Monday 28 February 2022

E se a Rússia perder esta guerra? O que vem depois da ressaca

Muito, muito atento... 
Há uma semana eu não acreditava que Putin fosse invadir a Ucrânia. Há dois dias não acreditava que a Ucrânia conseguisse resistir mais do que umas horas a uma invasão russa. Estão apresentadas as minhas credenciais de analista militar.

Neste momento, porém, temos de começar a considerar a possibilidade de a Rússia perder esta guerra, sendo que uma derrota, neste caso, é tudo o que não seja a rendição das Forças Armadas ucranianas nas próximas 48 horas.

Esta série de tweets que acabei de ler, de alguém que é de facto conhecedor de história e estratégia militar, explica porque é que é bem possível que esta aventura de Putin tenha sido um passo maior que as pernas. O efeito imediato será o fim do mito da força militar terrestre da Rússia.

Se isso acontecer o PCP culpará a NATO e o imperialismo, e as pessoas que ainda possuem alguma sanidade e barómetro moral irão para a rua celebrar. Mas temos de ter em conta que haverá efeitos secundários previsíveis e, nalguns casos, drásticos.

Para começar, a Arménia poderá despedir-se de Nagorno-Karabakh. Durante anos os arménios conseguiram manter o território porque as suas forças armadas eram organizadas e muito mais experientes que os Azeris. (Aliás, uma curiosidade que aprendi quando visitei o território foi que na altura da guerra do Afeganistão, uma vez que Nagorno Karabakh tinha sido “transferida” para a região do Azerbaijão, dentro da União Soviética, as autoridades locais mantinham os azeris na retaguarda e mandavam os arménios para a linha da frente. O resultado é que quando começou a guerra entre arménios e azeris os primeiros tinham experiência militar e os segundos não).

Essa superioridade militar arménia terminou esta década e os Azeris, financiados e armados pelos turcos, conseguiram recuperar uma grande parte do território. Só a intervenção russa impediu a destruição total da presença arménia em Karabakh. Se o mito do poderio russo acabar por se provar apenas isso, um mito, os arménios terão a vida muito dificultada.

Outro teatro de guerra que pode sofrer grandes alterações é a Síria. A intervenção russa permitiu não só salvar o regime de Assad, mas mudar o curso da guerra e empurrar os grupos da oposição até à fronteira com a Turquia, que os apoia. Desde então a Rússia e a Turquia têm deixado o conflito em banho-maria. Mas se a Rússia perder na Ucrânia é bem possível que esse equilíbrio seja afectado. Se – e num cenário de derrota militar na Ucrânia isso é bem possível – a invasão fracassada da Ucrânia acabar por levar a uma mudança no regime russo, então tudo se torna ainda mais imponderável.

Um efeito imediato disso é que as comunidades cristãs ficam mais enfraquecidas na Síria, se não mesmo em todo o Médio Oriente. Por mais que se possa desconfiar das suas intenções, a verdade é que o apoio de Putin tem sido benéfico para os cristãos no mundo árabe, pelo menos a médio prazo. Sem esse apoio, tudo será mais difícil, especialmente depois de terem ficado com o rótulo de apoiantes do regime sírio.

É verdade que a Síria continuará a contar com o apoio do Irão, mas mesmo o Irão ficará enfraquecido com um revés da Rússia e possível mudança de regime em Moscovo.

Um leitor atento terá percebido que ambos os cenários descritos têm algo em comum: A Turquia. A mesma Turquia que tem fornecido armas à Ucrânia.

Ao longo dos últimos anos a relação entre a Turquia e a Rússia tem sido bastante estranha. Adversários em várias frentes, desde a Síria a Nagorno-Karabakh, passando pela Líbia, têm mantido uma certa oposição respeitosa, não querendo entrar em conflito aberto, mesmo perante casos surreais, como quando a Turquia abateu um jato russo na Síria “por engano” ou quando o embaixador da Rússia na Turquia foi assassinado a sangue-frio. Não sei se o que os demove é medo, ou se sentem que é mais importante ambos irem minando juntos a influência dos Estados Unidos em várias partes do mundo, mas a verdade é que não se têm antagonizado.

Mas tudo isso poderá mudar. Se a Rússia mostrar ser afinal um tigre de papel, a Turquia irá perder qualquer receio de fazer valer o seu peso naquilo que considera ser o seu quintal. E o mundo, que terá deixado de ter de lidar com um saudosista do Império Soviético, terá de lidar com o saudosista do Império Otomano e que ainda por cima é membro da NATO.

E esse é um cenário assustador.


Leia também: 

Guerra na Ucrânia - As posições dos diversos líderes religiosos relevantes

Dimensões religiosas do Conflito na Ucrânia

Wednesday 23 February 2022

A Mea Culpa de Bento XVI

Stephen P. White

Com o aproximar do final da longa e extraordinária vida do Papa emérito Bento XVI, a luta pelo seu legado já começou. Na sua Alemanha natal o “Caminho Sinodal” parece apostado em apagar 50 anos de interpretação magisterial do Concílio Vaticano II – uma interpretação que deve mais a Joseph Ratzinger do que a qualquer outra pessoa, salvo, talvez, São João Paulo II. O Caminho Sinodal é uma espécie de referendo sobre a sua vida e legado.

E depois temos o relatório, publicado o mês passado, sobre a história dos abusos sexuais na Arquidiocese de Munique-Freising, que resulta de uma investigação conduzida por um escritório de advogados a pedido da arquidiocese. Joseph Ratzinger liderou a arquidiocese entre 1977 e 1982, quando foi chamado a Roma para chefiar a Congregação para a Doutrina da Fé. O relatório abrange quase 75 anos, mas, naturalmente, muita da atenção tem sido dada aos breves anos em que Ratzinger foi arcebispo.

