquetes” (a palavra “dochē” que Lucas usa abrange todo o tipo de recepções ou mostras de hospitalidade, como encontros informais, cocktails, copos de água, evidentemente, eventos de angariação de fundos, para não falar de encontros de família e jantares festivos). De todas as vezes que os anfitriões eram cristãos, esta regra de Nosso Senhor nunca foi seguida. Um mandamento que devia ser seguido sempre, não é seguido nunca.

Então o que é que se passa aqui? Estas palavras não são para seguir? A passagem é de tal forma hiperbólica que é essencialmente impraticável.

Curiosamente, o próprio ensinamento tornou-se mais claro para mim quando li a “Riqueza das Nações” de Adam Smith. A certa altura ele pergunta “O que é feito dos banquetes? (III. iv). Nos relatos históricos antigos e medievais podemos ler, diz ele, que os homens ricos faziam banquetes quase diariamente. Esta era uma prática comum entre chefes dos Highlands escoceses, diz o autor, mesmo no início do Século XVIII.

Recordo-me de Sir Walter Scott iniciar o “Waverley” precisamente com uma descrição de um banquete desses. “Em Quo Vadis” os banquetes da corte de César são uma grande tentação e, claro, sabemos que João Baptista foi executado por um Herodes em estado de sedução. Mas nas sociedades modernas a prática tinha caído em desuso. Adam Smith explica.

“Num país que não tem comércio exterior nem manufaturas mais aperfeiçoados”, explica Smith, “um grande proprietário de terras, por não ter nada pelo que possa trocar a maior parte da produção de sua terra que vá além do necessário para a manutenção dos agricultores, consome tudo com seus hóspedes na casa senhorial. Se essa produção excedente for suficiente para sustentar 100 ou 1 000 pessoas, só pode utilizá-la para isso e apenas para isso.”

Daí que homens ricos, “desde o soberano até ao mais pequeno barão” sempre tiveram os seus séquitos de apoiantes leais, a quem banqueteavam constantemente. Qualquer excesso para além deste era usado para criar maior dependência entre os agricultores arrendatários. Era assim que os ricos mantinham o seu poder, diz Smith, criando dependência, principalmente através de banquetes.

Aqui Smith está a desenvolver o argumento feito por David Hume de que, curiosamente, o aumento da manufactura e do comércio externo levou à dissolução do poder baronial, uma vez que os ricos podiam agora gastar o seu dinheiro acumulando artefactos luxuosos. É verdade que ao fazê-lo, estavam ainda a “suportar” uma rede de artesãos e de comerciantes que forneciam estes luxos, mas não detinham qualquer poder sobre esta rede, quer por causa da sua dispersão, quer porque o seu próprio contributo para a manutenção desta era relativamente pequeno. Desta forma, a emergência de uma sociedade comercial sustentava a emergência de uma sociedade livre.

Banquete diário de uma família numerosa
Não me preocupa agora avaliar este argumento fascinante. É evidente que aquilo que Smith considera uma liberdade, ou seja, a autonomia dos consumidores e dos produtores, tem aspectos negativos que nos preocupam cada vez mais. Também é verdade que sistemas análogos ao do senhor medieval e o seu séquito de dependentes continuam bem vivos na nossa cultura política actual.

Antes, o que quero realçar é que nas sociedades tradicionais o “banquete” representa o destino dado à riqueza excedentária. Nosso Senhor está a usar a técnica retórica de tomar a parte pelo todo. Descreve um uso de riqueza excedentária, o único que existia na altura, para se referir de forma vívida a qualquer uso de riqueza excedentária.

Assim, o mandamento sobre banquetes é de facto um mandamento sobre a importância de destinar a riqueza excedentária à esmola. E essa, claro, mantém toda a sua validade nas sociedades comerciais.

