Friday 28 October 2022

É hora de abraçar

Eu não queria começar esta mensagem assim, mas infelizmente tem de ser. Hoje surgiu um novo caso de abusos na Igreja. Este é particularmente revoltante. A partir da cronologia podem encontrar mais informações.

Eu queria era ter começado por isto. Ontem gravámos o mais recente episódio do Hospital de Campanha. Depois de três episódios duros a falar dos abusos, este episódio é uma espécie de “anti-abusos”, no qual falamos só de casos de heroísmo, de pessoas que dão tudo em serviço do Cristo que vêem no outro, no mais frágil. Como sabemos heroísmo, na linguagem de Deus, é santidade. Juntámo-nos para isso com o Felix Lungu, da fundação Ajuda à Igreja que Sofre. Vale muito a pena ouvir o episódio.

E foi tendo em conta ambas estas coisas que escrevi este texto que peço que leiam, mesmo. Nesta altura em que a Igreja está em baixo, a levar porrada – merecidamente nalguns casos, menos noutros – podem os nossos padres contar connosco? Nós que nos dizemos católicos vamos abandonar o barco, ou vamos apoiar quem tanto nos dá?

Mudemos de assunto. No artigo do The Catholic Thing desta semana podem ler o excelente texto do padre Paul Scalia sobre a parábola do fariseu e do publicano, e aprender porque é que o orgulho está na raiz de todos os nossos pecados e da nossa altivez.

Temos também excelentes notícias dos Camarões, onde o grupo de nove pessoas – cinco padres, uma freira e três leigos – foram libertados depois de várias semanas nas mãos de rebeldes.

Mas temos também a notícia triste da morte de uma freira – uma das tais que deu tudo – na República Democrática do Congo.

Irmã Marie-Sylvie, rogai por nós, que Deus purifique a sua Igreja. 

Thursday 27 October 2022

Os nossos padres podem contar connosco?

Acompanho a situação dos abusos há mais de dez anos, com mais ou menos intensidade, consoante o assunto está na ordem do dia ou não. Ultimamente, como imaginam, tem sido com mais.

Já li muita coisa, muitos testemunhos, muitos relatos que dão a volta ao estômago. Cada revelação é uma tremenda tristeza.

Ainda assim, há casos que nos surpreendem pela pura maldade.

O caso revelado hoje é desses. Claro que o padre em questão, como todas as pessoas, é inocente até prova em contrário – e sei bem que tem havido um número significativo de falsos acusados – mas a ser verdade aquilo de que é acusado, este homem acolheu uma pessoa com necessidades especiais na sua morada, assumindo responsabilidade de cuidar dela, e depois abusou sexualmente dele durante vários anos, impedindo-o até de sair de casa, razão pela qual o padre é suspeito também de tráfego humano. A alegada vítima é maior de idade, mas sendo uma pessoa com “atestada incapacidade de resistência” é, aos olhos do direito civil e canónico, equiparável a um menor e os abusos são tratados da mesma forma.

Isto é mais ou menos grave que abusar de uma criança? Claro que não. Mas por alguma razão este relato deixou-me mais indisposto do que o normal. Acredito que não seja o único.

Estamos numa fase muito dura da história da Igreja em Portugal. Isto ainda vai piorar antes de melhorar. Mas é uma fase necessária, porque há muita coisa para limpar.

Como é que isto aconteceu durante cinco anos? Ninguém sabia? Ninguém desconfiava? É preciso apurar a verdade e é preciso castigar quem tem culpas. Tanto a nível civil como canónico.

Mas neste momento é preciso também fazermos – nós que amamos esta Igreja ferida – outra coisa. É preciso recordarmos a nós mesmos que a Igreja não é isto. Que é evidente que a Igreja terá sempre pecado e pecadores, mas que nunca foi, nunca será, isto. E que por cada homem que se serve do seu cargo para fazer maldade há não um, mas centenas, de pessoas que servem em silêncio, que se esgotam em amor, que amam até doer, até morrer.

Foi por isso que no Hospital de Campanha dedicámos o mais recente episódio todo a lembrar estes bons exemplos, estes casos de santidade, estes homens e mulheres que nos inspiram. E estes são só alguns pequenos exemplos. Há tantos mais!

Ouçam este episódio e partilhem-no. Que ele vos dê forças para enfrentar o muito de mau que ainda vamos conhecer.

E depois façam-me um favor. Se tiverem um padre amigo, mandem-lhe uma mensagem, telefonem, façam chegar-lhe, de alguma forma, um abraço. Se for presencial, melhor ainda. Convidem-no para jantar, levem-no ao futebol, desafiem-no para fazer desporto. E rezem por todos eles, muito!

Todos estamos a sofrer com isto, mas os padres estão a sofrer de uma maneira particularmente dura, como é evidente. Eles que dão tanto, dentro das suas limitações e capacidades, precisam agora de algum consolo.

Porque nós sabemos que a pequena minoria que comete crimes é isso mesmo, uma minoria, façamos os possíveis para que todos os outros não se sintam abandonados.

Posso contar convosco para isto? Os nossos padres podem contar connosco?

Hospital de Campanha - Felix Lungu e "A Verdadeira Igreja"

Nos últimos três episódios do Hospital de Campanha falámos dos podres da Igreja, daquilo que mais nos envergonha. Precisamente por isso, e porque sabemos que a Igreja não é isso, hoje trazemos um episódio que é basicamente um paliativo. A Igreja dos anti-abusos, a Igreja Santa, que existe mas talvez não dê tanta notícia. 

Conversámos com o Felix Lungu, da fundação Ajuda à Igreja que Sofre, e juntos partilhámos histórias de padres e freiras que deram, ou dão, tudo de si para servir os outros, por vezes até ao sacrifício da própria vida. 


Uma nota final e um desabafo... Este podcast é gravado com equipamento de qualidade, mas sem o apoio de profissionais. A meio deste episódio, por alguma razão, a gravação parou. Sem problema, reparámos, guardámos o que já estava gravado - para não correr riscos - e gravámos a segunda parte do episódio noutra faixa. Não mudámos rigorosamente nada no equipamento, mas por alguma razão a segunda parte do episódio ficou com uma qualidade de som muito pior que a primeira. 

Não sabemos explicar porquê, apenas lamentar e pedir desculpa e paciência aos nossos ouvintes. A conversa percebe-se na mesma, mas sabemos bem como é irritante não ter som de qualidade. Vamos tentando sempre fazer melhor!

Veja aqui todos os episódios do Hospital de Campanha

Wednesday 26 October 2022

A Doença e a Cura

Pe. Paul Scalia
Graças a Deus que não sou como o fariseu. Essa pode bem ser a nossa reacção à oração altiva do fariseu orgulhoso (ver Lucas 18, 9-14). Mas se cairmos nessa lógica cometemos o mesmo pecado que o fariseu, e revelamos a natureza infecciosa do orgulho, mostrando porque razão devemos estar mais atentos ao publicano.

Vejamos como o orgulho chega de facto a todo o lado e tudo afecta. É o pecado de Satanás, a ideia de que ele podia ser como Deus; que poderia ter a sua extraordinária dignidade e poder sem Deus. Então Deus responde ao orgulho de Satanás através do humilde São Miguel, cujo nome significa “Quem é como Deus?”. O orgulho é também o pecado dos nossos primeiros pais, a ideia de que poderiam ter as coisas de Deus, mas à sua maneira, que poderiam alcançar as coisas por si, em vez de as receber como dons. É, no final de contas, uma revolta contra a ordem natural das coisas, que Ele é Deus e nós não.