Os autores do relatório identificam quatro casos em que o então cardeal Ratzinger não tomou as devidas acções contra padres acusados de abusos. Bento XVI sempre negou ter lidado erradamente com estes casos durante o seu tempo em Munique. Depois de ter digerido as quase 2.000 páginas do relatório de Munique, os assessores de Bento XVI responderam por ele.

A versão curta dessa resposta é: “Joseph Ratzinger não estava ciente de qualquer abuso sexual, ou suspeita de abuso sexual, cometido em nenhum dos casos analisados pelo relatório de peritos. O relatório não apresenta qualquer prova em contrário”.

Bento XVI forneceu aos investigadores uma longa declaração escrita enquanto eles preparavam o relatório. Mas essa declaração incluiu um erro significativo. Bento XVI disse que não estava presente numa reunião em que se aprovou a transferência de Munique para outra diocese de um padre acusado de abusos. O Papa emérito rapidamente emendou a mão e pediu desculpa. O erro não foi intencional, foi cometido por alguém da sua equipa durante a transcrição. Ratzinger esteve, de facto, presente na reunião, mas não sabia que o padre era abusador e não esteve envolvido na sua colocação ministerial.

Quem quiser acreditar nele acreditará, quem não quiser, não acreditará.

É quase certo que o Papa Bento lidou pessoalmente com mais casos de abusos sexuais praticados por padres do que qualquer outra pessoa. Laicizou 400 padres em apenas dois anos enquanto Papa e tratou de muitos outros, de forma célere, enquanto chefe da CDF – num período em que as primeiras ondas da crise de abusos começaram a chegar a Roma, antecedendo em poucos anos os tsunamis que têm atingido periodicamente a Igreja desde 2002.

Ratzinger estabeleceu um exemplo para outros clérigos e futuros papas ao pedir publicamente desculpas às vítimas de abusos e promovendo encontros regulares com vítimas. Quando resignou, em 2013, a resposta da Igreja aos abusos estava ainda longe de ser ideal. Mas era também incomensuravelmente melhor do que quando ele chegou a Roma como um jovem cardeal, em 1982.

Não estou com isto a dizer que as vítimas de abusos o deviam ver como um defensor, nem que devíamos ignorar as suas falhas (recordemos a forma desastrosa como lidou com o caso McCarrick). A questão é que ele colocou a Igreja no rumo certo no que diz respeito aos abusos sexuais praticados por clero por mais tempo, e de forma mais significativa, do que qualquer outra pessoa.

A Igreja e aqueles que foram lesados pela Igreja podem reconhecer isto sem se considerarem satisfeitos. Na verdade, vale a pena reconhecer que não há nada que a Igreja possa dizer ou fazer, nenhum pedido de desculpas que possa apresentar, nenhuma justiça que se possa fazer, que seja satisfatória.

Mas existe alguma satisfação, por mais que o digamos de voz trémula. E isso é algo de que Bento nos recorda, mesmo enquanto outros debatem o seu legado. Há semanas ele publicou uma carta curta, mas marcante. Os parágrafos finais são uma reflexão pungente sobre culpa, tristeza e exame de consciência diante da morte:

Em todos os meus encontros – sobretudo durante as numerosas Viagens Apostólicas – com as vítimas de abusos sexuais por parte de sacerdotes, observei nos olhos as consequências de uma tão grande culpa e aprendi a compreender que nós mesmos somos arrastados por esta tão grande culpa quando a negligenciamos ou não a enfrentamos com a necessária decisão e responsabilidade, como aconteceu e acontece com muita frequência. Como fiz naqueles encontros, mais uma vez posso apenas expressar a todas as vítimas de abusos sexuais a minha profunda vergonha, a minha grande dor e o meu sincero pedido de perdão. Tive grandes responsabilidades na Igreja Católica. Tanto maior é a minha dor pelos abusos e os erros que se verificaram durante o tempo do meu mandato nos respetivos lugares. Cada caso de abuso sexual é terrível e irreparável. Para as vítimas de abusos sexuais, vai a minha profunda compaixão e lamento cada um dos casos.

Em breve me encontrarei perante o último Juiz da minha vida. Embora ao olhar retrospetivamente a minha longa vida possa ter tantos motivos de susto e medo, todavia estou com o coração feliz porque confio firmemente que o Senhor não é só justo juiz, mas simultaneamente é o amigo e o irmão que já padeceu, Ele mesmo, as minhas deficiências e, consequentemente, ao mesmo tempo é juiz e meu advogado (Paráclito). Na perspetiva da hora do juízo, como se me torna clara a graça de ser cristão! O ser cristão dá-me o conhecimento, mais ainda, a amizade com o juiz da minha vida e permite-me atravessar com confiança a porta escura da morte. A propósito, retorna-me sem cessar à mente o que João conta no início do Apocalipse: vê o Filho do Homem em toda a sua grandeza e cai aos seus pés como morto. Mas Ele, pousando a mão direita sobre João, diz-lhe: «Não tenhas medo! Sou eu...» (cf. Ap 1, 12-17).

Rezem por Bento XVI. E rezem com ele pelas vítimas dos abusos.


Stephen P. White é investigador em Estudos Católicos no Centro de Ética e de Política Pública em Washington.

