Monday 30 May 2022

Igrejas ortodoxas na Ucrânia - Em que ficamos?

Metropolita Onofre
Vamos lá então tentar perceber o que se está a passar nas igrejas na Ucrânia.

A Igreja Ortodoxa Ucraniana do Patriarcado de Moscovo (vamos manter este termo, para simplificar), fez um Concílio "surpresa" em que disse que não concorda com a posição do Patriarca de Moscovo sobre a guerra, e que mudou os seus estatutos para reflectir a sua independência e autonomia.

Isto é uma ruptura total com Moscovo? Parece, mas nem tudo o que parece é. Pode não ser, de facto... Faltou usar o termo autocefalia, o que não é por acaso.

Por outro lado, na sua primeira celebração depois deste concílio, o metropolita dessa Igreja, Onofre, deixou de comemorar apenas o Patriarca de Moscovo e passou a comemorar e referir todos os líderes de Igrejas Ortodoxas autocéfalas. Ora, isso é algo reservado a líderes de igrejas autocéfalas, por isso parece que na prática ele quer impor-se como tal. Já lá vamos…

Entretanto, nas outras resoluções do Concílio a Igreja leal a Moscovo bateu na Igreja Ortodoxa da Ucrânia autocéfala e no Patriarcado de Constantinopla, chegando a sugerir que a acção desta última ao reconhecer a autocefalia da Igreja liderada pelo Metropolita Epifânio é a razão da guerra. Interessantemente, na tal celebração Onofre não comemorou os líderes das Igrejas que reconheceram explicitamente a autocefalia da Igreja liderada por Epifânio, seguindo assim a linha de Moscovo.

Mas nas mesmas resoluções, depois de bater forte e feio nessa Igreja e de dizer que ele nem é verdadeiramente uma igreja, Onofre estende uma mão para diálogo.

O que é que ele pretende? Não é claro, mas parece que está a tentar vencer em todos os tabuleiros. Quer agradar aos ucranianos rompendo com Moscovo, mas quer manter-se líder de uma Igreja autocéfala em território ucraniano, apesar de já lá existir uma, reconhecida por Constantinopla. O problema para Onofre é que tudo indica que vai ficar isolado. O Governo ucraniano já tem uma Igreja autocéfala com a qual colabora, não tem qualquer interesse em promover outra, sobretudo uma manchada por ligação próxima a Moscovo; os países ortodoxos que reconheceram a Igreja liderada por Epifânio certamente não vão dar qualquer crédito a uma estrutura paralela e as que não reconheceram, por lealdade a Moscovo, não têm por isso qualquer razão para reconhecer a de Onofre como autocéfala.

E Moscovo? Moscovo claro que não aceita. Aliás, a resposta de Moscovo, que convocou um Sínodo de emergência para analisar a questão, é hilariante e pode ser resumida da seguinte forma.

1)   
 
Não se passou nada na Ucrânia, a Igreja apenas reafirmou o status quo, que é de independência subjugada a Moscovo.

2)     Compreendemos que a Igreja Ortodoxa da Ucrânia do Patriarcado de Moscovo tenha feito o que fez (que na verdade não foi nada… ver o 1º ponto), porque está sobre enorme pressão de nazis, cismáticos e os media internacionais. Têm por isso a nossa solidariedade e compreensão pelo que fizeram, que não foi nada.

3)      As decisões que foram tomadas pela Igreja Ortodoxa da Ucrânia, que já afirmámos serem apenas a reafirmação do status quo, têm de ser analisadas por nós, apesar de não se ter passado nada.

4)      Ainda que, hipoteticamente, se tivesse passado alguma coisa (que não se passou) é indiferente, porque quem decide o estatuto da Igreja Ortodoxa da Ucrânia somos nós e agora temos mais que fazer, muito obrigado.

É mais ou menos isso, como explico em maior detalhe aqui.

Resumindo, a Igreja Ortodoxa da Ucrânia do Patriarcado de Moscovo está a tentar desesperadamente manter-se à tona de água. Moscovo vai fingindo que não, mas já perdeu toda a influência que tinha na Ucrânia. Nessa perspectiva, esta guerra inventada por Putin e apoiada por Cirilo, resultou na liquidação de um dos maiores instrumentos de influência que a Rússia de facto tinha no país. Isso não vai voltar atrás.

E finalmente, a Igreja autocéfala fica agora numa posição mais confortável para as negociações com a Igreja de Onofre. Epifânio já disse, na homilia de ontem, que está disposto a sentar-se à mesa com Onofre e os seus representantes, para tentar sanar as divisões, mas só o disse depois de ter mandado uma série de “galhardetes” à Igreja ligada a Moscovo.

Lendo e analisando tudo isto, há uma coisa que salta perfeitamente à vista. Falta muito Cristo aqui neste "cristianismo".

Quanto ao futuro, é ir vendo. Muita coisa ainda irá acontecer.

Entretanto não se esqueçam que todas estas declarações, e muitas outras, estão agrupadas aqui.

Thursday 26 May 2022

Nossa Senhora de Javelin

Ora aqui está uma coisa que não se vê todos os dias!

O Conselho das Igrejas Ucranianas, uma organização inter-religiosa que representa as religiões seguidas por 95% da população, protestou oficialmente contra a pintura de um mural gigante, em Kiev, de Nossa Senhora com um lança-rockets Javelin.