O orgulho é o pecado original também no sentido em que marca o ritmo de todos os outros. Não existe pecado, do mais leve ao mais gravoso, que não tenha as suas origens na elevação do nosso intelecto e da nossa vontade acima dos de Deus. Ou melhor, o orgulho comporta-se de certa forma como uma doença espiritual, que recebemos dos nossos primeiros pais, que infecta toda a alma, corrompendo até as nossas acções virtuosas.

Como tal, o fariseu nesta parábola é uma imagem do próprio homem – de cada um de nós. Sofremos do mesmo mal que ele, se bem que nem sempre dos mesmos sintomas. Se simplesmente nos recostarmos e o julgarmos sem nos julgarmos a nós mesmos, então não estamos a alcançar o ponto a que Jesus quer chegar e, o que é mais grave, tornamo-nos como ele.

Reparem em dois dos efeitos principais do orgulho. Em primeiro lugar isola-nos. “O fariseu tomou o seu lugar e orou para consigo”. Claro que não devemos orar para nós mesmos, mas o fariseu é tão egocêntrico que não reza a Deus, mas para si mesmo. Teria mais piada se não fizéssemos frequentemente a mesma coisa. Talvez não sejamos tão altivos ou convencidos como o fariseu, mas continuamos a sofrer os efeitos do orgulho. A nossa oração torna-se rapidamente uma mera conversa com nós mesmos, sobre nós mesmos. Em vez de rezar a Deus, colocamo-nos diante dele e pensamos em nós.

Isto ajuda-nos a compreender as graves palavras do Senhor no final da parábola: “Quem se exalta será humilhado”. Não se trata tanto de um juízo como de uma afirmação da realidade. O homem orgulhoso isola-se de tal forma que não deixa espaço para o único que o pode elevar. Não é que Deus não o ame, mas que ele se isolou de tal forma de Deus que está a bloquear os efeitos desse amor. Entrará para a eternidade na companhia de si mesmo, o que é humilhante.

Em segundo lugar, o orgulho leva a uma mentalidade competitiva. “Eu te agradeço porque não sou avarento, nem desonesto, nem imoral como as outras pessoas. Agradeço-te também porque não sou como este cobrador de impostos.” O fariseu, como qualquer pessoa orgulhosa, deriva o seu valor não da sua relação com Deus, mas de uma comparação com os outros. De facto, ele olha os outros apenas como adversários. Adoptou a instrução do demónio ao seu sobrinho no livro “Vorazmente Teu”, de C.S. Lewis: “Ser, é estar em competição”.

No caso do fariseu esta competição corre-lhe bem. Ele faz coisas melhores que o cobrador de impostos, e por isso sente-se satisfeito. Mas o mesmo espírito orgulhoso de competição pode frequentemente produzir o efeito oposto. Quando alinhamos no jogo da competição e damos por nós em desvantagem em relação aos outros, então em vez de altivos ou presunçosos, tornamo-nos desencorajados e inseguros. As redes sociais agravam este problema, uma vez que incentivam as pessoas – sobretudo os jovens – a competir neste jogo da comparação. É uma receita para a insegurança e a ansiedade. O orgulho – um enfoque excessivo em nós mesmos – é a raiz comum tanto do arrogante como do inseguro.

Ironicamente, o homem que na nossa cultura actual seria visto como sofrendo de falta de autoestima é o que a parábola apresenta como mais saudável. “Mas o cobrador de impostos manteve-se afastado e nem levantava o rosto para o céu. Batia no peito e dizia: ‘Ó Deus, tem pena de mim, pois sou pecador!’” Ao contrário do fariseu, o cobrador de impostos consegue falar mesmo com Deus. Ele tem noção da relação e do seu lugar na mesma. Mais, age em concordância, batendo o peito e reconhecendo e expressando a humildade do seu estado.

Há um debate clássico sobre se a humildade é uma questão do intelecto ou da vontade. É uma forma de pensar ou uma forma de agir? Devemos encará-la como ambos: precisamos de mudar tanto a nossa forma de pensar como o nosso comportamento. Assim, a humildade é, em primeiro lugar, a avaliação correcta de nós mesmos. É a virtude através da qual reconhecemos a verdade de que nada somos sem Deus, mas também de que Deus nos acumulou de bênçãos.

Ao mesmo tempo, a adesão à verdade e o reconhecimento de quem somos requer actos concretos da vontade que os fortaleçam. Sem o comportamento adequado, a forma adequada de pensar enfraquece. Por isso, a Igreja conduz os seus filhos em actos de humildade, sobretudo na sagrada liturgia. Reconhecemos o nosso pecado, batendo no peito como fez o cobrador de impostos. Ajoelhamo-nos e confessamos que não somos dignos. E por aí fora. Estes não são apenas gestos e palavras piedosos, mas actos que nos ajudam a interiorizar a verdade que nada somos – mas que Deus nos deu tudo.


O Pe. Paul Scalia é sacerdote na diocese de Arlington, pároco da Igreja de Saint James em Falls Church e delegado do bispo para o clero. 

(Publicado pela primeira vez no domingo, 23 de Outubro de 2022 em The Catholic Thing

© 2022 The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de reprodução contacte: info@frinstitute.org

The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing.  

Monday 24 October 2022

O Homem do Sudário e o que aprendemos com a crise dos abusos

A semana passada prometi novidades sobre a minha viagem a Salamanca, em Espanha. Pois venho cumprir! Estive numa fascinante exposição sobre o Santo Sudário, que apresenta como novidade um modelo hiper-realista do corpo que nele foi sepultado. É uma peça muito impressionante e a boa notícia é que os organizadores esperam trazê-la a Lisboa para as jornadas.

Aqui têm a minha reportagem principal, publicada no jornal online The Pillar (em inglês); aqui outra notícia mais curta, no The Tablet (também em inglês) e aqui a reportagem da RTP, que esteve também na viagem.

Surgiu esta quinta-feira uma notícia que, a ser verdade, é preocupante. A embaixada da Rússia diz que um padre russo em Portugal está a ser alvo de ameaças. Digo preocupante porque esse tipo de comportamento é sempre condenável, ainda que o padre defendesse coisas erradas. Mas neste caso é duplamente preocupante porque o padre em questão é um dos signatários de uma belíssima carta aberta de padres ortodoxos russos contra a guerra, que podem ler aqui.

Temos tido tempos difíceis na Igreja por causa dos abusos. Hoje publiquei no blog um artigo em que resumo três coisas que penso que aprendemos sobre esta questão em Portugal. 1º, que a comissão independente fazia mesmo falta; 2º, que se quebrou o mito de que em Portugal os abusos que existiam eram apenas casos isolados e circunstanciais e, 3º, que para bem de todos os bispos parecem estar a aprender com os erros no que diz respeito à comunicação.

Sobre este assunto volto a chamar a vossa atenção para os últimos três episódios do Hospital de Campanha, e também para este texto sobre os casos de alegados encobrimentos de que foi acusado D. José Ornelas.

O artigo desta semana do The Catholic Thing é para todos os que estão envolvidos de alguma forma na vida académica. Randall Smith explica que “não estamos na universidade para nos servirmos a nós mesmos ou aos nossos egos, mas aos nossos alunos. Nem devemos servir uma ideologia. Servimos a verdade, porque quando servimos a verdade é a Deus, que é a Verdade, que servimos (...) Todos os que procuram sinceramente a verdade têm um lugar na universidade católica”.

