Wednesday 30 January 2019

Asia BeFree

A grande notícia dos últimos dois dias é a libertação final (?) de Asia Bibi no Paquistão, depois de o Supremo Tribunal daquele país ter rejeitado o recurso à sua absolvição.

Marcelo Rebelo de Sousa condecorou ontem o cónego João Seabra. Uma distinção merecida para uma das mentes mais brilhantes da Igreja portuguesa.



Se pensa que o latim é uma reserva de conservadores e tradicionalistas elitistas, então pense de novo. Respondendo a um artigo prévio de David Warren, o professor de latim Daniel Gallagher desmistifica aquela que é ainda a língua oficial da Igreja Católica,de forma bem-disposta e muito interessante. A ler!

Por hoje é tudo, estarei de folga agora uns dias e volto na segunda-feira, se Deus quiser!
Cumprimentos a todos,
Filipe


Uma Carta ao Povo: Resposta a David Warren

Daniel Gallagher
Nota: Num artigo recente do The Catholic Thing, o autor David Warren propôs a criação de um jornal inteiramente redigido em latim. Fê-lo na esperança que um jornal desses fosse lido apenas por uma elite esclarecida, podendo assim passar ao lado das polémicas e do politicamente correcto. No artigo de hoje, o latinista Daniel Gallagher responde com humor, mas também com dados muito interessantes, contrariando essa ideia de Warren.


Tendo redigido centenas de “cartas aos príncipes” no gabinete de tradução para latim do Vaticano, sinto-me na obrigação de responder à recente proposta de David Warren de se criar um jornal diário em latim. Se alguém estiver disposto a financiar o projeto, mando a primeira edição para a gráfica já amanhã.

Mas a minha motivação seria muito diferente da sua. Em vez de oferecer “uma pequena ilha elitista de sanidade e tranquilidade espiritual”, eu gostaria que o jornal gerasse as mais vivas discussões e debate, como sempre aconteceu, e sempre acontecerá, em torno e através do latim. Eu gostaria que o jornal fosse dirigido ao populus e não apenas aos príncipes.

Mas mesmo que eu partilhasse o desejo de Warren por um público limitado, ele engana-se se pensa que “um jornal em latim passaria por baixo do radar progressista”. Qualquer pessoa envolvida no mundo dos clássicos sabe até que ponto o progressismo penetrou este ramo.

Mary Beard, uma classicista brilhante de Cambridge, está constantemente a levantar a voz progressista em relação a assuntos que variam entre a imigração, o feminismo e o terrorismo. Donna Zuckerberg acaba de publicar um livro fascinante, chamado “Not All Dead White Men: Classics and Misogyny in the Digital Age”. São mulheres por quem tenho grande admiração, por mais que discorde fundamentalmente delas em várias frentes.

Seja como for, elas – e outras como elas – seriam capazes de devorar um jornal em latim mais rapidamente do que muitos conservadores.

Na verdade, a atitude de Warren em relação ao latim representa um dos fatores que contribuiu para a sua queda. A ideia de que é apenas para os inteligentes, os sofisticados, os esclarecidos. Que é algum tipo de código secreto que separa os certos dos errados.

Mas o latim nunca foi nada disso, nem deve ser. Eu já tive o prazer de ensinar latim a alunos de muitas escolas diferentes, e em várias universidades, públicas, privadas e algumas católicas.

Os que têm fundações sólidas em latim costumam vir de famílias muito secularizadas e progressistas. Claro que também há católicos, e estes costumam pertencer a dois grupos: os que adoram falar da importância do latim, mas mal conseguem localizar um sujeito, quanto mais um objecto, e os que têm grande fluência por terem aprendido bem em casa.

Infelizmente este grupo é significativamente mais pequeno que aquele. Foi depois de termos recebido uma quantidade imensa de cartas – em italiano, espanhol, inglês, francês, alemão e polaco – a perguntar “porque é que o Papa não faz tweets na língua oficial da Igreja”, que eu e os meus colegas do Gabinete de Latim do Vaticano, propusemos que o passasse a fazer. Os autores das cartas diziam que não o fazer era uma mostra de desprezo pela civilização ocidental – se me é permitido usar esse termo. E têm razão.

E então começámos a fazer tweets em latim, e rapidamente descobrimos que o latim era algo que – ao contrário das expectativas de Warren – podia ser lido por praticamente qualquer pessoa. É verdade que algumas das pessoas que seguem o Papa no Twitter o fazem apenas por ser uma coisa nova, mas a nossa pesquisa mostrou que pelo menos uma maioria conhecia algum latim.

Professor e três alunos
Talvez a melhor prova seja o facto de que os comentários e os retweets da conta em latim são muito mais civilizados, pensados e humanos do que os das contas em vernáculo. E talvez seja isso que representa um modelo alternativo à terrível polarização que existe em quase todo o resto das redes sociais.

No seu artigo, Warren cita o meu incomparável professor e antecessor no Gabinete de Latim, o padre Reginald Foster: “Se não sabes as horas, nem o teu nome, nem onde estás, não tentes aprender latim, porque ele borra-te na parede como se fosses uma mancha de óleo”.

Mas acontece que não há falta de pessoas que queiram ser borradas na parede. São pessoa que anseiam pela “ordem mental” e a “consistência intelectual” que Warren tão correctamente louva.

É verdade que o latim privilegia a razão e a consistência intelectual, e é por isso que se devem empreender todos os esforços não só para divulgar o conhecimento do latim, mas para que as pessoas sejam fluentes. Deve promover a discussão, e não abafar ou escondê-la. Pode e deve ser lida por quase toda a gente porque é uma forma civilizada e focada de abordar tópicos “perigosos”.