(Publicado em The Catholic Thing na Quinta-feira, 10 de Fevereiro de 2022)

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Friday 18 February 2022

Dimensões religiosas da crise na Ucrânia

A situação de tensão que se vive neste momento na Ucrânia, com a ameaça de uma invasão russa, não é um conflito religioso. Isso deve ficar bem claro à partida. Mas tal não significa que não haja dimensões religiosas para este problema. E há. Neste artigo vou tentar abordar algumas delas.

 1.      Choque de civilizações, mais ou menos

Depois de décadas de Guerra Fria o mundo convenceu-se de que a religião tinha deixado de desempenhar um papel importante nas relações internacionais. O mundo enganou-se. A destruição das Torres Gémeas foi apenas o mais alto soar de um alarme que já se fazia ouvir desde os anos 80, quando os movimentos árabes se começaram a transformar de marxistas em islamitas.

Muitos passaram então a adoptar a visão catastrofista do choque de civilizações, antevendo como inevitável um conflito entre o mundo cristão e o mundo muçulmano. É verdade que em muitas partes do mundo esse conflito existe, basta ver a situação em muitos países do centro de África, onde o norte muçulmano encontra o sul cristão.

Mas convém não esquecer que alguns dos piores conflitos da história foram travados entre “irmãos de fé”. E isso não nos deve surpreender, porque tanto a história macro como a história das famílias mostra bem que as discussões mais severas, mais duradouras e muitas vezes mais sangrentas – seja metaforicamente, seja literalmente – são entre irmãos. Isto acontece nas famílias e acontece nos países. Olhemos para a Guerra Civil de Espanha, que se passou aqui tão perto, mas também para a nossa própria história.

Não deixa de ser curioso, por isso, e trágico, que a maior ameaça à paz mundial neste momento se passe no Leste da Europa, opondo dois países que partilham um historial de Cristianismo intimamente ligado. Foi a Kiev que chegou a fé em Jesus que depois seguiu para Moscovo e se espalhou por toda aquela região. O conflito na Ucrânia pode ter, por isso, algumas dimensões religiosas, que iremos ver com mais detalhe, mas não pode ser descrito como um choque entre duas civilizações religiosamente diferentes.

Contudo, o problema pode ser visto de outro prisma, da civilização não no seu aspecto religioso, mas cultural. Uma significativa parte da Ucrânia, temendo a influência de Moscovo, quer voltar-se para o Ocidente, abraçando as suas instituições e estilo de vida. Nesse sentido, ainda que passado a leste, entre dois países de leste, o conflito pode ser visto como representando o choque entre oriente e ocidente.

 2.      A religião neste conflito

Disse no primeiro ponto que a Ucrânia e a Rússia partilham uma história de Cristianismo. É verdade, mas a coisa não é assim tão simples.

De facto, o Cristianismo bizantino entra naquela parte do mundo através do Grão Príncipe Vladimir, de Kiev, que manda baptizar todo o seu povo e envia missionários para leste. Em breve grande parte da actual Rússia abraçou o Cristianismo.

Mais tarde, porém, Moscovo tornava-se o centro do Cristianismo de leste que, depois do grande cisma de 1054 viria a tornar-se o mundo ortodoxo.

Com o cisma, Constantinopla assumiu-se como a “nova Roma”, uma vez que a verdadeira Roma teria caído em heresia, segundo a sua visão. Mas quando Constantinopla cai nas mãos dos muçulmanos, tornando-se Istambul, começa a circular por Moscovo a ideia de que a “terceira Roma” devia ser ali, na capital de um grande império que era o garante da Ortodoxia cristã no mundo.

É assim que Moscovo continua a encarar-se não apenas como mais um Patriarcado inter pares no mundo Ortodoxo, mas como a principal Igreja. O problema para os Russos que partilham desta visão é que embora a cidade tenha caído, o Patriarcado de Constantinopla manteve-se e o verdadeiro primus inter pares ortodoxo continua a residir ali, apesar de ter na cidade pouco mais do que cinco mil fiéis, comparados com os 200 milhões de Moscovo.


O período soviético veio congelar as pretensões da Igreja Russa, que foi sujeitada a uma perseguição impiedosa, mas infelizmente quando esta foi restaurada, em vez de insistir numa saudável separação e distância, a Igreja deixou-se envolver com o Estado e em troca da protecção de que goza corre sempre o risco de ser usada para benefício dos projectos e intenções do Kremlin e do seu homem forte, Vladimir Putin.

Quando a Ucrânia se tornou independente a sua Igreja Ortodoxa continuava sujeita à hierarquia em Moscovo. Mas a tradição na Igreja Ortodoxa é de “uma nação, uma igreja”, e por isso alguns bispos ucranianos começaram a reivindicar a criação da sua própria igreja ortodoxa.

O resultado foi uma confusão. Em 1990 formou-se a Igreja Ortodoxa Autocéfala da Ucrânia e, dois anos mais tarde, a Igreja Ortodoxa da Ucrânia – Patriarcado de Kiev. As duas eram rivais, unidas apenas na sua oposição à Igreja Ortodoxa da Ucrânia – Patriarcado de Moscovo, que era, e é, a Igreja Ortodoxa que se mantém ligada à igreja russa.

Nas bancadas, a observar estas guerras internas e a comer pipocas, estavam os membros da Igreja Greco-Católica da Ucrânia, que é a maior Igreja oriental autónoma em comunhão com o Papa, representando cerca de 10% da população.