Esta semana foi anunciado o preço para participação plena nas jornadas. Claro que surgiram imediatamente notícias a dizer que esse era o preço a pagar para ver o Papa. O meu pai sempre disse que o número de parvos é infinito… Claro que o preço diz respeito a alojamento, alimentação e todos os materiais logísticos. O acesso aos eventos é gratuito, como sempre foi.



Thursday 20 October 2022

Abusos na Igreja em Portugal – O que aprendemos até agora

Pedro Strecht, da comissão independente
Têm sido um verão e um outono quentes para a Igreja portuguesa no que diz respeito a abusos sexuais cometidos em ambiente eclesial.

Muitos casos novos, muitas acusações, muitas investigações. Penso que vale a pena fazer agora um pequeno apanhado do que sabemos e do que aprendemos até agora.

A comissão independente fazia falta

Esta é a primeira grande conclusão. Repare-se que o ano passado já existiam comissões em todas as dioceses de Portugal. Contudo, e segundo o que transparecia, só tinham sido reportados poucos casos. A criação da comissão independente, liderada por Pedro Strecht mudou tudo. Segundo a última conferência de imprensa da comissão já foram validados mais de 400 testemunhos. Isto só pode querer dizer uma coisa. As pessoas – bem ou mal – não confiam nas comissões diocesanas. Não acho que isto tenha a ver com a personalidade dos bispos ou dos membros particulares destas comissões, tem a ver com a sua própria natureza. Uma comissão liderada por um bispo, como acontece em algumas dioceses, ou por um padre, não pode ser considerada independente e para o comum dos mortais isso será sempre visto como a Igreja a investigar-se a si mesma.

O resultado é que quando foi criada a comissão independente as acusações surgiram em muito maior número. E atenção que, segundo ouvi dizer, a esmagadora maioria dos testemunhos recebidos pela comissão são do litoral e das cidades, o que significa que o número real até pode ser bem maior.

Não sei se o fizeram contrariados, ou se houve divisões internas, nem isso interessa agora. O que é facto é que os bispos portugueses optaram por criar a comissão e em boa hora o fizeram. O próprio Pedro Strecht diz que as dioceses estão a colaborar e que não existe qualquer pressão sobre a comissão. Ainda bem! É bom sinal.

Endémico

Na mesma conferência de imprensa Pedro Strecht usou uma palavra muito importante. Não vi a maioria dos órgãos de comunicação social a fazer grande caso, mas a mim parece ser fundamental. O número de casos permite concluir que o problema dos abusos, em alguns locais, se tornou “endémico”.

Esta é a palavra fatal. Abusos sempre terá havido, em todos os quadrantes da sociedade, todas as classes, todas as profissões. E por mais que o desejemos, dificilmente conseguiremos um mundo em que deixe de haver. Isso não é nada de novo. A questão sempre foi saber se o que tínhamos em Portugal eram casos pontuais, que foram tratados de forma melhor, pior, ou de todo, ou se tínhamos um problema em maior escala, um problema de cultura de abusos e de encobrimento. O termo usado por Strecht é por isso da maior importância porque permite concluir que em Portugal, em muitos lugares, o problema chegou mesmo a ser de uma cultura de abusos, que não se podem resumir às más acções de um homem desequilibrado.

Apenas o relatório final nos permitirá saber o verdadeiro grau deste problema endémico, e em que lugares isso acontecia. Mas quebra-se o mito, de facto, de Portugal ser uma exceção ao que se passou em vários outros países.

A Igreja está a aprender

Isto é fundamental. Há meses que escrevo, digo, e insisto que um dos grandes problemas da parte da Igreja tem sido falhas de comunicação. Sei agora que isso está a mudar. Os bispos já se estão a aconselhar junto de quem sabe. Nos últimos tempos pelo menos três dioceses que têm sido mais faladas a este respeito contrataram, ou pediram ajuda a, especialistas em comunicação.

Não se trata certamente de arranjar formas de iludir o público, ou disfarçar problemas, mas antes de não agravar problemas sérios, como são os abusos, com respostas mal pensadas, coisas ditas sob pressão e falta de linhas de conduta no que diz respeito à informação prestada.

Dou um exemplo prático, para que isto não fique só no abstrato. Critiquei comalguma dureza a falta de uma linha orientadora do Patriarcado de Lisboa na comunicação de casos. Em Agosto anunciaram um caso, no dia em que ia ser publicada uma reportagem sobre esse mesmo padre. Dias depois soube-se, de fonte da comissão diocesana, que havia também outro caso em investigação. Porque é que um foi alvo de comunicado e outro não? Obviamente tinha sido porque o primeiro caso ia sair na imprensa e o Patriarcado quis antecipar-se. Mais tarde foi dito que de facto havia um segundo caso, mas que este seria comunicado publicamente quando chegasse uma decisão de Roma. Entretanto, há dias, o Patriarcado chegou mesmo a publicar uma nota sobre esse caso, que envolvia o pároco de Massamá. Obviamente eu, e outros, suspeitámos que o faziam mais uma vez porque estava prestes a sair uma reportagem, mas, entretanto, soube que não. Fizeram-no, por sua livre iniciativa, cumprindo assim o desígnio da transparência que tanto se exige, e assumindo assim o controlo da narrativa, evitando ter de estar sempre a reagir à agenda mediática.

Esta é a melhor estratégia e a mudança revela humildade, vontade de aprender e de adoptar melhores práticas.

Ainda há muito para saber, e há muito para aprendermos todos. Que todos – bispos, clero, leigos, jornalistas e especialistas em comunicação – o saibamos fazer com amor à verdade e em vista do melhor para a Igreja e para as vítimas, sejam elas pessoas que foram abusadas, sejam elas pessoas que foram falsamente acusadas.

Mais sobre este assunto dos abusos na Igreja

Conversa com Pedro Gil no Hospital de Campanha - Parte 1

Conversa com Pedro Gil no Hospital de Campanha - Parte 2

Hospital de Campanha - Os casos de D. Ximenes Belo e de D. José Ornelas

Cronologia de casos de abusos na Igreja em Portugal

Contributos para uma reflexão sobre casos de abusos na Igreja

Bons sinais da comissão independente

Wednesday 19 October 2022

“Reductio” Medieval vs. Reducionismo Moderno

Randall Smith
Quando, depois de uma série de disputas, o grande doutor medieval da Igreja, São Boaventura, foi finalmente admitido como Mestre Regente de Teologia na Universidade de Paris, deu uma das suas duas lições de admissão, um texto conhecido actualmente como “A Redução das Ciências à Teologia”. O título pode ser enganador, contudo, porque aquilo que Boaventura quer dizer quando usa a palavra reductio, em latim, é muito diferente do sentido da palavra actu
al “redução”.

Para nós, “redução” envolve tornar as coisas mais pequenas. Literalmente, porém, a palavra latina reductio significa “conduzir de volta”. Assim, a reductio das ciências à teologia proposta por São Boaventura não envolve diminuí-las para encaixarem na teologia. De todo. Pelo contrário, o seu objectivo era de mostrar como todas as disciplinas, operando de acordo com os seus métodos próprios, podem conduzir-nos a Deus.

Não é que estejamos à espera que os professores de química, biologia ou física façam teologia nas suas aulas. Muito pelo contrário. Partindo da compreensão da criação como uma expressão do divino Logos e a encarnação do amor de Deus, quando um professor de ciências naturais ensina aos seus alunos verdades sobre o mundo, ou sobre o ser humano, está com este acto a conduzir as pessoas ao Deus Criador. Está a ajudar os alunos a “ler” o que os académicos medievais chamavam “o Livro da Natureza”, escrito pela mesma mão que escreveu o “Livro das Escrituras”.