O padre Foster sempre insistiu que os seus cursos não são sobre religião, teologia, filosofia e muito menos sobre “teoria literária”. Mas qualquer pessoa que tenha frequentado os seus cursos terá sido obrigada a pensar e a aprender sobre estes tópicos e muitos outros. Sim, mesmo a teoria literária.

Pode-se fazer qualquer uma dessas coisas, insiste Foster, mas primeiro é preciso saber latim. O Instituto Paideia, edificado sob o legado do padre Foster, foi fundado “para fornecer oportunidades para o estudo rigoroso e intensivo do latim e do grego de todos os períodos históricos, para inspirar os estudantes a formar relações pessoais próximas com os clássicos através de experiências de aprendizagem extraordinárias e para aumentar o acesso a, e interacção com, as humanidades clássicas através de todos os sectores da sociedade.”

Os instrutores e os alunos são uma misturada de ateus seculares, agnósticos curiosos, católicos radicais e reaccionários e muita coisa pelo meio. As discussões nos eventos da Paideia, que frequentemente se fazem em latim, invariavelmente abordam as questões mais profundas da vida, mas fazem-no porque, em primeiro lugar, têm por objectivo o domínio do texto em latim.

Sim, é verdade. Precisamos de um jornal em latim porque, como Warren sugere, isso facilitaria “o diálogo entre pessoas de diversas tradições linguísticas” e restaurava o “verdadeiro cosmopolitismo”. Mas atenção: se quer juntar-se ao “latinosfério” encontrará tudo menos um grupo elitista de conservadores. Pelo contrário, encontrará todas as raças, classes sociais, orientações e opiniões que existem à face da terra.

A diferença é que estas pessoas estão dispostas a entrar num diálogo educado e humano, baseado no conhecimento histórico, prático e teórico que se alcança através da leitura de excelentes livros na sua língua original.

Assim, um jornal em latim seria um catalisador magnífico para essa sanidade, mas uma sanidade que acolhe a diversidade e adora uma boa discussão.


Daniel Gallagher é professor de latim na Universidade Cornell. Trabalhou durante dez anos na Secção de Latim do Secretariado do Estado do Vaticano.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing no domingo, 27 de Janeiro de 2019)

© 2019 The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de reprodução contacte: info@frinstitute.org

The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing.

Monday 28 January 2019

JMJ - It's coming home

Por força das circunstâncias, estive fora vários dias e sem conseguir mandar o mail noutros. Peço desculpa pelo silêncio, sobretudo numa altura tão importante para a Igreja portuguesa, com o anúncio das JMJ de 2022 para Lisboa.

Aqui encontram todos os textos feitos no âmbito das Jornadas do Panamá, mas deixem-me destacar estes, que têm a minha mão:


A directora de informação da Renascença lança um “alerta vermelho ao Estado laico

No avião de volta para Roma o Papa falou do aborto, do celibato, da Venezuela e disse que não devemos ter expectativas exageradas sobre a cimeira dos abusos, marcada para Fevereiro.

No meio disto tudo, uma notícia triste das Filipinas, onde um atentado ontem matou 27 pessoas numa catedral.

Deixo-vos ainda com os últimos dois artigos do The Catholic Thing. Randall Smith escreve sobre o perigo dos “lugares seguros” nas universidades e Robert Royal, no dia da Caminhada pela Vida nos EUA, diz que no meio dos escândalos que se abatem sobre a Igreja, podemo-nos orgulhar de sempre ter mantido erguido o estandarte da causa pró-vida. Leiam e partilhem!

Wednesday 23 January 2019

Fé, Razão, Vida

A 46ª Caminhada Pela Vida que se realiza hoje [sexta-feira, 18 de Janeiro] em Washington não é um evento católico. Ao longo dos últimos anos tem sido muito gratificante ver um aumento no número de evangélicos, outros protestantes e judeus – como não adorar o som do Shofar a ser soprado do palco, antes de a multidão arrancar –, mórmones, muçulmanos e ainda outros a participar. Todos os que se têm vindo a aperceber que matar os mais pequenos e vulneráveis da espécie humana não tem nada de humano nem ajuda em nada as mulheres, que são mortas através do aborto às dezenas de milhões, em todo o mundo, simplesmente pelo facto de serem do sexo feminino.

Mas a caminhada – e a causa pró-vida – também não são, verdadeiramente, um tema religioso. É sempre bom ver na caminhada os Ateus pela Vida, mas também é uma recordação importante. Não somos contra o aborto por se opor a um qualquer dogma religioso. Se fosse esse o caso – como muitos defensores do aborto afirmam, erradamente – seria difícil evitar a acusação de estarmos a tentar “impor a nossa religião” aos outros. Pelo contrário, estamos a tentar evitar que as pessoas pratiquem uma forma irracional, falsa e sangrenta de idolatria.

É a razão, e não a revelação, que nos diz que, caso acreditemos que é errado matar, então matar crianças ainda na barriga das mães também é errado. E com cada ano que passa essa posição moral torna-se ainda mais clara. Quando a decisão Roe v. Wade, que legalizou o aborto em todo o país, foi anunciada, em 1973, a medicina estava a anos-luz do que está agora. Hoje sabemos, por exemplo, que o coração de uma criança começa a bater cerca de quatro semanas depois da concepção e que já acontecem muitas outras coisas que tornam claro que aquilo que se está a desenvolver e a crescer é um ser humano vivo (com o seu próprio ADN), rapaz ou rapariga desde o começo. Segue-se, racionalmente, que quem decidir pôr fim a essa vida, mesmo no seu estado mais incipiente, está a cometer um erro moral grave.  