A imagem, conhecida como Sta. Javelin, tem aparecido aqui e ali nas redes sociais e refere-se à arma que é usada para neutralizar carros de combate (tanques) russos.

Uma exibição pública destas, com patrocínio estatal, parece desadequada, sobretudo quando do outro lado nos queixamos da utilização abusiva da religião para incentivar a guerra, pelo que se compreende totalmente o protesto dos líderes religiosos.

O texto do protesto está aqui, basta descerem até ao dia 23 de Maio.

Leva-nos mais longe - Filme sobre as Equipas de Nossa Senhora

A minha mulher Ana, e eu, tivemos a honra de sermos entrevistados para o filme "Leva-nos mais longe", sobre as Equipas de Nossa Senhora e as Equipas de Jovens de Nossa Senhora. 

Ambos fizemos parte das EJNS, e como casal fazemos parte das ENS, e portanto os movimentos são uma parte importantíssima da nossa vida. 

O filme está prestes a estrear e aconselho a todos a ir ver. Aqui podem encontrar informação sobre bilhetes, horários, e mais detalhes do filme.

Se fazem parte das ENS, façam como nós e desafiem a vossa equipa a ir junta, não se irão arrepender!

Wednesday 25 May 2022

Uma Cerveja com C.S. Lewis: “Uma Conversão Contrariada”

Brad Miner

Julgo que nenhum autor protestante tem sido tão citado em artigos do The Catholic Thing como C.S. Lewis (1898-1963). Também deve ser verdade que para além da sua própria obra, ninguém nos meios de comunicação contemporâneos tem feito mais para celebrar Lewis e o seu trabalho do que Max McLean, fundador e diretor artístico do Fellowship for Performing Arts (FPA), de Nova Iorque.

O seu mais recente projecto cinematográfico, feito com o realizador Norman Stone, é “The Most Reluctant Convert: The Untold Story of C.S, Lewis”, em que McLean, que faz de Lewis, narra o percurso do autor do ateísmo para o Cristianismo. E que evangelizador que ele era. No Século XX só o Billy Graham e o Papa São João Paulo se comparam.

Já fiz crítica de duas peças da FPA baseadas em livros de Lewis: “O Grande Divórcio” e “Shadowlands”, e com a minha mulher vi o “Vorazmente Teu”, em 2006 – antes de este site ser criado. Nessa produção McLean foi soberbo a fazer de Screwtape, o demónio mais velho a instruir o seu aprendiz, Wormwood.

O “Most Reluctant Convert” começa e acaba quebrando a chamada “quarta parede”, que separa os actores do público. McLean, na personagem de C.S. Lewis, sai da maquilhagem, passa pelos técnicos, as câmaras e a iluminação e, olhando directamente na nossa direção, começa a contar a história do grande autor. No final sai de casa do próprio Lewis em Oxford “The Kilns” e recebe os aplausos, muito merecidos, da equipa de filmagem.

McLean descreve o filme como “cerebral, mas de acção rápida”. Na verdade, essa é uma das chaves para a sua grandeza.

Através de retrospectivas vemos C.S. Lewis quando era menino (desempenhado por Eddie Ray Martin), como um jovem adulto (Nicholas Ralph) e, claro, com McLean a fazer de homem maduro, a tentar reconciliar-se com os acontecimentos e as verdades que o puxam de um cepticismo ateu rumo à fé cristã.

Foi o livro “Surpreendido pela Alegria” (1955) que deu a McLean a ideia de escrever uma peça sobre a sua conversão. Esse livro, bem como o “Mero Cristianismo” (1952) são boas fontes para a história de Lewis e a forma como usou a razão para chegar à crença, e vários momentos que serão reconhecidos por fãs de Lewis estão representados de forma belíssima no filme.

Vemos a morte da sua mãe, Flora (representada por Amy Alexander), o seu pai Albert, castigador e obstinado (Richard Harrington), e passagens da sua vida como militar na I Guerra Mundial. Todos estes eventos traumáticos contribuíram para o empurrar para longe da fé. Há ainda cenas da sua educação na adolescência, que ficou a cargo do tutor W.T. Kirkpatrick (David Grant) e a sua formação intelectual em Oxford, mais tarde.

E há ainda alusões ao impacto de G.K. Chesterton, com o seu “O Homem Eterno”, e de George MacDonald, com “Phantastes” – livros que iluminaram a imaginação de Lewis, um classicista que viria a escrever alguns dos romances de fantasia cristãos do Século XX, para adultos e para crianças.

Em Oxford, onde foi primeiro aluno e depois professor, conheceu académicos fantásticos como Owen Barfield (Hubert Burton), Hugo Dyson (David Shields) e J.R.R. Tolkien (Tom Glenister).

Enquanto intelectuais, estes homens discutiram muitos assuntos, mas sobretudo a fé. Ouvimos Barfield a desafiar a afirmação de Lewis de que Jesus pode ser aceite como um grande mestre, sem que seja necessário acreditar na sua divindade. Barfield explica aqui o esquema do argumento que o próprio Lewis popularizaria, naquilo que é conhecido como o seu “trilema”. Lendo as palavras do Senhor no Evangelho, só podemos concluir que Jesus é louco, mentiroso, ou o Deus. Isto é, não pode simplesmente ter sido um “grande mestre” se as suas reivindicações de divindade eram fraudulentas.