Se estes professores começarem as aulas com uma oração, ou se recordarem os seus alunos que “tudo o que estudamos ajuda-nos a compreender o que Deus escreve no Livro da Natureza”, isso é óptimo. Mas esse deve ser o pressuposto de toda a gente que participa na aula, e não a matéria em si. Não existe nenhum requisito de fazer acção social para provar que é católico. A caridade começa na sala de aula, lecionando com generosidade e excelência.

Professores de química, biologia e física cumprem o seu papel de fomentar uma educação católica precisamente a ensinar química, biologia e física. Não cabe aos professores de teologia dizer-lhes como devem leccionar nas suas aulas, tal como não lhe cabe dizer a um pedreiro como construir uma parede. Há muito que a tradição católica percebeu que cada disciplina tem a sua própria metodologia.

Porém, haverá sempre certas orientações que ajudam as instituições católicas a proteger-se de forças exteriores, umas das outras e até, por vezes, de si mesmas.

Uma universidade católica recordará a cada disciplina que deve evitar tornar-se subserviente às tentações do orgulho, da riqueza, ou do poder, e que não deve ajoelhar-se perante a coacção de governos ou outras agências estatais. A sua principal obrigação deve ser para com a verdade.

Assim, por exemplo, a Economia numa universidade católica nunca deve resumir-se ao lucro, as Ciências Políticas não podem focar-se apenas no poder e o estudo das outras disciplinas, incluindo filosofia e teologia, nunca devem servir apenas o prestígio profissional ou o orgulho. Não estamos na universidade para nos servirmos a nós mesmos ou aos nossos egos, mas aos nossos alunos. Nem devemos servir uma ideologia. Servimos a verdade, porque quando servimos a verdade é a Deus, que é a Verdade, que servimos.

Uma instituição católica também assegurará que cada disciplina respeita os seus próprios limites. Biólogos, químicos e físicos não devem estar a fazer afirmações filosóficas que não são sustentadas pelos métodos das suas disciplinas, tais como “a evolução prova que Deus não existe” (o que é um disparate). Da mesma forma, filósofos e teólogos não devem fazer afirmações sobre as ciências que ignoram os mais recentes desenvolvimentos científicos.

Em tudo o que faz, uma universidade católica deve praticar a reductio, mas deve resistir a todas as formas desnecessárias de reducionismo. Do que falamos aqui?

São Boaventura
Para os efeitos deste artigo, podemos identificar três formas de “reducionismo”.

Primeiro, o “reducionismo metodológico”, através do qual os cientistas procuram “reduzir” os fenómenos aos seus elementos constituintes. “Reduzimos” as coisas materiais às suas estruturas atómicas. “Reduzimos” os traços físicos às causas genéticas. Esta “redução metodológica” é comum às ciências naturais e próprio da sua metodologia.

O problema é que os cientistas, ou mais frequentemente o público, especialmente os media, também enveredam pelo “reducionismo epistemológico” – a afirmação de que depois de reduzirmos as coisas às suas partes constituintes já não há mais nada a saber sobre elas. Por vezes, de forma mais radical, envolvem-se em “reducionismo ontológico”, a afirmação de que as coisas não são mais do que as suas partes constituintes.

A tradição intelectual católica sempre resistiu a estas duas formas de reducionismo. Pedir aos cientistas para evitarem este tipo de erro não é mais do que pedir-lhes que sejam fiéis às suas próprias disciplinas e não enveredarem pela epistemologia ou metafísica.

Mais, uma instituição católica insistirá que todas as disciplinas se mantenham abertas à visão plena da pessoa e do florescimento humano que está no coração da tradição intelectual católica. Todos os que procuram sinceramente a verdade têm um lugar na universidade católica.

Já aqueles que odeiam a fé católica ou que acham que qualquer fé é ridícula, ou que acreditam que a visão católica da pessoa é odiosa e aberrante, ou que querem que a universidade católica procure o dinheiro e o prestígio de outras escolas, devem evitar tornar as suas vidas miseráveis numa universidade católica e arranjar emprego noutro lado qualquer.

Assim, a reductio de São Boaventura e o desejo da universidade católica de ver toda a verdade, seja de que disciplina for, como uma condução de volta a Deus, nada tem a ver com a afirmação do cientismo moderno de que o conhecimento científico é a única forma de conhecimento e de que toda a realidade, incluindo os humanos, não é mais do que uma coleção de átomos. A tradição intelectual católica afirma que toda a verdade que alcançamos sobre o mundo nos dá um vislumbre do amor criativo e da sabedoria de Deus.

Mas não há uma só disciplina que nos diga tudo o que precisamos de saber, porque as realidades que Deus criou, sobretudo os seres humanos, são muito mais do que aquilo que podemos compreender quando as reduzimos a algo mais pequeno, algo que possamos dominar e controlar.


Randall Smith é professor de teologia na Universidade de St. Thomas, Houston.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na terça-feira, 18 de Outubro de 2022)

© 2022 The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de reprodução contacte: info@frinstitute.org

The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing.

Monday 17 October 2022

Uma Igreja de abusadores, mas também de santos

Escrevo com atraso porque estive em Salamanca. Em breve espero poder explicar-vos porquê.

Desde que publicámos a primeira e a segunda parte da conversa com Pedro Gil, sobre os abusos em Portugal, vieram a público mais alguns casos que devem ser falados, incluindo um com o pároco de Massamá. Por isso, neste mais recente episódio do Hospital de Campanha, falamos sobre os casos que envolvem D. Ximenes Belo e D. José Ornelas. O que se sabe, quem sabe e desde quando, o que se diz, mas provavelmente não é verdade… Tudo discutido. Vale a pena ouvir!

No mesmo dia em que gravámos esta conversa saiu uma grande reportagem com mais alguns dados relativos ao caso envolvendo D. José Ornelas, que continuam a deixar grandes dúvidas, como revelo neste texto.

Esta semana a Comissão Independente deu uma conferência de imprensa em que expôs os mais recentes dados da sua investigação. Na cronologia tenho os dados principais, que infelizmente ficaram ensombrados pela polémica dos comentários de Marcelo Rebelo de Sousa.

Sempre que estiverem em baixo com as notícias dos abusos, lembrem-se que a Igreja também é constituída por homens e mulheres como esta freira que cuida sozinha de 150 crianças numa das favelas mais perigosas do Haiti, e estes padres da Ucrânia que ficam na linha da frente, apesar dos perigos.

Mudando de assunto, convido-vos a ler o meu mais recente artigo na revista dos missionários Combonianos World Mission, sobre como o Papa Francisco está a mudar o Colégio dos Cardeais, e as consequências das suas nomeações.

Conhecem aquela expressão atribuída a São Francisco: “Prega sempre, usa palavras se necessário”? O autor desta semana do The Catholic Thing em português argumenta que se calhar devíamos usar palavras mais vezes, sob perigo de estarmos a criar uma geração de analfabetos funcionais no que ao Cristianismo diz respeito. É um artigo certeiro e ao mesmo tempo divertido. Leiam e partilhem!