E fazemos bem tanto em argumentar racionalmente como em caminhar pelo fim do aborto. Aliás, é mesmo uma obrigação moral. Confrontar-nos uns aos outros, em busca da verdade, é uma forma de demonstrar a nossa convicção de que aqueles com quem discordamos são, como nós, seres racionais. Eu sei que é pedir muito que a razão prevaleça, quando há tantas paixões e interesses em jogo. Mas é por isso que as caminhadas, manifestações e o exemplo pessoal devem também ser usados, nem que seja para criar oportunidades de fazer-se ouvir o lado científico e os bons argumentos.

Cerca de dez anos depois da decisão judicial de Row, estava a conversar com um filósofo, que entretanto se tornou mundialmente conhecido, sobre o aborto. Ele previu que, apesar de se tornar cada vez mais claro, através da ciência e da razão, o que estamos a fazer quando abortamos os nossos filhos, nada disso importaria. “Chegará o dia em que serão forçados a admitir a verdade. E então dirão, ‘Sim, é um bebé que se está a matar, e depois?’”

Na altura tive as minhas dúvidas, hoje já não tenho. Há anos que se muda o assunto do estatuto moral da vida intrauterina para tudo, desde o respeito pela liberdade das mulheres, o preconceito religioso e o combate à pobreza e aos danos ambientais. E também já nos disseram que, sim, é uma escolha difícil. Mas difícil porquê? Talvez porque esteja um bebé em causa? Sim, mas insistem que a mulher continua a ter aquele direito. Num acesso de paixão moral o Papa Francisco acertou no ponto quando disse que fazer um aborto é como contratar um assassino para nos resolver um problema. E a verdade é que esse assassino está a receber muitas chamadas: 42 milhões em todo o mundo só no último ano, de acordo com uma estimativa, fazendo do aborto a principal causa de morte.  

Os católicos americanos têm tido um papel central e louvável, claro, em manter viva a causa pró-vida. E por isso não é surpresa nenhuma que outros, que acreditam que é a verdade que nos liberta, se tenham juntado a nós. E não apenas neste país. O nosso exemplo tem espoletado outros esforços parecidos em vários países e, recentemente, até em Roma, embora a Igreja italiana e o Vaticano se tenham mantido distantes, por razões políticas aparentemente más, da Marcia per la Vita.

Desde esta segunda vaga da crise de abusos, os bispos americanos – e por implicação a Igreja como um todo – têm levado com críticas severas, algumas injustas, mas na maior parte justas. Tudo isso tem danificado a força do nosso testemunho público em várias frentes. Nestes últimos dias o Cardeal Wuerl até teve de abandonar os seus planos para celebrar a missa pró-vida que antecede a Caminhada. Foi substituído pelo núncio apostólico, o arcebispo Christophe Pierre. Mas nós, os americanos, conseguimos lidar com mais do que um problema de cada vez. Eventualmente vamos conseguir lidar com a crise de abusos enquanto continuamos com o nosso testemunho pró-vida e pró-família.

Mas não será um caminho fácil. Foram precisos quase cem anos – e uma Guerra Civil – desde os primeiros textos de John Wesley contra a escravatura até à Proclamação da Emancipação. Talvez leve tanto tempo, ou ainda mais, para anular o Roe v. Wade e mudar atitudes culturais para com o aborto. Mas, por mais tempo que leve, quando chegarem dias melhores as pessoas vão olhar para trás, para este tempo de trevas, e perguntar como é possível que uma população a gozar a maior prosperidade que o mundo alguma vez conheceu pôde ser cega para este massacre dos inocentes.

Muitos têm criticado a Igreja e outras organizações cristãs pelas suas falhas no combate à escravatura durante os séculos XVIII e XIX e é verdade que isso permanece como uma nódoa no registo de muitos seguidores de Cristo que tinham obrigação de saber melhor.

Mas naquele grande dia em que o aborto for visto novamente como o terrível mal moral que é, as pessoas também poderão ver que foi em primeiro lugar a Igreja, apesar de tantas críticas e muitas vezes sozinha, que defendeu a sacralidade de toda a vida humana. Numa altura em que pairam dúvidas sobre tanta coisa, isso é algo que merece ser festejado.


Robert Royal é editor de The Catholic Thing e presidente do Faith and Reason Institute em Washington D.C. O seu mais recente livro é A Deeper Vision: The Catholic Intellectual Tradition in the Twentieth Century, da Ignatius Press. The God That Did Not Fail: How Religion Built and Sustains the West está também disponível pela Encounter Books.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na Sexta-feira, 18 de Janeiro de 2019)

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Wednesday 16 January 2019

A Insegurança dos “Lugares Seguros”

Randall Smith
Há dias passei por um gabinete com um sinal à porta que dizia “Lugar Seguro”. Senti-me imediatamente inseguro.

Eu espero que toda a gente que entra no meu gabinete se sinta segura. Mas não deviam ser elas a dizer-me se se sentem seguras, e não ao contrário?

Seja como for, a questão não se põe, porque normalmente eu encontro-me com os meus alunos em cafés, alguns dos quais são mais “seguros” que outros. Certa vez um aluno, um jovem veterano das Forças Armadas, disse-me que tinha passado pelo café onde sabia que eu costumava estar à noite, mas não me tinha encontrado. “A que horas chegaste?”, perguntei “Cerca das 21h20”, respondeu. “Eu cheguei uns cinco ou dez depois. Porque é que não esperaste?” “Não, não”, disse ele, “aquilo estava cheio de hipsters (está sempre), e eu conseguia senti-los a olhar para mim e a julgar-me, por isso tive de sair”.