A resposta de Moscovo perante a criação das igrejas autónomas russas foi de desprezo. Eram hereges e não reconhecidas canonicamente pelo resto do mundo ortodoxo. O Patriarcado russo continuava a insistir que era a única autoridade legítima ortodoxa na Ucrânia. Mas tudo isso mudou em 2018, quando o Patriarca de Constantinopla concedeu à Igreja Ucraniana o tomos, isto é, o reconhecimento oficial de autocefalia. Inteligentemente, as duas Igrejas ucranianas fundiram-se nesse momento para formar uma única Igreja autocéfala na Ucrânia, que imediatamente teve o reconhecimento e o apoio do Estado, ansioso para se livrar de vez da influência de Moscovo. Claro que isso é mais fácil dizer do que fazer, e houve muitos padres, monges, bispos e comunidades que se mantiveram fiéis a Moscovo, por variadíssimas razões.

Como se pode ver a dimensão religiosa aqui não está na raiz do conflito actual, que tem muito mais a ver com questões económicas (recursos naturais) e geopolíticas (com a Rússia a querer manter e alargar a sua esfera de influência), do que com igrejas, mas não sendo a causa é uma dimensão que complica ainda mais um problema que já de si é difícil de resolver.

3.      O tribalismo no cristianismo oriental

E chegamos assim ao terceiro ponto, que é o perigo sempre presente do tribalismo no Cristianismo oriental.

Os católicos de tradição latina têm uma certa aversão às igrejas nacionais. Mas a história ditou que fosse essa a lógica a imperar no cristianismo oriental. Assim vemos que os ortodoxos não têm uma Igreja, com um líder, mas uma multiplicidade de igrejas nacionais ou étnicas, cada uma com o seu próprio líder. Assim, existe a Igreja Ortodoxa da Grécia, da Roménia, da Bulgária, da Letónia, etc., cada uma com o seu líder, seja Patriarca ou não, e todas em comunhão umas com as outras, reconhecendo no Patriarca de Constantinopla uma primazia de honra, que pouco tem a ver com a primazia do Papa na Igreja Católica.

Esta realidade leva a uma grande riqueza em termos de tradição e liturgia, por exemplo, uma vez que a descentralização promove a variedade. Mas tem também um enorme senão, que é a promoção do tribalismo cristão.

Este tribalismo tem duas grandes vertentes negativas. A primeira é mais estrutural, que é o facto de criar obstáculos à evangelização. Uma Igreja que se identifica com uma nação ou com uma etnia torna-se imediatamente menos atractiva para um convertido do que uma igreja que é universal. O resultado prático é que a Igreja Católica de rito latino, que sempre se viu mais como universalista do que étnica, cresceu de uma forma absolutamente desproporcional, enquanto as igrejas ortodoxas – não obstante alguns casos de sucesso de evangelização – continuam remetidas muito à sua própria realidade étnica ou nacional.

Isto é muito aparente nas Igrejas cristãs de países de maioria muçulmana, como a Igreja copta ou a igreja maronita, melquita, ou siríacas, no Médio Oriente. E assim vemos que quando um árabe muçulmano se quer converter, normalmente acaba por entrar para uma igreja evangélica, ou para a Igreja Católica, uma vez que as locais, apesar de serem originárias daquele espaço geográfico, estão de tal forma identificadas com etnias e tradições culturais próprias, que o convertido se sente sempre como um estrangeiro.

Mas o segundo aspecto negativo é mais conjuntural e imediato no seu perigo, que é a cooptação da Igreja pelo Estado para servir interesses que não são religiosos. É isso que estamos a ver na Ucrânia, onde as Igrejas ucraniana e russa estão a ser arrastadas – ou a correr de livre vontade – para um confronto, quando na verdade este nada tem de religioso. Esta promiscuidade entre estado e religião tende a cobrar às religiões um preço muito mais alto do que as eventuais vantagens a curto prazo que podem retirar. Esse é um erro com o qual ucranianos e russos já deviam ter aprendido ao longo do último século, mas que infelizmente parecem teimar em querer repetir.

 4.      E a Igreja Católica nisto tudo?

Da próxima em Moscovo?

Por estranho que pareça, a Igreja Católica é afectada por esta crise que se passa entre dois países de esmagadora maioria ortodoxa.

A Igreja Greco-Católica da Ucrânia pode representar só 10% da população, mas é a maior comunidade católica no mundo tradicionalmente ortodoxo. Para terem uma ideia, enquanto existem cerca de cinco milhões de católicos na Ucrânia – mais uma significativa diáspora de greco-católicos em várias partes do mundo – o número de católicos na Rússia é de apenas 140 mil.

Estes católicos ucranianos sofreram duramente, mais até do que os seus irmãos ortodoxos, pela sua fidelidade a Roma. Num momento destes, em que se sentem injustiçados, esperam poder contar com o apoio do Papa.

Mas não podemos esquecer que um dos grandes objectivos ecuménicos deste pontificado é de conseguir visitar a Rússia e ter, lá, um encontro com o Patriarca de Moscovo. É algo que o Papa Bento XVI e, sobretudo, João Paulo II já queriam ter feito e não conseguiram. Se a Igreja Católica for vista a manifestar demasiado apoio à Ucrânia ou a censurar a atitude da Rússia, as probabilidades de esta visita acontecerem reduzem-se a zero. Já o contrário, uma visita do Papa ao Patriarca Kiril num contexto de um cerco à Ucrânia e com a Igreja russa firmemente ao lado de Putin, será vista por muitos católicos ucranianos como uma traição.

Até agora o Papa tem feito aquilo que lhe cabe, que é apelar incansavelmente para uma solução pacífica para esta crise. Se de facto começar um conflito armado em maior escala, veremos se isso é suficiente.

Wednesday 16 February 2022

Pro Deo et Patria

Francis X. Maier
Para muitas famílias, os ventos de guerra que nos chegam da Ucrânia nestes dias trazem memórias comoventes.