Termino com dois desafios. No dia 18 de Outubro realiza-se o evento “Um Milhão de Crianças Rezam o Terço”, promovido pela fundação AIS. Saiba mais, incluindo como se pode envolver. E no dia 22 realiza-se a já tradicional Caminhada Pela Vida. A participação de todos é importante, nem que seja para dar ânimo e alento a quem está mais directamente envolvido em tentar evitar o avanço da cultura da morte. Mais informações no Facebook e no Instagram.

Friday 14 October 2022

Hospital de Campanha - Episódio 11: Os casos de D. José Ornelas e D. Ximenes Belo

Já depois dos dois episódios gravados com o Pedro Gil, em que falámos da questão dos abusos na Igreja portuguesa mais de forma geral, surgiram dois casos envolvendo altas figuras da Igreja: D. Ximenes Belo, Nobel da Paz, acusado de abusos sexuais de menores, e D. José Ornelas, bispo de Leiria-Fátima e presidente da CEP, acusado de encobrimento.

Neste episódio olhamos mais atentamente para esses dois casos, analisando-os com base na informação de que dispomos, vendo o que é verosímel, o que não é, e o que a Igreja poderia ter feito melhor na forma como lidou com eles. 

É de assinalar que voltamos nesta conversa a contar com Duarte Castro, o nosso "expert" residente em assuntos envolvendo Timor. 

Na mesma noite em que conversámos sobre estes assuntos a TVI emitiu uma longa reportagem sobre um dos dois casos alegadamente envolvendo D. José Ornelas, comentei algumas dessas revelações aqui.

Foi uma boa conversa, que vale a pena ouvir. Prometemos que as próximas serão sobre temas um bocado mais alegres!





Mais sobre este assunto dos abusos na Igreja

Conversa com Pedro Gil no Hospital de Campanha - Parte 1

Conversa com Pedro Gil no Hospital de Campanha - Parte 2

Cronologia de casos de abusos na Igreja em Portugal

Contributos para uma reflexão sobre casos de abusos na Igreja


Wednesday 12 October 2022

Prega sempre o Evangelho. Usa mais vezes palavras

Peter Laffin

No mês passado casei-me com a minha linda e graciosa mulher. A melhor parte do copo-de-água foi quando nos sentámos os dois a ver amigos e família finalmente a conviver, a beber vinho e a divertirem-se na pista. Foi um vislumbre do Céu. Pareciam anjos iluminados.

Os meus amigos também gostaram de me ver no dia. Sobretudo aqueles que não me viam há algum tempo. O que fazes tu com uma mulherona destas?, brincavam, e eu ria-me, cúmplice.

Mas o que mais os surpreendeu foi a celebração tão marcadamente católica, que decorreu na Catedral de St. Patrick, em Norwich, no Connecticut. Converti-me do ateísmo ao catolicismo quando tinha vinte e tal anos (agora tenho 39). Isso não era surpresa para ninguém, mas poucos esperavam que a minha fé tivesse primazia num dia que era, ostensivamente, sobre mim e a minha mulher.

Mesmo aqueles com quem tenho estado mais nos últimos anos ficaram admirados com a falta de subtileza. O meu círculo social manteve-se bastante secular-liberal depois da minha conversão. Uma vez que me converti já depois da universidade, nunca fiz parte de grupos de jovens católicos. E embora tenha vivido a minha fé de forma aberta, nunca a esfreguei na cara dos meus amigos. Acho (espero) que com isso ganhei o respeito deles ao longo dos anos.

Já ouvi conversas suficientes em festas para saber o que pensam sobre o Catolicismo. E certamente já vi o que chegue nas redes sociais.

Mas o amor deles por mim é superior ao ódio pela religião. Se é bom para mim, está bem para eles. E por isso foram capazes de apreciar a minha fé enquanto terapia, como se tivesse começado a praticar ioga ou adoptado uma dieta mais saudável. O catolicismo era apenas mais um item no meu plano de bem-estar pessoal, por pouco apelativo que lhes parecesse.

E por isso o nosso casamento profundamente católico foi um choque para eles, como teria sido caso eu tivesse casado num estúdio de ioga e tivesse dado graças e todo o louvor ao Mestre Yogi.

“Eras uma pessoa tão ansiosa”, disse-me um velho amigo durante a festa. “Acho que a religião te tem feito bem.”

E é verdade. Eu era uma desgraça antes, por isso aceitei o elogio.

“Eu sabia que te tinhas convertido ao catolicismo”, disse outro, “mas não sabia que eras mesmo católico”

“Nunca o escondi”, respondi. “Mas não andavas por aí com uma grande cruz à volta do pescoço, nem nada”, disse ele.

“O terço pendurado do espelho retrovisor não conta?”

“Seja como for”, disse ele. “Estás com bom ar. Estou muito contente por ti”, e deu-me um grande abraço.

Desde que entrei para a Igreja sempre fui a favor da abordagem de mostrar mais e falar menos, no que respeita a evangelização. “Prega sempre o Evangelho. Se necessário, usa palavras”, disse, supostamente, São Francisco de Assis, embora tenha dificuldade em imaginá-lo a usar tais expressões melosas.

É um belo sentimento: devemos aspirar a viver o Evangelho de tal forma que deixaria de ser necessário recorrer aos argumentos racionais. Mas é também muito pouco prático (eu não sou suficientemente santo para o conseguir) e suspeitamente conveniente. Se nunca dizemos quem somos, a tentação de levar uma vida dupla torna-se demasiado forte.

O modelo de pregar pelo exemplo também nos dá uma escapatória para não termos de explicar as partes mais complexas da nossa fé. Mesmo as premissas mais básicas – que a nossa existência se deve a um Criador que, qual bom progenitor, respeita a nossa liberdade na mesma medida em que nos ama, loucamente – requer preparação, prática e esforço.

São Francisco a pregar, com palavras
Durante décadas os católicos americanos, incluindo eu, pregaram tão zelosamente pelo exemplo que agora temos uma geração inteira que é funcionalmente analfabeta no que diz respeito ao Catolicismo. A única coisa que a maioria dos jovens sabe sobre a Igreja é que a odeia.

Partem do princípio que quando usamos a palavra “Deus” nos estamos a referir a um Pai Natal cósmico que só concede desejos a quem se benze antes das refeições. Ou a uma projecção freudiana para a realização de desejos (a descrença em Deus encaixa melhor aqui para uma espécie com inclinação para o pecado). Ou então a um moderno Ódin, um Ser Muito Grande entre outros Seres Muito Grandes, a batalhar no espaço.

Ainda no mês passado o popular filósofo Sam Harris tentou provar a inexistência desta versão particular de Deus, referindo que mesmo os telescópios mais avançados não o revelam.

A sério?

Pessoas como estes meus amigos também não fazem ideia do que significa “Cristo”. Pensam que Jesus – se é que existiu – era uma versão primordial do guerreiro de justiça social (e possivelmente um zombie, o que até consideram bastante fixe). Não sabem o que diferencia a Igreja Católica dos Presbiterianos ou da Igreja Baptista de Westboro. Não conseguiriam distinguir o Espírito Santo do Novo Banco.

Porquê? Porque os católicos não lhes explicaram.

Pois bem, acabou. Chegou a altura de pregarmos o Evangelho e de usarmos palavras mais vezes, sobretudo aqueles de nós com amigos e conhecidos no mundo secular.

Para que fique claro, não estou a sugerir começar cada conversa com as palavras: “Já ouviste a Boa Nova?”, nem que levemos todas as conversas para uma explicação da Presença Real de Cristo na Eucaristia.