Cristãos há, porém, que têm conseguido cumprir o mandamento de uma forma próxima do seu significado original. Ocorrem-me Santa Isabel da Hungria e Santa Margarida da Escócia. Estas mulheres trocaram as comitivas das suas cortes pelos mais pobres dos pobres. Em vez de banquetear diariamente centenas de nobres, estas santas tornaram-se conhecidas por montar hospitais junto aos seus palácios e cuidar dos aleijados, dos coxos e dos cegos, antes de qualquer outro.

Mas há outros cristãos que também o fazem, são os pais, especificamente os de famílias numerosas. Refiro-me a famílias numerosas porque é nesses casos que se torna mais evidente o total compromisso de riqueza excedentária e as suas mesas de jantar são o mais próximo, visualmente, de uma corte medieval.

Os seus filhos são como os cegos, isto é, sem educação; certamente que são pobres, uma vez que nem sequer podem possuir bens; aleijados – alguns nem andar sabem – e coxos, isto é, imaturos. Não podem retribuir agora nem, se a sua educação for bem dada, alguma vez o farão, uma vez que a melhor forma que têm de mostrar gratidão é fazer o mesmo, tendo os seus próprios filhos mais tarde.

Devemos rejeitar o falso argumento de que os pais que acolhem filhos apenas o fazem por razões egoístas, para sua própria realização, ou que não fazem mais do que a sua obrigação, uma vez que os geraram, e por isso não têm qualquer mérito. Certamente que estes pais servem o bem comum tendo tantos filhos durante um catastrófico inverno demográfico.

Sim, os pais de famílias numerosas cumprem fielmente, e de forma muito evidente, este mandamento de Nosso Senhor.


Michael Pakaluk, é um académico associado a Academia Pontifícia de São Tomás Aquino e professor da Busch School of Business and Economics, da Catholic University of America. Vive em Hyattsville, com a sua mulher Catherine e os seus oito filhos.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na quarta-feira, 14 de Setembro de 2022)

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Thursday 8 September 2022

Sinodalidades

O processo sinodal em Portugal tem gerado muito debate e controvérsia. Não estamos sós. Penso que em todo o mundo este processo tem gerado alguma confusão e diferenças de opinião. As pessoas de tendência mais conservadora tendem a ver o processo sinodal como um cavalo de Tróia para provocar mudanças nos ensinamentos da Igreja e as pessoas de tendência progressista esperam ver atendidas muitas das suas reivindicações. No meio de tudo isto, prepara-se um cenário perfeito para que todos se desiludam, uns porque o Sínodo não vai suficientemente longe, outros porque não vai longe de mais.

Tenho evitado escrever sobre este assunto, por uma série de razões, mas achei que nesta altura faria sentido escrever um curto texto a dar conta do estado actual do debate em Portugal, e apontando para os diferentes recursos que já existem.

Em primeiro lugar, temos o relatório do processo sinodal em Portugal, que pode ser lido aqui. O relatório é suposto ser um resumo dos diferentes relatórios diocesanos e foi elaborado por uma equipa de trabalho composta por sete pessoas, entre leigos e religiosos, nomeadamente Carmo Rodeia, Diretora do Departamento de Comunicação do Santuário de Fátima; Anabela Sousa, Diretora do Departamento de Comunicação da Diocese de Setúbal; Isabel Figueiredo, Diretora do Secretariado Nacional das Comunicações Sociais da Igreja; Paulo Rocha, Diretor da Agência Ecclesia; Pedro Gil, Diretor do Departamento de Comunicação do Opus Dei; Padre Eduardo Duque, Diretor Nacional da Pastoral do Ensino Superior e Padre Manuel Barbosa, Secretário da CEP.

Diga-se o que se disser sobre o relatório, penso que dificilmente se pode fazer a acusação de este ser um elenco demasiado progressista ou demasiado conservador, muito menos de as pessoas envolvidas não serem sérias.

Há uma nota importante sobre este relatório que deve ser tido em conta. Ele não é o resumo apenas dos relatórios das 21 dioceses portuguesas, mas inclui ainda vários outros documentos que foram enviados por grupos de leigos e religiosos que pelas mais variadas razões não se enquadravam, ou não se sentiram enquadradas nos processos diocesanos. [Esta informação foi-me simpaticamente transmitida no dia 12/9 por um membro da equipa, e acrescentada ao texto no mesmo dia.]