Bill Degnan nasceu no final da Primeira Guerra Mundial, o mais velho de dez irmãos numa família de católicos irlandeses. O seu pai trabalhou nos andaimes de Nova Iorque. Os Degnan viviam pouco acima da linha da pobreza. Winnie, o irmão mais novo do Bill, morreu de difteria na infância. Mas o Bill e o seu outro irmão Joe chegaram a adultos. Depois do ataque ao Pearl Harbour alistaram-se os dois na tropa. Nem hesitaram. Estavam ansiosos para ir. Era a coisa certa a fazer. O Joe serviu como radialista da Marinha num submarino no Pacífico. O Bill entrou para o exército como tripulante de um caça-tanques e esteve envolvido em combates na Europa. Ambos sobreviveram à guerra.

Eram meus tios. Conheci-os quando era criança. Eram bons homens, muito católicos, e eu adorava-os. Cresci à sua sombra, com uma dieta regular de filmes de heróis feitos na ressaca da vitória na guerra. Claridade moral, sacrifício pessoal e um sentido de propósito atravessam uma geração de filmes de combate. Neles eu via o reflexo de homens como o Bill e o Joe.

O cinema de guerra tornou-se mais escuro com a Coreia e o Vietname. No seu cinismo, os filmes tornaram-se uma espécie de imagem invertida dos melodramas que vieram substituir. Foi só com o brilhante “O Resgate do Soldado Ryan” (1998), seguido da soberba minissérie “Band of Brothers” (2001), que o cinema arranjou forma de combinar a necessidade moral de uma guerra justa com o seu terrível custo em termos de sofrimento e violência. O patriotismo, bem entendido, é uma virtude. Mas pode ser acompanhado de uma factura muito alta e muito feia. 

Mais recentemente a HBO produciu “O Pacífico” (2010), uma minissérie que segue os fuzileiros que combateram nas selvas e através das ilhas do Pacífico. É inesquecível. Eu vi tanto o filme de Spielberg como as séries da HBO várias vezes. A guerra na Europa foi terrível e devastadora, mas travou-se nas ruínas de uma cultura ocidental comum. A guerra no Pacífico teve uma ferocidade incessante mais profunda e pura, livre de qualquer sistema de ética ou religião comuns e frequentemente agravada por ódio racial de ambos os lados. A Convenção de Genebra e as suas “regras de combate” foram largamente ignoradas. O resultado disto é que a violência representada em “O Pacífico” é de um realismo que tem tanto de historicamente correcto como de horrendo.

Onde é que eu estou a chegar com isto?

Horácio, o poeta romano, escreveu a famosa frase “Dulce et decorum est pro patria mori” no primeiro século antes de Cristo – uma fase tardia da República Romana, repleta de um intenso orgulho nacional, ambição e expansão territorial. Dois mil anos mais tarde essas mesmas palavras estão gravadas em pedra noutra república – a americana – por cima da entrada do Anfiteatro Memorial do Cemitério Nacional de Arlington, em Washington. A tradução é “É doce e adequado morrer pela pátria” ou, mais precisamente, “pela terra dos seus pais”.

As palavras do poeta perduraram pelos séculos porque, na sua melancólica nobreza, são verdadeiras. Defender as pessoas que amamos, e a nação que é a nossa casa, é uma coisa boa. É uma coisa boa arriscar o conforto e a liberdade e, em última instância, quando assim for necessário, a vida, para proteger os outros e resistir ao mal.

Batalha das Ardenas

É verdade que o patriotismo pode transformar-se de forma tóxica. A nação pode tornar-se uma espécie de ídolo. Como disse Chesterton, a expressão “o meu país, bem ou mal” faz tanto sentido como dizer “a minha mãe, bêbada ou sóbria”. Existem limites morais para a lealdade. Mas os seres humanos são criaturas de lugares e das relações que neles brotam raízes e dão fruto. Essa “pertença” a algo maior do que nós mesmos – o lugar e o povo que nos deram vida, que nos formaram e sustentam – é o que queremos dizer quando falamos em casa, e é por isso que os melhores ideais de uma “pátria” podem, de facto, exigir o nosso serviço.

Os católicos americanos sempre compreenderam isto. Tipicamente, os católicos encheram as fileiras das academias militares de forma desproporcional. O mesmo padrão pode ver-se (como bem notou o académico protestante Stanley Hauerwas) nas agências nacionais de segurança e de informação. A mais alta condecoração militar dos Estados Unidos, a Medalha de Honra, foi entregue a nove capelães ao longo da nossa história. Cinco deles eram padres católicos.

O amor pela pátria levou o Bill e o Joe Degnan a alistarem-se. No final da guerra o Joe regressou do Pacífico, criou uma família e teve uma carreira de sucesso na General Motors. A experiência do Bill foi diferente. Num combate de proximidade, nas Ardenas, o seu veículo antitanque foi atingido directamente. O combustível e as munições detonaram, incinerando a tripulação – todos menos o Bill, que foi lançado 10 metros pela explosão e ficou gravemente ferido.

Com o passar do tempo o Bill recuperou, pelo menos fisicamente. Regressado a casa, casou-se com uma boa mulher e tiveram uma filha linda, a minha prima Mary. O Bill era um bom trabalhador, mas tinha dificuldade em manter um emprego. Tudo lhe corria bem durante alguns anos, mas depois desaparecia para os hospitais de veteranos para aconselhamento e terapia de choque. Acabava sempre por regressar à família, bem e em paz. É assim que eu me lembro dele. Mas não durava. Nunca conseguiu esquecer a explosão, os gritos ou o cheiro. Quando a Mary morreu, ainda adolescente, num acidente de viação, ele nunca mais foi o mesmo.