Só peço que fiquemos atentos a oportunidades evangélicas que se possam apresentar. Que quando se abre uma brecha numa conversa, ajudemos a escancarar a porta para que a luz possa entrar.

Para mim, um bom começo seria uma resposta à reacção dos meus amigos ao meu "Casamento Muito Católico".

Poderia explicar-lhes que não é por razões terapêuticas que tenho a minha fé, embora seja saudável. De facto, não pratico a minha fé por nenhuma razão secundária, mas sempre como um fim em si mesmo. Porque deixar-me morrer na Luz é o único acto racional. Porque cada vez que penso que compreendi Cristo ou senti toda a força do seu abraço, abre-se um novo abismo que me engole. Porque o Catolicismo é verdade e beleza sem fim.

Mas acima de tudo porque estou apaixonado. E porque, inexplicavelmente, a Luz também está apaixonada por mim.

Talvez lhes diga isso mesmo. Talvez tenha acabado de o fazer.


Peter Laffin escreve de New England. O seu trabalho mais recente encontra-se no The Catholic Thing, The Washington Examiner, e The National Catholic Register.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing no Domingo, 9 de Outubro de 2022)

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Tuesday 11 October 2022

Abusos na Igreja. O caso de Abel Maia e de Roberto Sousa

Padre Abel Maia

Recentemente o presidente da CEP, D. José Ornelas, foi acusado de dois casos diferentes de encobrimento de abusos sexuais. Primeiro, foi em relação a alegados casos que teriam decorrido em Moçambique. O assunto foi tema durante alguns dias até que o jornal SOL publicou uma reportagem em que as alegadas vítimas admitem que foram pagas para dizer que tinham sido abusadas, e que põe seriamente em causa a credibilidade do denunciante.

O outro caso envolve alegados abusos cometidos pelo padre Abel Maia, ex-dehoniano, agora ao serviço da arquidiocese de Braga.

Na noite de segunda-feira o programa “Exclusivo” da TVI, passou uma longa reportagem, composta na sua maior parte por declarações do padre Roberto Sousa, em que este acusa D. José Ornelas e outros superiores dehonianos de terem encoberto este caso.

Vale a pena olhar mais de perto para os dados de que dispomos neste momento.

O caso surgiu em 2014 quando o padre Roberto Sousa escreveu uma carta ao bispo do Porto ameaçando revelar situações de impropério sexual, incluindo um caso de abusos, se fosse retirado da sua paróquia de Canelas. O bispo na altura era D. António Francisco dos Santos, que, entretanto, já morreu. O bispo não hesitou e entregou a carta ao Ministério Público, para que o alegado caso de abusos fosse investigado.

Este dizia respeito ao padre Abel Maia. Segundo a imprensa da época, um homem dizia que em 2003 o esse padre lhe tinha tocado na zona dos órgãos genitais, por cima das calças. Na altura dos factos a alegada vítima teria 20 anos. Esta informação consta de um artigo do jornal i, de 2015. Desde a altura em que o caso foi mais falado, até há dias, nunca se tinha alegado mais nada sobre o padre Abel.

O caso foi investigado pelo Ministério Público e arquivado por falta de testemunhas – a vítima negou os factos quando foi chamado a depor –, por falta de indícios e por prescrição.

O padre Abel Maia processou então o padre Roberto Sousa por difamação, mas este não chegou a ser julgado porque os dois chegaram a um acordo, em que o padre Roberto se comprometeu a publicar um pedido de desculpas públicas pelo que tinha dito sobre o padre Abel. Esse pedido de desculpas nunca foi publicado.

Esta situação ressurgiu agora, com D. José Ornelas a ser acusado de encobrimento. Num esclarecimento prestado pela Arquidiocese soube-se que afinal tinha havido um importante desenvolvimento. Os dehonianos fizeram um relatório, enviaram-no para Roma e o Vaticano decidiu, com base nesse relatório, aplicar uma pena canónica de cinco anos ao padre Abel, pena que já foi cumprida.

Antes de passar às revelações feitas no programa de ontem, vejamos já um dado importante. Apesar de na altura ter sido noticiado como um caso de abuso de menores, a verdade é que todos os indícios apontavam para um caso de assédio entre duas pessoas maiores de idade. Em lado algum se dizia que a vítima era menor de idade na altura dos alegados factos.

Na reportagem de ontem o padre Roberto Sousa falou longamente sobre o caso. Vou analisar em alguns pontos o que foi dito.

Padre Roberto Sousa
1 – Na entrevista ele diz que só agora é que soube que tinha havido uma pena canónica imposta ao padre Abel, que se houve pena canónica é porque houve culpa, e que essa pena não foi cumprida. Ele assume que a pena seria suspensão total do ministério.

Há vários problemas aqui. Se ele não sabia que havia uma pena, é porque não conhece o processo, e se não conhece o processo não sabe qual foi a culpa apontada ao padre Abel, nem qual a pena imposta. Dizer que a pena era de suspensão total do ministério é adivinhação. A informação que eu obtive é de que a pena não era de suspensão, mas de não ter contacto com menores e que esta foi “escrupulosamente cumprida”.

2. A alegada vítima não quis gravar, mas segundo a reportagem ele terá dito que afinal mentiu quando foi depor, e que as alegações são mesmo verdade. A própria reportagem, porém, diz que estes abusos terão começado “no início dos anos 2000”, e que a vítima tem agora 40 anos, o que faz dele maior de idade na altura dos alegados factos.

A única pessoa que disse publicamente, até agora, que esta vítima foi também abusada quando era menor de idade foi o padre Roberto, ontem, na reportagem.

Contudo, convém lembrar que, entretanto, houve uma investigação do Ministério Público, e houve um processo canónico. Em nenhuma altura se falou de abuso de menores. Se, no processo canónico, se tivesse concluído que tinha havido abuso de menores, então a pena aplicada pelo Vaticano jamais seria de cinco anos, pois a política é de tolerância zero e na altura em que a pena foi aplicada – depois de 2015 – o Vaticano estava a suspender padres em todo o mundo às centenas, não existindo qualquer razão credível para abrirem uma excepção para este caso particular.

Pode ser verdade que tudo começou quando a vítima tinha 14 anos, como alega o padre Roberto? Isso leva-nos ao terceiro ponto.

3. É o padre Roberto digno de confiança? Ora aí está a questão fulcral. É que estamos a falar de um homem que agora acusa os outros de encobrir, mas em 2014 isto só se tornou público porque ele escreveu uma carta ao bispo do Porto a ameaçar divulgar o caso se o bispo o mudasse de paróquia. Ou seja, está-nos a ser pedido que condenemos na praça pública um homem por abuso de menor, e outros por encobrimento, com base na palavra de um chantagista.

O padre Roberto teve várias oportunidades para fazer uma denúncia completa destes alegados factos às autoridades competentes, mas nunca o fez, e vem agora acusar os outros de encobrir? Quando ainda por cima os outros – neste caso D. José Ornelas e outros responsáveis dehonianos – de facto agiram logo em 2003, afastando o padre Abel do local para evitar que ele tivesse mais contacto com a alegada vítima – uma vez que D. José Ornelas diz que percebeu, independentemente dos avanços e recuos no testemunho, que existia ali uma relação de dependência emocional – e mais tarde abrindo um processo e elaborando um relatório, que foi enviado para Roma, de onde saiu uma pena canónica.