Não tenho a menor dúvida de que a maior parte das pessoas naquele café devem ter uma imagem muito acolhedora e aberta de si mesmas, mas é curioso como estas coisas podem ser relativas. O que parece “aberto” e “acolhedor” para um grupo de hipsters que se consideram muito progressistas, pode alienar uma multidão de outras pessoas que se sentem “julgadas” por ser demasiado “normais”, ou não serem suficientemente “fixes”.

Deve ter sido este mesmo medo instintivo de ser “observado” ou “julgado” que senti quando vi o sinal de “Lugar Seguro”. Será que o meu olhar tinha sido suficientemente aprovador? E a minha linguagem corporal, foi a correcta? Se alguém visse a curiosidade estampada na minha cara talvez pensasse que estava a expressar desaprovação, o que não era de todo a minha intenção.

Se a dona do gabinete tivesse posto a cabeça de for a e perguntasse: “Está a olhar para o meu sinal. Algum problema?”, o que é que eu teria respondido? “Não, não, não… De todo. Estava a só a ler… o seu… errr… sinal”. Teria acreditado em mim? Ou teria continuado desconfiada? Teria feito queixa?

E se ela adivinhasse que sou católico? O que é que teria pensado acerca das coisas horríveis que supostamente penso sobre homossexuais? Teria conseguido convencê-la de que não penso essas coisas? Nunca consegui convencer os meus pais protestantes de que os católicos não acreditam nas coisas em que eles pensavam saber que os católicos acreditavam.

Talvez o que me tenha feito sentir desconfortável com o sinal de “Lugar Seguro” seja o facto de o passatempo mais popular na América, agora, ser uma versão do que um autor de outra geração chamou “upmanship”, a superação do outro. Por exemplo, se você disser “a semana passada conheci o presidente da Câmara de Londres” e o seu amigo responder: “O presidente da Câmara de Londres? É um tipo encantador! Almoçou em minha casa a semana passada”, fazendo com que o seu encontro pareça muito menos impressionante, supera-o.

Nos Estados Unidos há cada vez mais pessoas apostadas em jogar uma versão ligeiramente diferente a que se pode chamar “ultrapassar pela esquerda”, cujo objetivo é mostrar-se mais à esquerda que o outro. Você diz: “Mandei a minha filha para uma escola muito liberal e progressista, só para meninas” e o seu amigo responde, com um desprezo mal disfarçado, “ainda se chamam meninas? Quero dizer, tantas dessas escolas só para meninas não percebem como o termo ‘menina’ pode ser ofensivo para os transgéneros”. E eis que a escola muito progressista em que orgulhosamente matriculou a sua filha, de repente parece bastante menos progressista, ou até mesmo discriminatória.

Você sente-se muito pequeno, o que era precisamente o objetivo.

As pessoas podem fazer como entenderem, mas para mim é tudo menos claro que estas guerras linguísticas que travamos nos confins refinados do mundo académico estejam de facto a ajudar as pessoas que dizemos querer ajudar. Depois de décadas a patrulhar obsessivamente o discurso, os miúdos pobres estão a obter uma melhor educação? E os homossexuais sofrem de menos ansiedade? As minorias estão a ser tratadas com maior respeito nos seus locais de trabalho, habitação e educação? As mulheres estão a ser mais respeitadas?

Porque se a resposta for não, e se tudo o que estamos a fazer é jogar o jogo da linguagem para que nós mesmos nos sintamos melhor, como se estivéssemos a resolver os problemas, mostrando que nos preocupamos, ao contrário das outras pessoas que não estão tão despertas como nós, então, para dizer a verdade, prefiro não fingir.

Quando vemos tantas pessoas a esforçar-se para não serem apanhadas nas armadilhas deixadas por todas as pessoas que jogam o jogo da ultrapassagem pela esquerda, dificilmente alguém se sente “seguro”. Lugares que deixam de fora as pessoas que têm as opiniões e atitudes “incorrectas” tendem a ser o oposto de seguras.

Agora, por exemplo, temos um grupo de pressão que lançou uma petição para apresentar à Universidade de Oxford no sentido de remover John Finnis, que é católico, do seu cargo, por este revelar “pontos de vista extremamente discriminatórios contra grupos de pessoas vulneráveis” (i.e., por não concordar com a visão dos signatários em relação a actividades homossexuais ou cirurgias de mudança de sexo). Eles insistem que a Universidade “clarifique a sua política em relação a professores que discriminam”, porque, atualmente, “os estudantes e corpo docente têm de esperar que haja um momento de assédio pessoal ou de vitimização, antes de se poderem queixar sobre o ambiente de intolerância e de intimidação que os professores criam através dos seus artigos escritos”. Não é preciso tratarem mal alguém, basta terem as opiniões erradas.

Por agora a Universidade está a recusar-se a agir. Mas que mensagem é que esta petição transmite a outros membros do corpo docente em relação à sua “segurança” caso não aceitem expressar as opiniões “aprovadas” sobre um grupo ou outro, quer tenha a ver com o casamento gay, com a forma como os muçulmanos tratam as mulheres, ou a questão israelo-palestiniana?