Depois temos o famoso passeio que ele e Tolkien deram certa noite ao longo da Addison’s Walk, em Oxford. Falam de mitos e Tolkien levanta a questão convincente de que a história de Cristo é como todos os mitos que há muito que encantam ambos os académicos, com a excepção de uma coisa: os relatos do Evangelho são verdadeiros. Naquele momento ouvimos o sussurrar das folhas, que começam a cair:

“O vento sopra onde quer. Pode-se ouvi-lo, mas não se pode dizer de onde vem, nem para onde vai. Assim acontece com todos os que nascem do Espírito” (Jo. 3,8)

Lewis sente o Espírito a mover e nunca mais será o mesmo. Assim ficou conhecido como o “convertido mais desalentado e contrariado de toda a Inglaterra”. Mas a alegria não tardaria a chegar.

O filme não é uma autobiografia exaustiva, e alguns dos notáveis excessos da sua juventude, como quando andou medido com o oculto (“luxúria espiritual”, como ele lhe chamou), aparecem apenas na forma de alusões, mas isso é porque o objectivo de “The Most Reluctant Convert” é de mostrar – em menos de 90 minutos – a forma como Lewis chegou à fé e como as suas lutas internas sobre a verdade de Cristo ajudaram a definir aquilo que seriam os seus argumentos enquanto evangelizador, mais tarde.

“The Most Reluctant Convert” é, sem dúvida, o filme mais inteligente que verá em 2022, mas é também um filme muito belo, fruto da cinematografia de Sam Heasman, em muitos dos locais onde se desenrolou a vida verdadeira de Lewis: The Kilns, claro, mas também a Universidade de Oxford, e Oxfordshire e os seus pubs. “Saúde!”, diz “Jack” Lewis. Para todos nós.

Apesar de todo o charme verdejante do filme, este desenrola-se a uma velocidade alucinante e, quando acaba, recostamo-nos na cadeira, praticamente sem fôlego.

De certa forma, C.S. Lewis foi o Agostinho de Hipona dos nossos tempos, e caso tivesse tido uma reacção positiva aos argumentos de Tolkien para a primazia do Catolicismo (e que não constam do filme), por estes dias talvez o estivéssemos a venerar como santo. (Digo eu, que não sou postulador).

Tanto Lewis como Agostinho usaram, de forma enérgica, todas as armas lógicas que conseguiam contra o Cristianismo… até que cada um deles foi forçado, pela sua bondade e integridade essencial, a entregar-se de corpo, alma e intelecto, a Deus.


Brad Miner é editor chefe de The Catholic Thing, investigador sénior da Faith & Reason Institute e faz parte da administração da Ajuda à Igreja que Sofre, nos Estados Unidos. É autor de seis livros e antigo editor literário do National Review.

(Publicado pela primeira vez na terça-feira, 24 de Maio de 2022 em The Catholic Thing)

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The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de TheCatholic Thing.

 

Tuesday 24 May 2022

Hospital de Campanha Ep. 6 - Zen, e a arte de ser católico na China

Este sexto episódio do Hospital de Campanha vem a lume no Dia Mundial de Oração pela China, e no dia em que o Cardeal Zen, com os seus 90 anos, foi apresentado em tribunal, depois de ter sido detido, há vários dias, em Hong Kong. 

Para tentar compreender melhor a vida dos católicos na China, e como o Estado os encara, falámos com um padre que esteve vários anos naquele país em missão clandestina. Por isso, e para não comprometer os seus contactos por lá, ele pede para não ser identificado. 

Ouçam e partilhem esta conversa interessantíssima que só pecou por curta, e onde falámos ainda do acordo entre Roma e Pequim para a nomeação de bispos.



Wednesday 18 May 2022

Aborto e o Genocídio da Comunidade Negra

Randall Smith

Temos assistido a muita discussão, recentemente, em torno da decisão do caso Dobbs, em que o Supremo Tribunal poderá finalmente revogar as fatídicas decisões de Roe v. Wade e Doe v. Bolton. Muitos desses artigos que lamentam as decisões vindouras estão cheias de incivilidade, vitríolo, tentativas de meter medo, non sequiturs absurdos, ou puras mentiras. 

Em 2003, quando o Supremo Tribunal revogou a decisão Bowers v. Hardwick de 1986 – protegendo a actividade homossexual – os liberais não começaram a gritar que o próximo a ser revogado seria Brown v. Board of Education, porque sabiam que isso seria um non sequitur absurdo.

E hoje nenhum liberal progressista acharia aceitável que um grupo conservador estivesse a fornecer as moradas de casa dos juízes minoritários em Dobbs, para que grupos de manifestantes se pudessem juntar às portas das suas casas para os pressionar a mudar de ideias. Não, parece que apenas um dos lados pode fazer agir deste modo.

Para todos aqueles que defendem Roe, tenho apenas uma coisa a dizer: Estão do lado errado da história.

Sempre quis dizer isso. Principalmente, para que as pessoas do outro lado da barricada conheçam a sensação. Na verdade, acredito mesmo que aqueles que argumentam a favor do aborto estão do lado errado da história e que com os avanços dos cuidados neonatais e maiores conhecimentos do desenvolvimento do bebé no útero, o aborto parecerá tão bárbaro dentro de 50 anos, como a escravatura nos parece hoje.