O padre Roberto teve uma frase curiosa na sua entrevista de ontem. Foi-lhe perguntado porque é que não tinha uma paróquia actualmente, e respondeu que aceitar uma paróquia seria aceitar um preço pelo seu silêncio. O problema é que nós bem sabemos que o preço do silêncio dele foi ele que estabeleceu, numa carta escrita a D. António Francisco dos Santos, e era precisamente uma paróquia.

Resumindo, temos dois cenários:

Primeiro: É tudo verdade, o padre Abel Maia abusou de um rapaz, e mais tarde adulto, durante vários anos. O caso era conhecido dos superiores dos dehonianos, mas foi encoberto até ao ponto em que já não o podiam esconder mais e fizeram um relatório que foi enviado para Roma, mas no qual esconderam o facto de se tratar de um caso de abuso de menores, dizendo ser apenas um caso de assédio de um adulto, na esperança de que o padre Abel, que entretanto deixou de ser dehoniano e passou a ser diocesano, não fosse afastado do sacerdócio, mas obtivesse uma pena mais leve. Este cenário depende, por enquanto, unicamente da integridade de um padre reconhecidamente chantagista e conflituoso.

Segundo: Isto tudo não passa de uma vingança de um padre que tem um passado problemático a vários níveis, que recusou mudar de paróquia quando o bispo o ordenou, que tentou chantagear o bispo no seguimento da sua insistência, que escapou a um julgamento por difamação prometendo publicar um pedido de desculpas num jornal de grande tiragem que depois nunca foi publicado e que hoje em dia celebra missa para os seus fiéis seguidores num armazém em Canelas, porque está sem nomeação.

Há uma expressão em inglês muito curiosa, que não tem equivalente em português, mas que acredito aplicar-se ao padre Roberto: I trust him as far as I can throw him.


Mais sobre este assunto dos abusos na Igreja

Conversa com Pedro Gil no Hospital de Campanha - Parte 1

Conversa com Pedro Gil no Hospital de Campanha - Parte 2

Cronologia de casos de abusos na Igreja em Portugal

Contributos para uma reflexão sobre casos de abusos na Igreja


Friday 7 October 2022

Nova denúncia de abusos em Lisboa - Massamá

Soube-se esta sexta-feira que um padre pediu a suspensão do seu ministério no Patriarcado de Lisboa no seguimento de ter sido acusado de abuso sexual de menores, numa denúncia feita à Comissão Diocesana de Lisboa. 

Algumas reflexões sobre este caso.

O timing. Já antes critiquei o Patriarcado de Lisboa por falhas na comunicação destas situações, por muitas vezes o fazer em reacção quando sabe que estão prestes a sair notícias ou reportagens sobre os casos que até então eram mantidos em segredo. Argumentei que esta não me parece uma boa política de comunicação, primeiro porque deixa a narrativa nas mãos da imprensa e, segundo, porque não favorece a transparência e pode, eventualmente, facilitar o encobrimento. 

Esperemos para ver se foi o caso agora, mas pelo menos até ao momento não saiu nenhuma reportagem de que eu saiba. Resta perceber porque é que o Patriarcado decidiu divulgar os detalhes deste caso, incluindo o nome do suspeito, hoje, se o caso, como veremos, já tem pelo menos alguns meses.

O nome. Também já critiquei o facto de o Patriarcado não seguir uma linha no que diz respeito à divulgação do nome dos suspeitos. Alguns defendem que é melhor mesmo divulgar sempre o nome, assim evitando lançar uma suspeita sobre todos os outros sacerdotes, mas outros acham que não. Eu próprio não tenho a certeza, vejo vantagens e desvantagens em ambas as abordagens. Mas pelo menos deve haver uma linha. Nos mais recentes casos, nos primeiros dois não se revelou o nome do suspeito (o caso das mensagens impróprias enviadas num grupo de Whatsapp e na suspeita de violação de uma mulher adulta) mas agora revelou-se. [Na primeira versão deste artigo escrevi, por engano, que no caso das mensagens tinha-se revelado o nome. Não foi o caso]. 

O tal "segundo caso"? Quem me tem acompanhado, e a cronologia que mantenho sobre este assunto, sabe que em meados de julho o ex-procurador Souto Moura, que faz parte da comissão diocesana, falou em duas denúncias recebidas pela comissão desde a última vez que tinham sido revelados números, que tinha sido em maio. Uma dessas denúncias, sabia-se já na altura, dizia respeito ao tal caso das mensagens no grupo do Whatsapp, mas não se sabia qual era a segunda. Eu tentei saber alguns dados sobre esse tal segundo caso, sem sucesso. Não obtive sequer resposta ao email que enviei. Mais tarde D. Manuel Clemente, numa carta aberta, confirmou que havia um segundo caso que tinha sido enviado para Roma e que quando viesse uma decisão seriam revelados mais detalhes, tudo bem. 

Será este, então, o segundo caso? Tudo indica que sim. Mas isso levanta uma questão, que se prende com a primeira, do timing. Se os dados só iam ser revelados quando viesse resposta de Roma, então essa resposta já chegou? Se sim, qual foi? Se sim, porque continua em segredo de justiça no foro canónico? Não estou a fazer acusações, simplesmente a levantar questões que padecem de resposta. 

A data da suspensão. Por fim, um dado que pode ser apenas um mal-entendido, mas também pode ser importante, e eu não tenho a informação toda. Souto Moura deu a tal entrevista em meados de julho. Se este é o segundo caso, então isso significa que a Comissão Diocesana recebeu a denúncia pelo menos até ao dia 15 de julho, provavelmente antes. 

Mas a notícia da Renascença diz que o padre pediu a sua própria suspensão da paróquia, onde não comparece "desde agosto". Repito, isto pode ser um mal-entendido. Se calhar o padre deixou de aparecer mal se soube da denúncia, em julho, e a pessoa que falou com a Renascença enganou-se nas datas. É perfeitamente possível. Mas se não foi esse o caso, então como se explica que só se suspendeu em agosto?

Porque é que eu faço estas perguntas? Porque é precisamente nestes detalhes que se joga a transparência na resposta à crise dos abusos na Igreja e como estamos cansados de saber, sem essa transparência o problema apenas tenderá a eternizar-se. 

E já que estamos a falar de transparência... Aqui está a nota do Patriarcado sobre este assunto. Para a encontrar é preciso ir ao separador "Documentos" e depois "Outros Documentos", que é o décimo ítem da lista. Na homepage, só aparece muito lá para baixo, a seguir aos cânticos, aos mais recentes tweets e à agenda.

É possível que surjam respostas a estas questões nos próximos dias. Estarei atento, mas se alguém tiver mais informação, ou se virem noutros órgãos de imprensa mais dados, agradeço que me os façam chegar. 


 Ouça os dois episódios do Hospital de Campanha sobre os abusos em Portugal

Conversa com Pedro Gil - Parte 1

Conversa com Pedro Gil - Parte 2

Bélgica condenada por eutanásia e sanções para Ximenes

Há sondagens que indicam que há cada vez mais católicos a duvidar da presença real na Eucaristia? Neste artigo do The Catholic Thing, Randall Smith argumenta que o problema está a montante. Conseguimos acreditar num Deus que nos ama pessoalmente? Que se interessa por nós? Tudo segue daí.

A semana passada já tinha falado da situação de D. Ximenes Belo, que tanto quanto sei continua desaparecido. Entretanto soubemos que o Vaticano impôs-lhe sanções. Têm aqui a notícia em português, aqui o meu artigo para o The Tablet, em inglês.