Essa é uma questão. Mas outra é esta: Será que as manobras tácticas das pessoas envolvidas neste jogo de “ultrapassagem pela esquerda” está mesmo a ajudar as minorias e as pessoas vulneráveis, como se alega?

Será seguro sequer fazer a pergunta?


Randall Smith é professor de teologia na Universidade de St. Thomas, Houston.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na quarta-feira, 16 de Janeiro de 2019)

© 2019 The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de reprodução contacte: info@frinstitute.org

The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing.

Friday 11 January 2019

Congo, Venezuela e lixo jornalístico

Em relação à polémica do momento, digo apenas o seguinte. Uma reportagem que desmascara uma rede secreta de católicos que procuram curar pessoas da sua homossexualidade, é uma grande reportagem. Se souberem de uma reportagem dessas avisem-me. Ontem passou uma coisa que dizia ser isso, mas que afinal não passou de lixo jornalístico. Os visados da encenação, e bem, estão a pensar processar judicialmente os responsáveis.


O Papa vai receber novamente os bispos do Chile, para falar sobre medidas contra os abusos sexuais.

Atenção a todos os que se interessam pelos temas, a Capela do Rato vai acolher um debate sobre apoio espiritual em cuidados paliativos. Hoje visitou freiras de clausura.


Numa altura em que o Vaticano se prepara para ter uma equipa desportiva, pela primeira vez, o IronPriest Ismael Teixeira diz que o desporto também é um meio de salvação.

Certamente já viu por aí missionários mórmons. Andam aos pares, sempre de gravata preta, calças pretas e camisa branca e uma placa com Elder, seguido do nome. São muitas vezes alvo de gozo e humilhação, mas no artigo desta semana do The Catholic Thing, Casey Chalk sugere que os católicos mudem de atitude perante estes nossos irmãos

Wednesday 9 January 2019

Dialogar com os Mórmons

Casey Chalk
“Gozar com os mórmons é”, nas palavras do já falecido teólogo católico Stephen Webb, “uma das últimas fronteiras da desordem verbal que ainda não foi beliscada pelos poderes do politicamente correcto”. O missionário mórmon é frequentemente alvo de ridicularização. “O Livro de Mórmon”, um musical de sucesso escrito pelos criadores do “South Park” brincava com o tradicional missionário da Igreja dos Santos dos Últimos Dias (ISUD), com as suas calças pretas e camisa branca.

Muito do material apologético católico e evangélico ridiculariza as crenças mais excêntricas da ISUD – a corporalidade de Deus, o casamento eterno e os tons de politeísmo, entre outros. Quando eu era um jovem evangélico ensinaram-me que o mormonismo é uma seita. Sejam quais forem as heresias presentes na teologia mórmon, a nossa abordagem aos mórmons, enquanto católicos que somos, precisa de ser repensada. 

A apologética cristã respeitante aos mórmons costuma assumir uma de duas formas. Uma abordagem recomenda atacar as crenças dos Santos dos Últimos Dias através do “texto-prova”. Para os protestantes, isto resulta naturalmente da presunção da claridade da Escritura. Claro que o que parece claro para um provavelmente parecerá muito menos claro para outro, sobretudo se tiver sido catequizado para ler a Bíblia de uma certa forma. Mas existe ainda outra dificuldade quando se debate com os mórmons, é que a ISUD ensina que a Bíblia é subserviente ao Livro de Mórmon, logo eles têm sempre esse trunfo em qualquer debate sobre texto-prova.

A outra abordagem recomenda confrontarmos os missionários mórmons com alguns dos aspectos mais bizarros da sua fé. Um autor católico conhecido descreve uma vez em que conseguiu forçar uns missionários a reconhecer algumas das idiossincrasias das suas crenças. Depois assegurou-lhes que “isso é simplesmente uma loucura”. Não faço ideia porque é que essa estratégia haveria de resultar. Raras são as pessoas que são persuadidas a abandonar a sua religião simplesmente porque um estranho lhes diz que as suas crenças são ridículas.

Aliás, eu diria que isto teria precisamente o efeito contrário. Mais, há muitos não cristãos que consideram as histórias da Bíblia “simplesmente loucas”, e os cristãos não católicos gozam frequentemente com as aparições marianas, como Guadalupe, Lourdes ou Fátima.

Ambas estas estratégias assumem um ponto de partida inerentemente contencioso para o diálogo com os mórmons. Talvez seja natural, tendo em conta as muitas heresias da ISUD. Mas por outro lado isso ignora o facto de os missionários mórmons serem, de provavelmente todos os grupos religiosos nos Estados Unidos, aqueles que mais tentam falar de Jesus na Praça Pública. Nunca um evangélico ou um católico me bateu à porta para pedir para falar sobre Jesus. Mas ao longo dos anos muitos mórmons o fizeram. Duvido que seja caso único. A Igreja Mórmon pode ter ideias erradas sobre Cristo, mas pelo menos têm vontade e são persistentes no seu desejo de falar dele.

Para além disso, os mórmons têm sido aliados constantes de evangélicos, católicos e ortodoxos nas batalhas contra as forças seculares agressivas na América. Têm trabalhado incansavelmente para preservar as suas comunidades, resistir às tentações e influências da cultura pós-cristã e lidar com os ataques contra eles e contra a sua devoção a Cristo. Este zelo viu-se de forma especial há dez anos quando membros da ISUD colaboraram com conservadores de outras religiões para fazer aprovar a Proposição 8, que durante algum tempo proibiu o casamento homossexual no Estado da Califórnia.