O Bill Degnan era um bom cristão. Um marido fiel, um pai devoto, de comunhão diária. E depois chegou o dia em que desistiu. Entrou na garagem, fixou uma corda a uma trave e enforcou-se.

Há mais de cinquenta anos que rezo pelo Bill todos os dias. Não me preocupo muito com a sua alma, Deus é demasiado rico em misericórdia para esquecer um homem quebrado por um sofrimento que não criou, nem merecia. Antes de entrarmos numa guerra – qualquer guerra, mesmo uma “boa” guerra – precisamos de pensar muito seriamente sobre o verdadeiro custo humano. E eu não consigo deixar de pensar se o Bill terá combatido e sofrido por uma nação e um povo… que já não somos.


Francis X. Maier é conselheiro e assistente especial do arcebispo Charles Chaput há 23 anos. Antes serviu como Chefe de Redação do National Catholic Register, entre 1978-93 e secretário para as comunidades da Arquidiocese de Denver entre 1993-96.

Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na Segunda-feira, 14 de Fevereiro de 2022)

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Thursday 10 February 2022

Morreu o Patriarca que enfrentou a Ditadura na Eritreia

Estão a circular notícias da morte do Patriarca António, da Igreja Ortodoxa da Eritreia.

O Patriarca estava em prisão domiciliária há cerca de 16 anos, desde que contestou a interferência do Governo ditatorial daquele país – conhecido como a Coreia do Norte de África – nos assuntos internos da Igreja, incluindo ordens para excomungar fiéis e a detenção de padres.

Ao longo de todos estes anos o Patriarca António nunca cedeu à vontade do Governo de mudar de tom. Morreu na quarta-feira, na sua residência. A imprensa da Eritreia, que é totalmente controlada pelo Governo, não confirmou ainda oficialmente a notícia.

A Igreja Ortodoxa da Eritreia é a maior do país e uma das únicas quatro cuja existência é tolerada pelo regime. Originalmente a Igreja estava unida à da Etiópia, mas separou-se depois de a Eritreia se ter tornado independente, e recebeu estatuto de Igreja autocéfala. Faz parte da comunhão de Igrejas Ortodoxas Orientais pré-Calcedónias, juntamente com a Igreja Copta e a Igreja Arménia

António foi dos primeiros monges da Eritreia a ser feito bispo e tornou-se mais tarde o terceiro patriarca daquela Igreja.

Desde a sua detenção, o Governo manipulou a eleição de outro Patriarca, que entretanto já morreu. Em Junho do ano passado outro ainda foi eleito, que é reconhecido pelo Governo como o Patriarca, mas não por muitos fiéis, incluindo os da diáspora.

O Patriarca António será para sempre lembrado como uma testemunha da verdade e da resistência cristã à tirania.

Rezemos pela libertação da Eritreia e pela liberdade para os fiéis naquele país, sejam de que confissão religiosa forem.

Tuesday 8 February 2022

Ursos Pardos e a Nova Criação

Pe. Thomas Weinandy

A primeira vez que vi um urso pardo foi há muitos anos, nas Montanhas Rochosas, no Canadá. Por alguma razão fiquei cheio de vontade de lhe fazer uma festinha. Era tão grande e peludo. Seria maravilhoso, pensei, poder fazer festinhas a um urso pardo. Claro que se pode sempre fazer festinhas a um urso pardo sedado, mas isso não conta. Seria batota, e por isso não daria a mesma satisfação. O problema, obviamente, é que muito antes de eu conseguir chegar suficientemente próximo de um urso pardo para poder fazer-lhe uma festinha, ele faria uma “festinha” a mim e assim terminaria abrupta e conclusivamente esse meu propósito. O que me conduz ao ponto onde quero chegar.

Qualquer bom tomista nos dirá que os animais, mesmo o eminente urso pardo, não têm almas imortais e, por isso, deixam de existir quando morrem. Isso pode bem ser verdade. Mas eu sei, contudo, que no final dos tempos, quando Jesus regressar na sua glória, inaugurará uma Nova Criação, um Novo Céu e uma Nova Terra. Normalmente, quando pensamos nessa nova criação, pensamos nas estrelas, nas montanhas, nas plantas e nas árvores que ganharão uma novidade e um esplendor que as nossas imaginações não conseguem alcançar. Mas os animais não constam.

A Bíblia, porém, sobretudo no Antigo Testamento, refere que todas as criaturas serão encorajadas a louvar e glorificar o seu Criador, e é precisamente isso que fazem. Não são só o sol e a lua que louvam o Senhor, mas “as feras e todos os gados, répteis e aves voadoras” (Salmo 148). No Livro de Daniel lemos que todas as criaturas de Deus – baleias, pássaros, animais selvagens, gado – o devem “exaltar para sempre” (Daniel 3). Tudo o que Deus criou é bom, e por isso os animais, na sua própria natureza, na sua intrínseca bondade, exaltam e louvam Deus.

O pássaro que voa louva o Senhor, o coiote que uiva louva o Senhor, até o gato arrogante que dorme louva o Senhor – e claro que o grande urso pardo também louva o Senhor. Mas o que me espanta ainda mais é o “para sempre”. É essa a esperança orante da profecia bíblica. Mas se os animais, enquanto espécie, deixarem de existir, não serão capazes de louvar Deus para sempre.

Isaías profetiza que com a chegada da Era Messiânica escatológica, “o lobo habitará com o cordeiro, o leopardo deitar-se-á junto do cabrito, o vitelo e o leão pastarão juntos; A vaca pastará com o urso [pardo], as suas crias deitar-se-ão juntas, e o leão comerá erva com o boi” (Isaías 11,6-7).