E já agora, se estudarem a história, verão que quando o nosso lado é o que está a usar eufemismos para cobrir aquilo que está a fazer – partir vidros, mentir, ameaçar com violência, acicatar as multidões, o medo e o ressentimento – então na maior parte das vezes é porque estamos de facto do “lado errado da história”.

Mas dizer simplesmente aos nossos opositores que estão do lado errado da história não é um argumento. É o equivalente verbal de uma pancadinha paternalista nas costas. Imagine só que apresenta um argumento sofisticado sobre algo, apenas para ouvir o seu interlocutor gritar: “Isso é só estúpido!” ou “Está enganado!”. Bom, posso até estar enganado, e posso até ser estúpido, mas para o mostrar é preciso fazer um argumento real.

Demasiadas pessoas partem do princípio, hoje em dia, de que não precisam de apresentar argumentos lógicos, e que podem simplesmente assumir que “todas as pessoas boas e sensatas” concordam com elas, porque, bem, “é evidente”. O problema é que quase nunca é evidente e com temas especialmente controversos, como o aborto, não se pode simplesmente partir do princípio que assim é. Quando afirma que “é evidente”, o que está a dizer de facto é que as pessoas que discordam de si são demasiado estúpidas, demasiado burras mesmo, para compreender o “óbvio”.


Por isso eu não vou simplesmente dizer a todos os que discordam de mim sobre o aborto que estão do lado errado da história. Eu acho que sim, eles obviamente acham que não. Porreiro. Temos de avançar e trocar verdadeiros argumentos e verdadeiros dados.

O “impacto desigual” e o preconceito racial são temas populares neste momento. Não passa um dia ou dois sem uma discussão sobre eles na comunicação social. Então falemos deles no contexto do aborto.

Ouvimos dizer muitas vezes que revogar Roe será “desastroso” para a comunidade negra. Mas olhemos para os factos:

  • O aborto é a principal causa de morte para afro-americanos, mais do que todas as outras causas juntas, incluindo HIV, crime violento, acidentes, cancro e doenças cardíacas.
  • As mulheres negras abortam 3,5 vezes mais do que as mulheres brancas; mais de 30% das mulheres negras têm abortos, apesar de constituírem apenas 12,6% da população.
  • Ao longo da sua vida, as mulheres negras têm em média 1,6 mais gravidezes do que as mulheres brancas, mas a probabilidade de terem uma gravidez que acaba com um aborto é cinco vezes superior.
  • Aproximadamente 360 mil bebés negros por nascer são abortados todos os anos. Quase mil por dia.
  • Desde 1973 morreram mais de 16 milhões de bebés negros devido ao aborto.
  • A percentagem de população negra nos Estados Unidos desceu de 12,6% em 2010 para 12,4% em 2020. A população negra nos EUA (actualmente 41 milhões) desceu a pique, ficando agora abaixo da população hispânica (63 milhões), números que seriam radicalmente diferentes caso as 16 milhões de vidas negras importassem o suficiente para que a sociedade as protegesse do aborto, permitindo que se tornassem adultos.

Claro que pode estar a pensar, “Sim, mas as clínicas não abortaram estas crianças negras por serem negras”. Em primeiro lugar, os progressistas nunca permitem esta desculpa quando se fala e qualquer outro caso de “impacto desigual”. Segundo, tem mesmo a certeza?

Sabemos perfeitamente que a eugenista e racista Margaret Sanger, que fundou a Planned Parenthood, deu início ao seu “Negro Project” em 1939, para evitar o crescimento da população negra. E ainda hoje 79% das clínicas da Planned Parenthood encontram-se a curta distância (cerca de 3,5 quilómetros) de centros com grande concentração de populações negras ou hispânicas. Se isso não é prova de “racismo sistémico”, então o termo não tem sentido.

Por isso, todos os que estão a manifestar-se para proteger a indústria abortista, não só estão do lado errado da história, como são racistas.

Vocês? Não pode ser! Vocês são os bons! Dezasseis milhões de bebés negros mortos – por agora – e continuam a ter a certeza absoluta de que as pessoas que estão a tentar pôr fim a este genocídio racial são os maus, os horríveis e que vocês – vocês! – são aqueles que serão vistos pela história como os que verdadeiramente se preocupavam com a comunidade negra.  

Tão certos, de facto, que estão dispostos a silenciar os vossos opositores, juntar multidões para os aterrorizar, mentir repetidamente, vandalizar igrejas, interromper serviços religiosos, profanar sacramentos, destruir centros de apoio que dão às mulheres os recursos para poderem escolher não pôr fim à vida dos seus nascituros, e até subverter o próprio processo democrático, tudo para que algumas mulheres possam matar os seus filhos e filhas por nascer.

Pois bem, isso é só estúpido.


Randall Smith é professor de teologia na Universidade de St. Thomas, Houston.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na terça-feira, 17 de Maio de 2022)

© 2022 The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de reprodução contacte: info@frinstitute.org

The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing.

Wednesday 11 May 2022

As repercussões da detenção do Cardeal Zen em Hong Kong

Aqui podem ouvir a minha análise à detenção do cardeal Zen, em Hong Kong, bem como a minha leitura das repercussões que pode ter nas relações entre a Santa Sé e a China.