Modelo do templo mórmon em construção em Lisboa
E a vida dos missionários mórmons não é nada fácil, poucas são as vocações religiosas que se comparam em termos de intensidade ou sacrifício. Para os homens, as missões duram dois anos; as missões das mulheres são de ano e meio. Durante esse tempo os missionários nunca deixam o seu território de missão. Têm poucas oportunidades de falar com família e amigos. Vivem com um orçamento apertado – muitos comem apenas cereais e noodles, praticamente todos os dias, durante meses. Passam cerca de doze horas por dia em missão, enfrentando muitas vezes hostilidade ou indiferença. Um amigo meu mórmon que foi enviado para o Japão conseguiu converter apenas uma pessoa durante o tempo inteiro que lá esteve.

Para as mulheres o sofrimento e o risco são ainda piores. Uma missionária contou-me uma vez que um homem que parecia sinceramente interessado na sua religião, mas afinal apenas queria casar! Outros homens tentaram abordá-la fisicamente. Certa vez um homem bêbado e quase nu saiu de casa a correr e a praguejar contra ela. Os mórmons, talvez mais até do que outras tradições religiosas, conhecem o falhanço. Recentemente disse a uns convidados que a sua experiência parecia um pouco uma passagem pelo inferno – o mais experiente acenou com a cabeça.

Por tudo isto eu argumentaria que o modo certo para começar um diálogo com missionários mórmons não é polémica e hostilidade, mas hospitalidade. Recentemente a minha mulher e eu convidámos duas missionárias para jantar, e foi muito divertido.

Durante a sobremesa elas sentiram-se na obrigação de partilhar a sua fé. Nós ouvimos cuidadosamente e fizemos algumas perguntas. Disse-lhes que discordava deles por razões teológicas e filosóficas, que expliquei de forma breve. A minha mulher – de forma muito perspicaz – partilhou a sua experiência de ter sido traída pelo padre Marciel Maciel, o fundador dos Legionários de Cristo, que vivia uma vida dupla. Explicou que tinha sido difícil, mas essencial, manter a sua fé em Cristo, mesmo quando aprendeu que o homem que tanto admirava, afinal era um patife. O paralelo com a vida de Joseph Smith, fundador da Igreja Mórmon, foi perfeito e espero que as missionárias o tenham entendido.

Creio que esta abordagem é superior à da confrontação. Sim, os erros teológicos do mormonismo são terríveis. Mas ao mesmo tempo eles estão nas ruas a falar de Jesus numa altura em que cada vez menos pessoas O conhecem. Isso tem de valer alguma coisa. E se quiserem passar cá por casa para partilhar uma refeição, construir uma amizade e trocar opiniões sobre Deus, a nossa porta está sempre aberta.

Se Deus quiser, algo dessa vida partilhada, bem como os nossos testemunhos sobre Cristo e a sua fidelidade à sua Igreja, terão um impacto maior e mais duradouro do que a polémica e hostilidade contenciosa.


Casey Chalk é um autor que vive na Tailândia, onde edita um site ecuménico chamado Called to Communion. Estuda teologia em Christendom College, na Universidade de Notre Dame. Já escreveu sobre a comunidade de requerentes de asilo paquistaneses em Banguecoque para outras publicações, como a New Oxford Review e a Ethika Politika.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na quarta-feira, 9 de Janeiro de 2019)

© 2019 The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de reprodução contacte: info@frinstitute.org

The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing.

Tuesday 8 January 2019

Vaticano entra na corrida

Não selecionável...
O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem aceitou ouvir um caso sobre a eutanásia na Bélgica. É talvez a mais significativa ameaça à terrível lei naquele país.

Os bispos portugueses reafirmaram hoje que estão disponíveis para ouvir as vítimas de abusos. O porta-voz da CEP confirma ainda que Lisboa é candidata a receber as JMJ, mas que o Papa apenas anunciará a decisão final no dia 27.

A Santa Sé vai ter uma equipa oficial de atletismo, mais especificamente de maratonistas. É a primeira vez que a Santa Sé forma uma equipa oficial desportiva.

O Papa Francisco divulgou hoje a mensagem para o dia dos doentes, a 11 de Fevereiro e pede uma aposta na cultura da gratuidade e solidariedade.

Soube-se hoje que um padre bastante famoso, ligado ao Opus Dei nos Estados Unidos, é suspeito de assédio sexual de pelo menos duas mulheres. À primeira vista a organização lidou exemplarmente com o caso. O autor já foi colaborador do The Catholic Thing e nesse contexto traduzi e publiquei três artigos dele. Saiba mais aqui.

Padre John C. Mcloskey acusado de assédio sexual

Surgiu hoje a notícia de que o padre John C. McCloskey, dos EUA, esteve envolvido em pelo menos dois, talvez três, casos de assédio sexual.

Não estamos perante um caso de abuso de menores nem de pedofilia, mas de assédio de mulheres adultas. Contudo, não deixa de ser assédio, pois terá sido contra a vontade delas e em situações que as deixaram muito desconfortáveis. Pelo menos uma dela estava numa situação vulnerável e, seja como for, estamos sempre perante um caso de abuso de posição privilegiada de alguém que faz aconselhamento espiritual.

Pelo que se lê no artigo do Washington Post, parece-me que o Opus Dei, a que o padre pertence, lidou bastante bem com o caso. A mulher recebeu uma indemnização considerável mas que foi sustentada com um donativo particular, ou seja, não se desviou dinheiro de outros fins nem se "enganou" quem doa dinheiro à organização. O padre, que era uma espécie de "vedeta" e conhecido por atrair muitos famosos para a Igreja, foi afastado do contacto com mulheres e retirado da cena pública. Foi a decisão certa e não deve ter sido fácil. Muitos, sabe-se agora, estranharam o seu "desaparecimento".