Há uns anos uma raposa começou a entrar regularmente no terreno do nosso convento em Washington D.C. e eu comecei a dar-lhe os restos do jantar – gordura, ossos de frango, etc. Depois de algum tempo, ela começou a aproximar-se até a cerca de um metro e meio de mim, e eu lançava-lhe a sua comida diária. O meu objectivo era conseguir que ela comesse da minha mão. Alguns dos meus confrades criticaram-me por estar a alimentar um animal “selvagem”. Respondi que a estava a preparar para o eschaton. Calculei que se o nosso fundador, São Francisco de Assis, conseguiu domesticar um lobo, eu conseguiria domesticar uma raposa. No final, porém, os frades anti-escatológicos ganharam e fui proibido de alimentar a minha amiga raposa.

Contudo, São Paulo declara que “o mundo todo espera e deseja com ânsia essa manifestação dos filhos de Deus. Na verdade, o mundo ficou sujeito ao fracasso, não por sua vontade, mas porque era esse o plano de Deus. Entretanto, Deus manteve-o sempre nesta esperança: Um dia, o mundo será libertado da escravidão e da destruição, para tomar parte na gloriosa liberdade dos filhos de Deus. Bem sabemos que até agora o mundo todo geme e sofre como se fossem dores de parto. Não é só o Universo, mas também nós que já começámos a receber os dons do Espírito. Nós sofremos e esperamos a hora de sermos adotados como filhos de Deus, a hora da nossa total libertação” (Romanos 8, 19-23).

Em comunhão connosco, toda a criação – estrelas, montanhas, plantas, árvores e, sim, animais – gemem, aguardando ansiosamente o dia em que será libertada da maldição do pecado que é a morte. Só quando Jesus regressar na sua gloria escatológica, e nos ressuscitar em corpo de entre os mortos, é que toda a criação poderá partilhar na gloriosa liberdade dos filhos de Deus.

Não faço ideia se todos os animais que alguma vez existiram regressarão à vida no Novo Céu e na Nova Terra. Mas acredito que nada da boa Criação de Deus se perderá, precisamente porque o bom Deus a criou boa. Tal como Deus criou toda a Criação boa através da sua Palavra, também Deus recriou toda a Criação através da sua Palavra Incarnada. E tal como Deus deu em primeiro lugar a Adão e a Eva “domínio sobre os peixes do mar e as aves do céu e sobre todos os animais que andam sobre a terra” (Génesis 1,28), assim os filhos e as filhas redimidas de Deus cuidarão da nova criação.

O Novo Céu e a Nova Terra partilharão da glória ressuscitada da humanidade – não haverá mais gemidos e decadência. Esta é a esperança que reside na plenitude da Era Messiânica. Quando Jesus surgir no seu trono celestial, ouvi-lo-emos proclamar: “Eis que faço novas todas as coisas” (Revelação 21,5).

Assim, a minha esperança é de que se não posso fazer festinhas ao urso pardo nesta Criação, podê-lo-ei na Nova Criação. E estou convencido de que ele me dará um grande e entusiástico abraço de volta. Mais importante, exaltaremos e louvaremos juntos, para sempre, cada um de acordo com a nossa natureza, Jesus Cristo, nosso Senhor e Salvador.


Thomas G. Weinandy, OFM, um autor prolífico e um dos mais conhecidos teólogos vivos, faz parte da Comissão Teológica Internacional do Vaticano. O seu mais recente livro é Jesus Becoming Jesus: A Theological Interpretation of the Synoptic Gospels.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing no domingo, 6 de Fevereiro de 2022)

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The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing.



Wednesday 2 February 2022

O Jesus de Marc Chagall

Brad Miner

Em “Crucificação Branca” de Marc Chagall, que está actualmente exposta no Instituto de Arte de Chicago, Jesus é representado com um talit, o tradicional xaile de oração usado por judeus religiosos, sobretudo os hassidim. Tem também um pano na cabeça, ao estilo de um pastor. (Tradicionalmente, os homens judeus cobrem sempre a cabeça quando rezam.) Por cima da sua cabeça, praticamente ilegível, está a inscrição INRI em latim e em aramaico. Por baixo dos seus pés vê-se uma menorá. Chagall estava claramente a enfatizar o carácter judaico de Jesus.

O académico Ziva Amishai-Maisels, da Universidade Hebraica de Jerusalém, explica que a forma como Chagall escreve “Nazareno” (HaNotzri), em “Jesus de Nazaré, Rei dos Judeus”, é um trocadilho do artista, uma vez que Nazareno se tornou um sinónimo de “Cristão”. Assim, escreve Amishai-Maisels, Chagall “sublinha a importância de Jesus tanto para cristãos como para judeus, pois o Jesus judeu com a cabeça coberta e o xaile com franjas é também um cristão”. (Art Institute of Chicago Museum Studies, Vol. 15, No.2, 1991).

(É interessante referir que letra árabe “nun” foi usada pelo Estado Islâmico para identificar as casas de cristãos no Iraque e na Síria. Esta é a primeira letra de Nazareno e indica aqueles que devem ser exilados ou martirizados. A letra nun, ou nün, escreve-se de forma semelhante em Hebraico, Aramaico e árabe.)