Tratou-se de uma conversa com Hugo Pinto, jornalista do Observador.


Posts antigos sobre este assunto: 

Hospital de Campanha Ep. 5 - As implicações da (possível) revogação do Roe V. Wade

Uma fuga de informação muito recente sugere que o Supremo Tribunal dos EUA está a deliberar a revogação do famoso caso "Roe vs. Wade" que levou à legalização do aborto a nível federal. 

Neste episódio três católicos juntam-se para perceber exactamento o que isto pode implicar dos dois lados do Atlântico. 

Ao Filipe e à Inês, já habituais aqui no Hospital, junta-se o José Maria Duque, coordenador-geral da Caminhada pela Vida e dirigentge da Federação Portuguesa pela vida.

Este tema também foi abordado pelo Filipe neste texto e é assunto do artigo desta semana do The Catholic Thing. 

Joe e os Outros depois de “Roe”

Stephen P. White

O Presidente Biden conta já com quase cinco décadas a treinar os eufemismos necessários para defender o aborto sem parecer demoníaco. Ainda assim, de vez em quando tropeça. A semana passada, por exemplo, quando assegurou os jornalistas da sua convicção de que “o direito de escolha das mulheres é fundamental”, cometeu o erro de deixar claro que falava da escolha de “abortar uma criança”, o que parece bastante monstruoso. Porque é.

Claro que o contexto para estes comentários era a fuga de um rascunho da opinião maioritária do Juiz Alito no caso Dobbs v. Jackson Women’s Health Organization, que está diante do Supremo Tribunal. Esse rascunho, já confirmado como autêntico pelo Tribunal, anulará a sentença Roe v. Wade, que legalizou o aborto a nível federal, e remeterá as leis do aborto de volta para os estados.

O truque para um político como Biden está em usar termos de que as pessoas gostam, como “direitos”, “liberdade”, “escolha”, enquanto evita os termos que recordam as pessoas de que o que está em causa é a eliminação de uma jovem e inocente vida. Mas mesmo as palavras “simpáticas” começam a perder o seu encanto se forem usadas de forma demasiado desonesta durante muito tempo. As pessoas começam a desconfiar quando aspirações nobres como liberdade e igualdade só podem ser alcançadas a um custo tão grotesco.

É uma loucura acreditar que a igualdade e a liberdade de metade da raça humana assentam necessariamente no direito ilimitado de usar força letal contra crianças inocentes. Contudo, esta é a opinião firme de Nancy Pelosi sobre o assunto. A eliminação de Roe seria uma “abominação”, avisou. “Ao eviscerar a liberdade fundamental das mulheres de gozar de plenos cuidados reprodutivos, os juízes radicais nomeados pelos republicanos preparam-se para infligir sofrimento inimaginável sobre dezenas de milhões de famílias”.

Este grau de histeria é uma boa indicação de como o argumento de Alito destrói por completo a lógica de Roe e de Casey. No meio de todo o clamor e ranger de dentes que ouvimos esta semana, temos assistido a uma ausência notória de críticas sérias aos argumentos jurídicos de Alito por parte da fação pro-Roe. Como já se disse infinitas vezes esta semana, a opinião é ainda um rascunho, e não uma versão final, mas os dados parecem lançados e é difícil não esperar que em breve o Roe v. Wasde seja revogado.

Claro que a revogação de Roe não porá fim ao aborto neste país. Por mais necessária e grandiosa que seria essa vitória, a guerra passaria apenas para outros campos de batalha – principalmente para os estados, mas também para o Congresso. Há muito que se presume que o retorno da questão para o nível estadual produziria um conjunto variado – mas no geral mais moderado – de leis do que aquelas que eram permitidas ao abrigo de Roe. Poderá ser isso mesmo que acontece. Mas não será automático. E não acontecerá sem muito esforço e coragem aos níveis local e estadual.

Norma McCorvey, a "Roe" original
Há muito que os grupos pró-aborto se preparam para o que vem de seguida. Já existem planos para transportar mulheres grávidas de estados com leis mais restritivas para estados com leis mais permissivas – uma espécie de caminho-de-ferro subterrâneo para abortos, à imagem do que existia para ajudar escravos a fugir para o norte. Também se tem falado muito em alargar o acesso postal a drogas abortivas.

Questões como atravessar fronteiras estaduais, ou enviar medicamentos abortivos de um estado para o outro vão certamente garantir que o Governo federal vai continuar a desempenhar um papel importante na restrição (ou promoção) do aborto. Mesmo que o Congresso demonstre não ser capaz, ou não ter vontade, de tomar medidas directas e substanciais, o executivo continuará a ser importante para redigir as regras e os regulamentos em torno do aborto. Não é implausível pensar que sem o Supremo Tribunal para tornar o aborto uma lei federal, ambos os partidos serão tentados a colocar as políticas federais sobre o aborto o mais possível no ramo executivo.