Mal saiu o relatório surgiram críticas de que este não era verdadeiramente representativo da Igreja em Portugal. A primeira reacção foi na forma de uma carta aberta, que pode ser lida aqui. Seguem-se os nomes dos primeiros signatários desta carta, que pode ser assinada por outros através do link acima. Padre Gonçalo Portocarrero de Almada, cronista do Observador e da Voz da Verdade; Mafalda Miranda Barbosa, Professora da Faculdade de Direito de Coimbra; Bernardo Trindade Barros, Advogado e Professor universitário; Gonçalo Figueiredo de Barros, Jurista e Empresário; Luís do Casal Ribeiro Cabral, Médico; Cónego Armando Duarte, Pároco dos Mártires, Lisboa; António Bagão Félix, Economista e Professor universitário; Pedro Borges de Lemos, Advogado; João Paulo Malta, Médico; Aida Franco Nogueira, Advogada; Paulo Otero, Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa; Padre Mário Rui Leal Pedras, Pároco de São Nicolau, Lisboa.

Pouco depois de ter sido publicada esta carta, o Padre Peter Stilwell, ex-diretor da Faculdade de Teologia da Católica, e ex-vice-reitor da mesma universidade, escreveu um artigo publicado no Sete Margens em que revela que também ficou com dúvidas e frustrações em relação ao relatório, mas depois explica porque razão acha a Carta Aberta premeditada e desnecessária. É um artigo interessante que também vale a pena ler. (Full disclosure: o Padre Peter é meu tio e padrinho).

Entretanto surgiu uma outra carta, desta vez assinada por jovens, que também contesta o relatório, nomeadamente o seu “pendor negativista”. Pode ser lida e assinada aqui.

E, finalmente, temos uma outra proposta que me pareceu interessante por ser uma abordagem crítica, mas ao mesmo tempo construtiva. O Padre Duarte da Cunha e o Padre Ricardo Figueiredo juntaram-se, leram todos os relatórios diocesanos e elaboraram um relatório alternativo que consideram ser mais fiel aos textos das diferentes dioceses. Pode ser lido aqui. Contudo, deve ser tido em conta que este relatório alternativo não contempla os muitos outros documentos extra-diocesanos a que a equipa da CEP teve acesso, pelo que naturalmente existirão diferenças significativas.

Penso que estes são recursos suficientes para que os interessados se possam inteirar do tema.

Gostaria aqui de fazer apenas um comentário geral, evitando pronunciar-me sobre os conteúdos dos diferentes documentos.

Em primeiro lugar, devo dizer que apesar de estes documentos representarem alguma divisão na Igreja, o facto de existirem, e de as pessoas se sentirem motivadas para se pronunciar e contribuir, é um sinal positivo. Estamos perante pessoas que não concordam umas com as outras, mas penso que todos os textos são respeitosos e motivados pela vontade de contribuir para o bem da Igreja Portuguesa, no seio da Igreja Universal. O que é isso se não sinodalidade?

Outra coisa que noto, contudo, é um certo centralismo dos textos, que radicam todos da realidade de grandes centros urbanos, nomeadamente Lisboa. Obviamente não conheço todos os subscritores das duas cartas abertas, mas na primeira sei que todos são de Lisboa, ou vivem em Lisboa, excepto uma que vive e trabalha em Coimbra. Obviamente isto em nada invalida os seus argumentos, mas é preciso ter em conta que o relatório é um resumo de todos os relatórios diocesanos, e reflecte por isso a vivência de pessoas desde o Funchal até Bragança, e dificilmente essas vivências, preocupações e propostas se encaixam na realidade conhecida por pessoas que fazem a sua vida eclesial na capital e numa das maiores cidades de Portugal.