Em 1938, quando Chagall pintou “Crucificação Branca”, os judeus da Europa estavam a começar a sofrer a pior perseguição da história. Os nazis tinham-se tornado o principal partido da Alemanha quatro anos antes e, pouco depois, Adolf Hitler foi feito Chanceler. Os judeus estavam a ser sistematicamente privados dos seus direitos civis desde 1934. Foi inaugurado o Gabinete de Política Racial – sede da “raça superior” – e nasceu a Lebensborn, que tinha o objetivo de promover a pureza racial, em parte pela procriação de mulheres arianas solteiras com homens arianos.

Hitler passou de Chanceler a Presidente, e depois a Führer. O campo de concentração de Dachau abriu em 1933. Destinava-se principalmente a prisioneiros políticos, mas em breve abriram outros campos, com o objectivo de levar a cabo o extermínio dos judeus e de outros povos “depravados” na Europa.

E ao longo dos anos trinta e grande parte dos quarenta, o mundo dormia.

Nesta altura Chagall vivia em Paris e as notícias que lhe chegaram do pogrom de Kristallnacht, e outros ataques aos judeus, foram o ímpeto para a criação de “Crucificação Branca”.

Na Noite de Cristal, de 9 para 10 de novembro de 1938, milhares de lojas, casas, hospitais e sinagogas judaicas foram atacadas pelo grupo paramilitar nazi Sturmabteilung (SA). Trinta mil homens judeus foram detidos e enviados para os campos. Tudo isto, e mais ainda, foi concentrado por Chagall em “Crucificação Branca”, embora as cenas do pogrom tenham sido transladadas para a sua terra natal de Vitebsk, actualmente na Bielorrússia.

Chagall estava bem ciente do perigo em que se colocava a si mesmo e à sua família com esta pintura, caso os alemães ocupassem Paris. Quando isso aconteceu, em 1940, os Chagall já tinham partido para Marselhas, onde foram detidos pelos nazis. Tal como no filme Casablanca, de 1942, os Chagall estavam a tentar chegar a Lisboa, onde esperavam assegurar uma passagem para Nova Iorque. Graças a Deus acabaram por conseguir, mas não sem que antes as suas pinturas, já encaixotadas, incluindo a “Crucificação Branca”, tivessem sido brevemente apreendidas, primeiro pelos alemães, no sul de França, depois por fascistas espanhóis, a caminho de Portugal.

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Chagall poderá ter sido ingénuo ao pensar que a União Soviética, outro bastião de antissemitismo, viria em socorro dos judeus da Europa, mas aparentemente é isso que podemos observar no canto superior esquerdo do quadro, na forma de uma turba com bandeiras encarnadas.

Os restantes tableaux que rodeiam Jesus são reconhecíveis, ainda que não nos seja possível entender todas as referências específicas. E não podemos culpar o artista por ter uma visão um pouco romântica da Rússia, o país onde cresceu. Afinal de contas, o “New York Times” também tinha. E Chagall tinha sido o Comissário das Artes em Vitebsk.

Quando deixou a União Soviética, em 1992, foi em parte porque tinha dado por si do lado errado daquilo que significava ser um revolucionário soviético. Nas palavras de Talya Zax, a esperança de Chagall era “um modelo da esperança do seu país, mais frágil do que qualquer dos revolucionários estava pronto a admitir. Tanto para ele como para eles, o equilíbrio não se poderia manter”.

O antissemitismo na Rússia era evidente para todos. Como escreveu Sarah Boxer – numa recensão a uma biografia de Chagall no “New York Times”, “a cegueira de Chagall em relação aos horrores soviéticos é quase patológica”.

Chagall criou pelo menos 100 cenas de crucificações ao longo dos anos, e fez vitrais para igrejas. Porém, nada sugere que fosse um cristão disfarçado. David Lyle Jeffreys nota, contudo, que Chagallera amigo próximo de Raïssa Maritain, mulher do filósofo Jacques Maritain (ambos católicos convertidos, ela do judaísmo ortodoxo, ele do agnosticismo protestante) e ela terá dito que Chagall sempre pintou “Christ étendu a travers le monde perdu” (Cristo estendido no mundo perdido).

Seja porque via Cristo simplesmente como um judeu extraordinário e ético do primeiro século, ou, menos provável, como o Messias, para Chagall Jesus sempre representou a esperança, o que significa que existe verdade na obra do pintor.

É certo que Chagall pintava Cristo sobretudo por razões políticas. Como diz o professor Amishai-Maisels, Chagall nunca tentou “representar o Messias cristão… mas o mártir judeu que não tem qualquer esperança de salvação”. Pelo menos não no mundo como Chagall então o via, um mundo em que os próprios cristãos tinham esquecido a mensagem de Cristo de paz e fraternidade.

Em todo o caso, trata-se de uma paixão que durou toda a vida. Chagall pintou a sua primeira crucificação, “Golgota”, em 1912 (actualmente no MoMA, em Nova Iorque). E continuou a pintá-las até ao início dos anos 70.

Hoje, judeus e cristãos, unidos na tradição bíblica, são cada vez mais sujeitos a perseguição, e não apenas no lugar onde ambas as religiões nasceram – as terras hostis em torno da Terra Santa – mas também nos nossos actuais impérios romanos, onde novos e seculares deuses surgem para desafiar o Senhor.

Resta apenas dizer que “Crucificação Branca” é uma das duas pinturas favoritas do Papa Francisco, a par de “O Chamamento de São Mateus”, de Caravaggio. O Papa tem bom gosto em arte.


Brad Miner é editor chefe de The Catholic Thing, investigador sénior da Faith & Reason Institute e faz parte da administração da Ajuda à Igreja que Sofre, nos Estados Unidos. É autor de seis livros e antigo editor literário do National Review.

(Publicado pela primeira vez na terça-feira, 1 de Fevereiro de 2022 em The Catholic Thing)

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