O que é interessante as apenas em 2019, o que deixa por explicar tudo o que se passou nos 17 anos anteriores. Este é um dos assuntos que, se Deus quiser, será discutido no próximo episódio do Hospital de Campanha. Será o terceiro episódio seguido sobre a questão dos abusos, o que é um sinal dos tempos. Se ainda não ouviu os dois episódios de conversa com Pedro Gil sobre os abusos em Portugal, faça-o aqui e aqui.

Este e outros casos, incluindo as recentes alegações contra D. José Ornelas, continuam a ser reunidas aqui.

Temos notícias boas do Líbano, onde a fundação Ajuda à Igreja que Sofre ajudou uma escola técnica a resistir à crise e a continuar a servir a população, mas más notícias de Moçambique, onde o bispo de Nacala contou, à mesma instituição, como terroristas degolaram três cristãos e mataram outras oito pessoas nas últimas semanas.

Ontem surgiu uma notícia que infelizmente, não teve eco em Portugal. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem condenou a Bélgica num caso sobre a eutanásia. O Tribunal considerou que a Bélgica violou o direito à vida na forma como lidou com o processo de investigação à morte de uma senhora que sofria de depressão. O processo de eutanásia foi aceite por um médico activista da eutanásia que antes tinha recebido dela um donativo. A família dela nunca foi avisada. Depois de morta, quando se abriu um processo para saber se tinha havido irregularidades, o mesmo médico fez parte da comissão! Tudo inacreditável… Mas o que vale é que por cá nos dizem que vai ser tudo diferente, vai tudo correr bem.

Eu entrevistei em tempos o advogado do filho desta senhora, que processou o estado belga. A versão portuguesa está aqui, a versão integral, em inglês, está aqui. 

Wednesday 5 October 2022

Uma Fé Eucarística

Sondagens recentes revelam que muitos católicos já não acreditam na presença real de Cristo na Eucaristia. Não faço ideia como é que se resolve este problema, mas talvez seja útil considerar as seguintes questões.

Começamos com a Eucaristia. Acredita que Cristo pode estar verdadeiramente presente na Eucaristia, tal como se apresentou aos apóstolos no Cenáculo depois da crucifixão? É uma premissa assumidamente difícil, uma vez que aos nossos olhos continua a parecer apenas pão e vinho. É por isso que na Idade Média a Igreja tentou clarificar o que significa a “presença real” na Eucaristia dizendo que, embora os acidentes de pão e vinho permaneçam, a substância é agora o corpo e o sangue de Cristo. Sim, continua a parecer pão e vinho, mas Cristo está verdadeiramente presente.

Esta crença na presença real de Cristo na Eucaristia, e não meramente espiritual, mas real – tão real como quando temos um amigo na mesma sala – anima a Igreja Cristã desde o seu começo, de tal forma que os pagãos acusavam os cristãos de canibalismo.

De facto, a Igreja acredita que Cristo está ainda mais intimamente presente do que esse tal amigo, uma vez que Ele não está apenas “próximo”, mas “dentro” de nós, com o poder de nos transformar de maneiras que um amigo, por bom que seja, simplesmente não consegue.

Mas claro que esta premissa da “presença real” de Cristo na Eucaristia se baseia noutra, o que nos leva à próxima questão. Acredita mesmo que Cristo estava presente – corporalmente – no cenáculo depois de ter sido crucificado, tão presente como esteve para os discípulos durante a sua vida terrena, antes da crucifixão?

Também isto é difícil de conceber. O Evangelho deixa claro que para os apóstolos não foi mais fácil. As portas e as janelas estavam fechadas e trancadas, mas eis que Ele estava presente. Por isso, naturalmente, pensaram tratar-se de um fantasma. Mas os Evangelhos fazem questão de dizer que não era um fantasma, estava presente em corpo. Tocaram-no, comeram com Ele, mas depois, tão depressa como apareceu, já não estava presente.

Esteve presente de forma corporal, mas com um corpo que não sofria das mesmas limitações que os nossos. É evidentemente estranho – a não ser, claro, que Ele fosse Deus feito homem.

Então temos a nossa terceira questão. Será que Deus, o Criador de toda a realidade, encarnou como uma verdadeira pessoa humana, de nome Jesus, num dado momento da história? Sejamos francos: esta é a afirmação cristã mais difícil para membros de outras tradições religiosas aceitarem ou respeitarem. O Deus transcendente, acreditam, simplesmente não se pode rebaixar ao ponto de se tornar um único ser humano, que viveu num determinado lugar, num determinado tempo da história.

Parece que estamos a equilibrar todo o destino do cosmos na cabeça de um alfinete. Algo tão grande não se pode fazer tão pequeno. Algo tão poderoso não se pode tornar tão fraco. Se o mundo antigo sabia uma coisa, era que os deuses não podem morrer. Afirmar que o seu Deus revelou o seu poder ao deixar-se crucificar não é a coisa mais evidente do mundo. Quando as pessoas olharam para Ele, viram que era apenas mais um ser humano.

Mas os cristãos acreditam que Deus estava verdadeiramente presente – por inteiro – nele.

Porém, tudo o que considerámos até agora baseia-se naquilo que é talvez a premissa mais radical de todas. Será possível, perguntamos, que aquele que é o Criador de toda a realidade – todo o cosmos, com triliões de galáxias, estrelas, planetas, cometas e buracos negros, na maioria a anos luz de nós – nos ama, e ao ponto de se entregar por inteiro e desinteressadamente a nós para restaurar o dom da humanidade que nós manchámos tão gravemente com o nosso egoísmo e pecado?

Não será essa a raiz do problema? Já não basta a dificuldade de acreditar que existe um Deus que criou a vastidão e a complexidade de tudo quanto há, para agora ter de acreditar que Ele nos conhece e gosta de nós, de todos nós? É simplesmente demasiado difícil de conceber.

Não estou aqui a argumentar a favor da Eucaristia. Estas questões têm simplesmente o propósito de clarificar a questão. Será que o problema é mesmo a questão de Cristo estar presente na Eucaristia, ou será que as dúvidas e dificuldades começam muito mais atrás e vão mais fundo? Faria sentido. Nada do que eu proponho aqui é fácil ou evidente. De facto, parece-me que se torna cada vez mais difícil quanto mais fundo se vai.

Mas depois de aceitar a ideia enorme de que Deus nos ama de tal forma que encarnou como um ser humano de verdade, num corpo humano vulnerável e mortal de verdade, e morreu numa cruz, acreditar na possibilidade de Ele se fazer presente no pão e no vinho parece coisa de pouca monta.

É um pouco como acreditar que Cristo pode ressuscitar os mortos, mas depois duvidar da sua capacidade de curar uma pessoa com lábio leporino. Porquê? É demasiado insignificante? Não é suficientemente “grande” para o seu Deus grande e poderoso? Então e você e os seus problemas também são demasiado insignificantes para o seu Deus grande e poderoso?

Talvez essa seja a verdadeira questão. O universo está vazio? Alguém se importa? Haverá algum sentido para a vida, sobretudo diante da morte?

Se estamos interessados em reavivar a fé na Eucaristia, talvez devêssemos começar por aqui. Se não conseguimos lançar as bases sobre o amor de um Deus-Criador que se fez homem e morreu por nós, então tudo o resto será edificado sobre a areia e não serão brochuras com imagens de padres penteadinhos a elevar cálices que nos safam.


Randall Smith é professor de teologia na Universidade de St. Thomas, Houston.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na segunda-feira, 3 de Outubro de 2022)

© 2022 The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de reprodução contacte: info@frinstitute.org

The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing.


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