Escusado será dizer que o cenário pós-Roe tornará ainda mais urgente a expansão de programas para ajudar mães e crianças em situações difíceis. A Lei do Batimento Cardíaco no Texas, por exemplo, é famosa por proibir a maioria dos abortos e também pela forma pouco comum de aplicação, dependendo de denúncias remuneradas. Mas o que foi muito menos divulgado foi que essa mesma lei, que praticamente acabou com a indústria abortiva no Texas, também aumentou os subsídios estaduais para mães pobres, expandiu a cobertura social e providenciou 100 milhões de dólares todos os anos para o programa Alternativas ao Aborto.

Os estados que possam restringir o aborto depois da revogação de Roe devem fazê-lo, claro, mas os mesmos estados devem estar preparados para ser o mais generosos possível a confirmar que todas as mães e bebés (e pais) tenham o apoio de que precisam para que dizer sim à vida seja o mais fácil possível. À medida que as políticas sobre o aborto regressam aos estados tornar-se-á ainda mais politicamente imperativo vencer ao nível local e pessoal, tanto nas medidas concretas como na retórica.

Os milhares de centros de aconselhamento a mulheres grávidas em dificuldades que existem no país já fazem um trabalho fantástico neste campo. Não há qualquer razão para não coordenar as restrições ao aborto com o aumento de apoio a essas organizações, seguindo a decisão do Texas de disponibilizar recursos diretamente a mulheres que enfrentam gravidezes indesejadas ou difíceis. Não só é a coisa certa a fazer, como revela a falsidade de quem acusa os movimentos pró-vida de deixarem de se preocupar com a dignidade humana a partir do momento em que o bebé nasce.

Uma última coisa para os católicos terem em conta num cenário pós-Roe: Ao longo de décadas o Roe v. Wade definiu o status quo político e jurídico. Ao longo de décadas demasiados católicos revelaram uma deferência exagerada a esse status quo. Quando o Roe desaparecer, se Deus quiser, e se quebrar o impasse jurídico, deixará de ser sustentável a atitude de ficar nas margens e evitar abanar o barco. Quebrar o monopólio judicial da política do aborto significará que os cidadãos comuns, e os legisladores locais e estaduais, passam a ter uma maior responsabilidade na defesa da vida – ou na sua promoção ou destruição. Os católicos, incluindo os nossos bispos e pastores, devem estar preparados para tudo o que isso significa.


Stephen P. White é investigador em Estudos Católicos no Centro de Ética e de Política Pública em Washington.

(Publicado em The Catholic Thing na quinta-feira, 5 de Maio de 2022)

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Thursday 5 May 2022

Ver Deus na Guerra?

 Amanhã estarei em Santarém com o meu bom amigo Pe. Tiago Fonseca para falar numa conferência das Equipas de Jovens de Nossa Senhora. 

O tema é "Ver Deus na Guerra" e promete ser muito interessante! 

A conferência é seguida de jantar e o objectivo é angariar fundos para os jovens poderem participar no Encontro Internacional das EJNS. 

Enquanto ex-responsável internacional deste movimento é sempre uma enorme alegria participar em qualquer evento organizado por eles! Espero que muitos queiram também participar!



Wednesday 4 May 2022

A Igreja: Corrupta desde Sempre?

Michael Pakaluk

Se a Igreja Católica alguma vez foi corrupta, então foi corrupta desde sempre. Mas como não foi corrupta desde sempre, nunca foi, nem será, corrompida.

Foi isso que me passou pela cabeça recentemente, ao ouvir um podcast sobre Roma antiga. A cidade de Roma – argumentava o autor – pode-se orgulhar de ser a maior da história do mundo: desde a sua população; a extensão geográfica da sua influência; os séculos de primazia; a organização da sociedade; a primazia do direito; a durabilidade das suas construções; e a sua habilidade para integrar o melhor dos seus vizinhos.

Ah, e depois havia o facto de se ter tornado a sede da mais importante religião da história da humanidade…

Estava à espera que, depois desta correcta análise das assinaláveis virtudes de Roma, o autor do podcast elogiasse a sabedoria de São Pedro por ter sedeado a Igreja em Roma. Pareceu-me ser um historiador sério. Certamente veria que a Igreja Católica se tornou tão “importante” porque as suas virtudes espelhavam no campo espiritual as que Roma exibia no secular.

Pelo contrário, ele lamentou a decisão de Pedro, porque “o envolvimento da Igreja com a autoridade romana, depois do édito de Milão, levou rapidamente à sua corrupção”.

Fiquei desiludido por ouvi-lo a repetir esta visão tão familiar, mas não surpreendido, afinal de contas o assunto deste episódio não era a Igreja, talvez ele não tivesse pensado muito no assunto.

Mas os seus comentários demonstravam que ele era um cristão praticante. Mesmo do ponto de vista das Escrituras, dei por mim a pensar se ele alguma vez tinha meditado na Paixão. Porque a “corrupção” começou muito antes do ano 313. Na verdade, esteve presente desde o início, e com o conhecimento e aparente autorização de Nosso Senhor.

Estou a falar, claro, de Judas Iscariote. Olhemos para ele de novo. A fundação da Igreja deu-se com a escolha dos 12 Apóstolos. Judas estava em pé de igualdade com todos eles, à excepção de Pedro. Não o podemos despromover ou excluir retroativamente. Judas era um dos 12, e podemos colocá-lo à mesma altura que qualquer outro, na medida em que o ocupante de um cargo pode substituir qualquer outro com o mesmo cargo.