O mesmo se aplica, em menor dimensão, à carta aberta dos jovens. Aí temos subscritores de várias dioceses, nomeadamente: Aveiro, Coimbra, Lisboa, Porto, Portalegre-Castelo Branco, Évora, Leiria-Fátima, Funchal, Braga e Viana do Castelo. Nota-se um esforço louvável de inclusividade e maior representatividade, mas ainda assim são apenas metade das dioceses territoriais de Portugal.

Tudo isto torna ainda mais interessante o “relatório alternativo” apresentado pelos padres Duarte e Ricardo, pois esse parte directamente dos textos dos relatórios diocesanos.

Por fim, é possível que neste resumo me tenha esquecido de algum outro recurso que ajude a contribuir para esta discussão/processo sinodal. Se sim, agradeço que me informem, que terei todo o gosto em acrescentar.


Actualização: No dia 7 de Novembro acrescentei o texto de Leopoldina Reis Simões

Actualização: No dia 13 a CEP respondeu a críticas sobre o relatório.

Actualização: No dia 12 de Setembro acrescentei mais informação aos pontos sobre o relatório da CEP e o relatório alternativo do Pe Duarte da Cunha. 

Outros textos

Aqui outro texto de opinião que vale a pena ler, de José Maria Seabra Duque

Relatório sinodal: desafio a discernir e praticar juntosa renovação eclesial - Pe. Jorge Guarda

O que faremos deste texto? - Jorge Wemans

Conservadores e progressistas na fronteira do diálogo - Sofia Távora

O Relatório de Portugal, o caminho da sinodalidade - Maria Carlos Ramos

Ainda o Sínodo - Pe. Alexandre Palma

Sínodo sobre sinodalidade: Ninguém disse que seria fácil - Leopoldina Reis Simões



Wednesday 7 September 2022

Aborto, Trabalho e Vida

John M. Grondelski
Numa altura em que os católicos nos EUA assinalam o Dia do Trabalhador [5 de Setembro], somos desafiados a pensar sobre dois aspectos fundamentais da Doutrina Social Católica: o direito à vida, o direito ao trabalho, e a intersecção dos dois.

Até agra o debate sobre o aborto tem sido sobretudo político, em termos da sua legalidade nas legislaturas e – ao longo de quase 50 anos – nos tribunais. Depois de Dobbs, porém, devemos esperar que parte do debate passe do campo político para o económico, com alguns defensores do aborto a recorrer a incentivos financeiros para tentar inclinar a mesa de jogo numa sociedade capitalista que, ocasionalmente, gosta de falar de “justiça social”.

Desde que a decisão do caso Dobbs reverteu o direito constitucional ao aborto temos visto grandes empresas a atropelarem-se para anunciar que terão todo o gosto em financiar os abortos dos seus funcionários, ao ponto de pagar viagens para estados que permitem matar os nascituros, caso o aborto seja ilegal nos estados em que se encontram. Várias grandes corporações pressionaram legislaturas estaduais para não contemplarem adoptar leis pro-vida. O Governador de Nova Jérsia, Phil Murphy, e o da Califórnia, Gavin Newsom, têm estado a promover os seus estados como destinos para empresas, não por causa da sua pesada carga fiscal, mas porque ambos codificaram o aborto a pedido, até ao nascimento.

Um argumento tradicional dos defensores do aborto é que é essencial que este seja legal, e a pedido, porque sem “controlo e cuidados de saúde reprodutiva” as mulheres encontram-se em inerente desvantagem económica. Claro que essa afirmação colide diretamente com o mito do aborto como um “cuidado de saúde”. Mas com a saúde a ser definida, cada vez mais, como algo tão vago e sujeito a manipulação como “saúde financeira”, os alegados “benefícios” do aborto podem ser racionalizados quase de qualquer maneira.

Claro que ninguém aponta um foco à verdade crua e obscenamente nua de que é substancialmente mais barato para uma empresa abortar bebés do que fornecer cuidados de saúde maternos e infantis, bem como suportar licenças de maternidade, de doença, de acompanhamento escolar, etc., bem como as mudanças de horário que se seguem ao parto.