O caso não foi comunicado às autoridades, pois não é claro que se tenha tratado de um crime, ou pelo menos só seria comunicado a pedido das vítimas, pois não se tratou, repito, de abuso de menores ou de crianças. A vítima na altura não terá querido levar o caso mais longe.

A situação foi tornada pública pelo Opus Dei ontem à noite, nos EUA, a pedido da vítima, pois ela temia que pudesse haver mais vítimas que não tinham tido a coragem de falar. Mais uma vez, apenas tenho acesso à informação no artigo, mas parece que aqui se respeitou a privacidade e as necessidades da vítima acima da preservação da reputação da organização.

Neste ponto gostaria de esclarecer que nada me liga ao Opus Dei se não amizade pessoal com alguns membros. Não pertenço, ninguém da minha família pertence e não tenho especial atração pessoal pela espiritualidade e a organização interna do movimento. Simplesmente não é o meu estilo.

Dito isto, e por uma questão de transparência, devo dizer que colaboro há vários anos com o The Catholic Thing, para o qual McCloskey escrevia. Deixou de escrever há bastante tempo, agora compreendo porquê. Durante estes anos traduzi, salvo erro, apenas três artigos dele.

Se surgirem mais detalhes importantes sobre o caso, acrescentarei ou actualizarei este artigo.

Monday 7 January 2019

Recados sobre o Brexit no Natal egípcio

Christmas like an Egyptian
O Papa Francisco falou hoje ao corpo diplomático na Santa Sé e, em tempos de Brexit, saudou os benefícios da integração europeia, para além de ter referido uma enorme variedade de outros assuntos da atualidade. Tudo aqui.

Hoje é Natal para muitos cristãos do Oriente, incluindo os coptas, a quem o Papa Francisco saudou de forma especial, durante a inauguração de uma nova catedral.

Um cardeal francês começou hoje a ser julgado por alegadamente encobrir um caso de abusos sexuais.

Durante o fim-de-semana o Papa Francisco pediu aos países europeus que acolham os refugiados que estão neste momento abordo de dois navios de organizações não-governamentais, no Mediterrâneo. Na sexta-feira passada falei precisamente com o tripulante de um desses navios, que considera uma vergonha a atitude da Europa neste caso.


E parece que o Vaticano não se vai imiscuir na questão da exumação de Francisco Franco, em Espanha.

Friday 4 January 2019

Natal sem Jingle Bells? Sim, se faz favor!

Mais um bispo em maus lençóis... 
Mais um caso de abusos no Vaticano? Agora as suspeitas envolvem um bispo argentino que resignou da sua diocese – alegadamente por outras razões – e foi para um cargo na Santa Sé.

O Papa escreveu entretanto uma carta aos bispos americanos, reunidos em retiro, em que teceu duras críticas à forma como lidaram com a crise dos abusos naquele país e a desunião que os caracteriza.

E ontem o Vaticano emitiu uma decisão da Congregação para a Doutrina da Fé, sobre a licitude moral das histerectomias, em certas situações. Veja aqui os detalhes.

Há Natal sem Jingle Bells? Pois claro que pode haver. Pelo menos eu acredito que sim, e o coro da Sé de Lisboa também. O concerto é dia 6. Aproveitem para ir ver!


Wednesday 2 January 2019

Fake news, no Porto e em Roma

Espero que tenham todos tido um excelente Natal, melhor pelo menos do que a do Bispo do Porto, que se viu envolvido numa polémica por causa da virgindade de Nossa Senhora. Já foi tudo clarificado, graças a Deus.

Mal li a reportagem original, no dia 24 de Dezembro, publiquei isto no meu blog, em que aconselhava calma antes de se crucificar o bispo, porque conhecendo o meio jornalístico percebi que algo não estava bem naquela notícia – aprender a ler notícias e a interpretá-las é também importante – e da forma como as coisas se desenrolaram ficou claro que tinha razão, mesmo sem estar por dentro.

Já que estamos numa de saber ler e interpretar notícias, o Papa NÃO DISSE hoje, ao contrário do que informam muitos órgãos, que é melhor ser ateu do que ir à igreja e depois falar dos outros. É a segunda vez no espaço de dois anos que acontece isto. A Renascença tem aqui vídeo com a citação original e com a tradução certa.


O Papa começou o ano com uma mensagem a apelar à valorização da maternidade e, no mesmo dia, o diretor e vice-diretora de comunicação da Santa Sé demitiram-se. (Não estou a sugerir causa efeito…)

Foram também publicados dois artigos do The Catholic Thing neste espaço de tempo. No primeiro o padre Paul Scalia escreve muito bem sobre a importância teológica da linguagem e como até a nossa capacidade de falar é afetada pelo pecado e hoje o grande Anthony Esolen recorda como até meados do século XIX se castravam meninos para lhes preservar a voz, mas adverte que o que permitimos que se faça às crianças hoje é muito pior.

Alguns homens nascem eunucos . . .

Anthony Esolen
Alguns homens nascem eunucos, alguns tornam-se eunucos pelo Reino do Céu e alguns, para grande lucro de cirurgiões e da indústria farmacêutica, são feitos eunucos por pais que os abandonam e por mães que não.