Uma boa definição de corrupção é o aproveitamento de um cargo de confiança para ganho próprio. Por exemplo, um funcionário que aceita um suborno é, à luz desta definição, corrupto. E por isso Judas era corrupto. Ele aproveitou-se da sua ligação a Jesus, sendo apóstolo, para ganhar 30 moedas de prata.

Sabemos como é que a coisa correu. As autoridades queriam prender, julgar e condenar Jesus em segredo, para que a multidão não se manifestasse. Por isso, Jesus tinha de ser identificado e capturado antes do amanhecer, antes de poder fugir (como acreditavam ser possível). Judas era importante neste processo para o identificar, com um beijo.

Acreditamos que Judas era movido por mais do que apenas avareza. Tendemos a favorecer as ideias especulativas, sem qualquer base nas Escrituras – que, por exemplo, Judas queria provocar uma crise que levaria Jesus a assumir o poder, enquanto Messias; ou que como Caim, Judas estava com ciúmes dos apóstolos que Jesus parecia preferir. E por aí fora.

Porém, o único vício de Judas de que ouvimos falar na Bíblia é o seu amor pelo dinheiro. João diz que Judas se queixou do dinheiro gasto no nardo puro, porque guardava a bolsa comum e dela tirava o que queria (Jo. 12,6). Somos tentados a descartar a ganância como explicação, porque parece demasiado fraca. Trair o Messias por uma pequena soma?

Só que não era assim tão pequena. Se dava para comprar um campo na cidade, serviria para comprar uma quinta no campo. E muitas pessoas fazem coisas inacreditáveis por pequenas quantias de dinheiro. Esaú vendeu a sua primogenitura por um prato de lentilhas (Gen. 25, 29-32). Há quem aposte a aliança. Richard Rich traiu São Tomás Moro “por Gales”. 

São Tomás de Aquino escreve que uma das filhas do vício capital da avareza é a traição. Porquê? Porque a avareza procura possuir por excesso, pela força ou pela fraude, e a fraude, na medida em que afecta outra pessoa, é uma traição – “como no caso de Judas”, diz o santo, “que traiu Cristo por cobiça”. Resistimos a essa simples explicação porque o caso de Judas e de Cristo revela bem a irracionalidade de toda a avareza.

Por isso, a corrupção estava presente desde o início, e a sua consequência foi infinitamente grave.

Mais, a corrupção parece ter-se estendido para além de Judas, pelo menos potencialmente e virtualmente, no sentido de que cada um dos apóstolos, quando ouviram o Senhor dizer que um deles o iria trair, pensou se não seria ele o traidor (Jo. 13, 21-30).

Se naquele tempo houvesse jornais o facto mais evidente a relatar sobre os apóstolos, a melhor coscuvilhice, seria de que eles eram corruptos e tinham traído o seu mestre.

Mas pensemos agora no seguinte.

1. Esta corrupção estava presente com o tranquilo conhecimento prévio e “vontade permissiva” do Senhor. “Não fui eu que os escolhi, os Doze? Todavia, um de vocês é um diabo!” (Jo. 6, 70).

2. De forma alguma o “cargo” Apostólico de Judas foi afetado pela sua corrupção. Matias foi selecionado para o preencher. (Actos 1, 24-25)

3. A pregação de Judas e os seus baptismos mantiveram-se válidos. Nada teve de ser refeito ou desfeito.

4. Jesus chega mesmo a garantir a “limpeza” de todos os Doze, excepto na medida em que alguém peca pessoalmente. “Quem já se banhou precisa apenas lavar os pés; todo o seu corpo está limpo. Vocês estão limpos, mas nem todos” (Jo. 13, 10).

A Igreja fundada por Cristo era “corrupta” desde o início, da mesma forma que sempre seria corrupta (incluindo agora), em pessoas particulares, desviadas pelo demónio. Mas enquanto Igreja, nas suas instituições, cargos, poderes, sacramentos e orientação divina – enquanto Corpo de Cristo – era santa da mesma forma que permanece santa.


Michael Pakaluk, é um académico associado a Academia Pontifícia de São Tomás Aquino e professor da Busch School of Business and Economics, da Catholic University of America. Vive em Hyattsville, com a sua mulher Catherine e os seus oito filhos.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na quarta-feira, 27 de Abril de 2022)

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Tuesday 3 May 2022

EUA prestes a proibir o aborto? Sim, talvez e não

Samuel Alito, juiz do Supremo Tribunal

Talvez já tenham ouvido dizer que o Supremo Tribunal dos Estados Unidos está prestes a publicar uma decisão que poderá anular a famosa sentença do caso “Roe v. Wade” que legalizou o aborto nos Estados Unidos, a nível federal.

Neste artigo vou tentar explicar o que se passa e quais poderão ser as implicações. Para quem não me conhece, esclareço que sou convictamente pró-vida, isto é, defendo que o aborto é sempre a pior solução para o problema de uma gravidez indesejada.

Esta decisão é definitiva?

De todo… Aliás, neste momento, nem decisão é, é apenas um rascunho de uma possível decisão da maioria dos juízes do Supremo Tribunal, em relação a um caso que envolve a tentativa de um Estado de restringir o aborto para além dos limites actualmente admitidos nos Estados Unidos. Limites esses que radicam na decisão Roe V. Wade.