As empresas que financiam abortos insistem, claro, que essas suas políticas se devem ao seu “compromisso para com o direito a escolher”, sem querer admitir que a sua própria saúde financeira vê com melhores olhos certas “escolhas” em detrimento de outras.

É de suspeitar que as mesmas empresas que estão a comprometer-se tão “generosamente” com a interrupção de gravidezes (isto é, a matança de bebés no útero) protestariam fortemente caso fossem chamadas a cobrir cuidados maternais com a mesma liberalidade, para criar um ambiente onde fosse possível fazer “escolhas” verdadeiramente livres.

Daí que seja fundamental que neste momento ambos os nossos principais partidos políticos sejam desafiados a criar políticas económicas verdadeiramente amigas das famílias e das crianças.

A justiça social não se alcança sem a protecção dos direitos individuais e sociais mais básicos, isto é, o direito à vida. Independentemente das diferentes filosofias políticas, quase todos os pensadores concordam que é um absoluto sine qua non que uma sociedade proteja os direitos mais básicos dos seus membros.

Esse primeiro princípio implica dois corolários: que a sociedade identifique quem são os seus membros (sem fingir um agnosticismo epistemológico sobre o estatuto dos nascituros ou outros em estado de dependência) e que compreenda que direitos é que são “básicos”. Mesmo um puro materialista como era Thomas Hobbes admite que não existe um direito mais básico sobre o qual tudo o resto assenta do que a existência. Pode-se até dizer, como os nossos bispos americanos fizeram, que este é preeminente.

Logo, os católicos devem tomar a dianteira nesta discussão sobre justiça social. Revertida a decisão de Roe v. Wade, já não existem obstáculos constitucionais à reformulação da discussão. Mas a narrativa alternativa precisa de ser articulada de novo numa sociedade que não a escuta claramente há cerca de 50 anos.

Esquecemo-nos de liberais como Mark Hatfield, William Proxmire e Harold Hughes, que eram pro-vida precisamente porque reconheciam, correctamente, que a vida intrauterina era uma questão de direitos civis, provavelmente a maior do nosso tempo. 

A reformulação deste debate implica perguntar porque é que o aborto é visto como factor essencial para a ascensão económica das mulheres. Será porque no mundo económico as mulheres não conseguiam avançar pelo facto de não serem homens? Isto é, porque engravidavam, porque tinham filhos e os queriam criar, e porque queriam carreiras que se adaptavam a essa realidade, em vez de esperar que essas realidades se adaptassem aos seus empregos?

Será que a actual “generosidade” das empresas, dispostas a pagar por abortos, é apenas a expressão de uma visão empresarial que entende as suas trabalhadoras como “machos malparidos?”

A década que se segue ao fim da escola, seja o ensino secundário ou superior, costuma ser marcado por um “deixar para trás as coisas de criança” (I Cor 13,11) e pela transição para uma vida de permanência. Isso costumava implicar arranjar um emprego, mudar-se para o seu próprio espaço, casar e ter filhos.

A nossa configuração económica actual – incluindo as empresas financiadoras de abortos – está a minar o equilíbrio entre a vida e o trabalho.

Salários mínimos e expectativas máximas são uma mistura que torna cada vez mais difícil atingir a independência económica, levando ao adiamento do casamento e da paternidade. Não é de admirar que muitas destas mesmas empresas “woke” estão dispostas a pagar às suas trabalhadoras para congelar óvulos e adiar a gravidez, como se fosse a mesma coisa ter filhos aos 45 ou aos 25.

O professor Henry Higgens torna-se, assim, um modelo para qualquer director de Recursos Humanos de uma grande empresa moderna quando pergunta, em My Fair Lady, “porque é que uma mulher não pode ser mais como um homem?”


John Grondelski (Ph.D., Fordham) foi reitor da Faculdade de Teologia da Seton Hall University, South Orange, New Jersey.  As opiniões expressas neste texto são apenas suas.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na Quarta-feira, 7 de Setembro de 2022)

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