O último “castrato” a cantar profissionalmente, Alessandro Moreschi, morreu em 1922. Não se sabe se ele foi castrado ainda menino para preservar a voz, ou por causa de uma hérnia inguinal. Ainda existe uma gravação, em mau estado, da sua voz. O que se ouve é um soprano algo fibroso, não é o género de coisa para a qual um defensor da prática recomendaria a mutilação. Talvez outrora tenha sido mais forte e seguro. Não sabemos.

À medida que um rapaz se aproxima da puberdade, a sua voz ganha uma qualidade peculiar devido à configuração singular e temporária da sua laringe e cavidade oral. Produz um som que os mestres de coro valorizam muito e que inspirou os talentos de compositores como Palestrina, Allegri e Bach.

Para preservar esse timbre, por vezes um soprano rapaz aceitava ser castrado. Quando os “castrati” eram o último grito da moda nas cortes e nos coliseus da Europa iluminista, um rapaz talentoso de uma família humilde poderia ser tentado a aguentar a mutilação para poder ganhar dinheiro para si e para os seus pais.

Naturalmente isso também o levava a ser bem acolhido nos quartos de mulheres aristocratas, que brincavam com ele como fariam com um cachorro, sem envergonhar os seus maridos. Essa é a lógica por detrás do estratagema de Horner na peça lasciva de Wycherley “A Mulher do Campo”, embora neste caso a castração tenha sido supostamente necessária por causa de sífilis. Os eunucos também eram um alvo preferido por homossexuais.

Contranatura e bárbaro. O Papa Leão XIII condenou a prática quando assumiu o papado em 1878. Graças a Deus não a voltaremos a ver.

Mas estamos a assistir a coisas bem piores. Pensemos um bocado nisto.

Longe de mim desculpar de qualquer maneira os padres nojentos cujos vícios deturparam as vidas de tantos rapazes e jovens e reduziram várias paróquias e dioceses à penúria. Mas quando esses homens acabavam de apalpar as joias da família, estas pelo menos continuavam ligadas ao rapaz, que ainda poderia vir a tornar-se marido e pai de família.

Mas isso já não é o caso quando o rapaz “transita”, isto é, quando se submete a cirurgia para poder fingir ser a rapariga que não é, nem nunca poderá ser.

O rapaz que optava pela mutilação fazia-o para garantir algo que era, em si, um bem. É bom, e não mau, ter uma voz bonita. É bom ser um solista no “Miserere” de Allegri. Não é bom mutilar o corpo para isso. É bom, e não mau, poder ser o ganha-pão da família. Mas não é bom mutilar o corpo para o conseguir. É bom louvar a Deus. Não é bom expressar esse louvor através de algo que é contranatura, como a mutilação.

Esse rapaz, muito provavelmente, sabia bem o que era o sexo. Sabia-o melhor do que as nossas crianças agora. Teria visto os animais da quinta, teria dormido próximo de outras crianças e teria desenvolvido uma atitude prática para com as exigências mais embaraçosas da vida física. Teria estado próximo de homens a fazer trabalho fisicamente árduo, todos os dias da sua vida, trabalho que só os homens podiam fazer.
Alessandro Moreschi

Ele não estava a rejeitar o seu sexo. Não estava acometido da loucura de acreditar que na verdade era uma menina. Ninguém lhe tinha dito na escola que o seu sexo era responsável por todo o mal que existe no mundo. Não teria crescido num lar dividido pelo divórcio, com uma mãe infetada por fantasias feministas de um mundo purificado do masculino. Não teria tido que se sujeitar à hora do conto narrado por travestis. Não teria pornografia à distância de um clique. Não vivia no reino da ilusão. A mutilação assegurava, de facto, o bem em questão.

Não seria sujeito a uma cirurgia após outra. O seu corpo não seria bombeado com drogas perigosas, incluindo bloqueadores de puberdade e hormonas para fazer crescer os seios, que provavelmente virão a ser carcinogénicas. Não seria condenado a uma vida de dependência farmacêutica. Os seus ossos largos continuariam a crescer. O seu corpo seria um pouco mole, mas de resto pareceria um homem normal e não uma aberração. Não seria sujeito a uma operação para fazer uma vagina falsa.

Não faria parte de uma campanha para preservar e prolongar uma ética profundamente anticristã, como é a nossa revolução sexual. Como já disse, talvez fosse tentado pela homossexualidade, mas esse não seria o objectivo declarado da operação. Não estava envolvido na destruição da linguagem. Seria tratado por “ele” e provavelmente atirava-se a quem o tratasse de outra forma.

Não estava a estabelecer um precedente para outros violadores do sentido do humano: falo naqueles que acreditam que devemos fabricar-nos a nós mesmos, através da manipulação genética, úteros artificiais e outras pontes que o homem lança ao robot ou à besta. Não estava a lançar um precedente para pessoas doentes que acreditam que não serão inteiros enquanto não forem parciais: falo naqueles que não conseguem viver com a integridade dos seus corpos e que por isso encontram, nalgum lado, um médico malévolo que lhes remova um braço ou uma perna saudável.

Não estava na linha da frente da sujeição dos pensamentos, da linguagem e dos actos de pessoas normais e ordinárias à supervisão de um estado vasto e totalitário, com a sua simbiose de entretenimento e escolaridade massificados.

Por mais doentio que fosse fazer aquilo que eles faziam, o que fazemos agora é muito pior.


Anthony Esolen é tradutor, autor e professor no Providence College. Os seus mais recentes livros são:  Reflections on the Christian Life: How Our Story Is God’s Story e Ten Ways to Destroy the Imagination of Your Child. 

(Publicado pela primeira vez na quarta-feira, 19 de Dezembro de 2018 em The Catholic Thing)

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