O rascunho da decisão, com mais de 90 páginas, foi divulgado à imprensa, o que por si é uma coisa extraordinariamente rara. É verdadeiro? Tudo indica que sim, mas isso não garante que venha a ser aceite.

Quando os juízes deliberam sobre um caso, fazem uma primeira votação. Com base nessa votação um dos juízes é nomeado para escrever a opinião da maioria. Outros podem escrever opiniões diferentes, ou mesmo dissensões.

Quando essa opinião é finalmente conhecida, no seu estado final, os juízes votam novamente e aí pode haver alterações. Isto é, um juiz pode mudar de opinião no final, por não concordar com o texto em causa, ou pode então simplesmente manter o seu voto e escrever outra opinião.

Neste momento, ao que tudo indica, haverá uma maioria de pelo menos 5 para 4, sendo que um dos juízes conservadores, John Roberts, não terá alinhado na anulação por inteiro de Roe. Para a decisão final se inverter seria necessário que um desses quatro juízes mude a intenção de votos. Isso parece pouco provável, mas não se pode descartar a possibilidade.

O que está em causa? Roe v. Wade

O caso de Roe v. Wade remonta a 1973. Norma McCorvey (Jane Roe) processou o Estado porque queria fazer um aborto, mas o estado em que vivia, Texas, não o permitia salvo em caso de necessidade para salvar a vida da mulher. O caso chegou ao Supremo Tribunal, que decidiu, por maioria de 7 contra 2, que esse direito lhe estava consagrado na Constituição.

A verdade é que a Constituição americana nunca menciona o aborto, mas os juízes conseguiram descortinar o tal direito ao aborto no “direito à privacidade”, que de facto existe. Argumentaram que o “direito à privacidade” de Norma McCorvey impede o Estado de se intrometer entre ela e o seu médico, e de a impedir de fazer um aborto se assim o entendesse. A decisão restringiu esse direito, contudo, à evolução da gravidez. Durante o primeiro trimestre o Governo – seja federal, seja estatal – não pode restringir de todo o aborto; no segundo trimestre pode apenas exigir certos requisitos de saúde e no terceiro o aborto pode ser proibido, desde que as leis incluam excepções nos casos em que a vida da mãe está em perigo.

O aborto era ilegal antes de 1973?

Não, não era. Antes de 1973 a questão cabia aos estados. Havia estados onde o aborto era legal. A diferença é que a decisão do Roe v. Wade forçou todos os estados a reconhecer um direito constitucional ao aborto.


E agora, vai passar a ser ilegal em todo o país?

Não. A anulação de Roe v. Wade, por si, não criminaliza o aborto. Segundo a decisão revelada pela imprensa – que ainda não é oficial – o Supremo Tribunal não considera que o aborto viola o direito constitucional à vida, simplesmente rejeita que exista na constituição um direito ao aborto.

O que vai acontecer agora, ou a partir do momento em que a decisão se torna lei, é que a questão voltará aos estados.

Há pelo menos 18 estados que têm leis que estão suspensas, por causa do Roe v. Wade, mas que no caso de este ser anulado entram em vigor e que proíbem completamente o aborto, outros têm leis que proíbem o aborto em quase todas as circunstâncias, excepto em caso de malformação, perigo para a vida da mãe, ou incesto. No total, é natural que pelo menos 22 estados passem a restringir totalmente ou pelo menos em larga medida o aborto legal.

Então como ficamos? O Supremo vai proibir o aborto ou não?

Sim, não e talvez. Todos os três.

Sim, na medida em que, a confirmar-se esta sentença, o aborto passará a ser ilegal em vários estados.

Não, na medida em que o aborto continuará a ser legal em vários estados, aliás, na maioria, e o tribunal não obriga ninguém a proibir o aborto.

Talvez, na medida em que neste momento nem sabemos se a decisão é verídica e se, caso seja, será idêntica à decisão final.

E quando é que sabemos?

As decisões do Supremo Tribunal nestes casos mais fracturantes costumam ser divulgados em Junho. Antes disso vamos ter de continuar todos a especular.

Mas caso se confirme, a luta dos pró-vida acabou, correcto?

Não! Ou melhor, esperemos sinceramente que não.

O aborto é um mal sempre. Não é menos mal por ser legal, nem por ser ilegal e “escondido”. Não me entendam mal, o reconhecimento formal de que a matança de seres humanos nascituros não é um direito fundamental é uma excelente notícia, da perspectiva de quem acredita que esses seres humanos não são inferiores, em dignidade, que qualquer outro ser humano. Mas isso, só por si, não deve satisfazer quem se diz pró-vida. É preciso continuar a criar condições para que as mulheres não se sintam sequer pressionadas ou tentadas a abortar quando se vêem grávidas de forma inesperada, ou com em circunstâncias difíceis. Essa deve ser sempre a missão principal.

E Portugal no meio de tudo isto?

Evidentemente este é um assunto interno dos Estados Unidos, e nada tem a ver com a realidade portuguesa, excepto no detalhe de que tudo o que se passa nos Estados Unidos acaba por afectar outros países, de uma forma ou de outra. Este passo nos EUA vai fortalecer e encorajar os movimentos pró-vida em diferentes partes do mundo, e em Portugal também. O tempo dirá da magnitude desse efeito.

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