Wednesday, 14 September 2022

Banquetes e Famílias

Michael Pakaluk

Não sei de qualquer outro mandamento de Cristo que seja tão universalmente desobedecido que aquele que ouvimos recentemente no Evangelho de Domingo: “Quando deres um banquete, convida os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos” (Lc. 14,13).

“Ah, mas a minha paróquia organiza um jantar para os sem-abrigo por altura do Natal, e nós contribuímos com bens enlatados…” Lamento, mas não é isso que diz o Grego na Bíblia. Uma tradução mais literal seria “Sempre que deres um banquete”. Jesus está a estabelecer uma regra geral, não uma coisa que se possa satisfazer apenas de vez em quando. Em todas as ocasiões em que se der um banquete, diz Ele, é isto que deve fazer.

E mais, Ele afirma que só devem ser convidados aqueles que não tenham meios para retribuir (Lc. 14,14). Convidar um ou dois pobres, simbolicamente, não cumpre com a intenção do mandamento.

Eu já participei em milhares de “banquetes” (a palavra “dochē” que Lucas usa abrange todo o tipo de recepções ou mostras de hospitalidade, como encontros informais, cocktails, copos de água, evidentemente, eventos de angariação de fundos, para não falar de encontros de família e jantares festivos). De todas as vezes que os anfitriões eram cristãos, esta regra de Nosso Senhor nunca foi seguida. Um mandamento que devia ser seguido sempre, não é seguido nunca.

Então o que é que se passa aqui? Estas palavras não são para seguir? A passagem é de tal forma hiperbólica que é essencialmente impraticável.

Curiosamente, o próprio ensinamento tornou-se mais claro para mim quando li a “Riqueza das Nações” de Adam Smith. A certa altura ele pergunta “O que é feito dos banquetes? (III. iv). Nos relatos históricos antigos e medievais podemos ler, diz ele, que os homens ricos faziam banquetes quase diariamente. Esta era uma prática comum entre chefes dos Highlands escoceses, diz o autor, mesmo no início do Século XVIII.

Recordo-me de Sir Walter Scott iniciar o “Waverley” precisamente com uma descrição de um banquete desses. “Em Quo Vadis” os banquetes da corte de César são uma grande tentação e, claro, sabemos que João Baptista foi executado por um Herodes em estado de sedução. Mas nas sociedades modernas a prática tinha caído em desuso. Adam Smith explica.

“Num país que não tem comércio exterior nem manufaturas mais aperfeiçoados”, explica Smith, “um grande proprietário de terras, por não ter nada pelo que possa trocar a maior parte da produção de sua terra que vá além do necessário para a manutenção dos agricultores, consome tudo com seus hóspedes na casa senhorial. Se essa produção excedente for suficiente para sustentar 100 ou 1 000 pessoas, só pode utilizá-la para isso e apenas para isso.”

Daí que homens ricos, “desde o soberano até ao mais pequeno barão” sempre tiveram os seus séquitos de apoiantes leais, a quem banqueteavam constantemente. Qualquer excesso para além deste era usado para criar maior dependência entre os agricultores arrendatários. Era assim que os ricos mantinham o seu poder, diz Smith, criando dependência, principalmente através de banquetes.

Aqui Smith está a desenvolver o argumento feito por David Hume de que, curiosamente, o aumento da manufactura e do comércio externo levou à dissolução do poder baronial, uma vez que os ricos podiam agora gastar o seu dinheiro acumulando artefactos luxuosos. É verdade que ao fazê-lo, estavam ainda a “suportar” uma rede de artesãos e de comerciantes que forneciam estes luxos, mas não detinham qualquer poder sobre esta rede, quer por causa da sua dispersão, quer porque o seu próprio contributo para a manutenção desta era relativamente pequeno. Desta forma, a emergência de uma sociedade comercial sustentava a emergência de uma sociedade livre.

Banquete diário de uma família numerosa
Não me preocupa agora avaliar este argumento fascinante. É evidente que aquilo que Smith considera uma liberdade, ou seja, a autonomia dos consumidores e dos produtores, tem aspectos negativos que nos preocupam cada vez mais. Também é verdade que sistemas análogos ao do senhor medieval e o seu séquito de dependentes continuam bem vivos na nossa cultura política actual.

Antes, o que quero realçar é que nas sociedades tradicionais o “banquete” representa o destino dado à riqueza excedentária. Nosso Senhor está a usar a técnica retórica de tomar a parte pelo todo. Descreve um uso de riqueza excedentária, o único que existia na altura, para se referir de forma vívida a qualquer uso de riqueza excedentária.

Assim, o mandamento sobre banquetes é de facto um mandamento sobre a importância de destinar a riqueza excedentária à esmola. E essa, claro, mantém toda a sua validade nas sociedades comerciais.

Cristãos há, porém, que têm conseguido cumprir o mandamento de uma forma próxima do seu significado original. Ocorrem-me Santa Isabel da Hungria e Santa Margarida da Escócia. Estas mulheres trocaram as comitivas das suas cortes pelos mais pobres dos pobres. Em vez de banquetear diariamente centenas de nobres, estas santas tornaram-se conhecidas por montar hospitais junto aos seus palácios e cuidar dos aleijados, dos coxos e dos cegos, antes de qualquer outro.

Mas há outros cristãos que também o fazem, são os pais, especificamente os de famílias numerosas. Refiro-me a famílias numerosas porque é nesses casos que se torna mais evidente o total compromisso de riqueza excedentária e as suas mesas de jantar são o mais próximo, visualmente, de uma corte medieval.

Os seus filhos são como os cegos, isto é, sem educação; certamente que são pobres, uma vez que nem sequer podem possuir bens; aleijados – alguns nem andar sabem – e coxos, isto é, imaturos. Não podem retribuir agora nem, se a sua educação for bem dada, alguma vez o farão, uma vez que a melhor forma que têm de mostrar gratidão é fazer o mesmo, tendo os seus próprios filhos mais tarde.

Devemos rejeitar o falso argumento de que os pais que acolhem filhos apenas o fazem por razões egoístas, para sua própria realização, ou que não fazem mais do que a sua obrigação, uma vez que os geraram, e por isso não têm qualquer mérito. Certamente que estes pais servem o bem comum tendo tantos filhos durante um catastrófico inverno demográfico.

Sim, os pais de famílias numerosas cumprem fielmente, e de forma muito evidente, este mandamento de Nosso Senhor.


Michael Pakaluk, é um académico associado a Academia Pontifícia de São Tomás Aquino e professor da Busch School of Business and Economics, da Catholic University of America. Vive em Hyattsville, com a sua mulher Catherine e os seus oito filhos.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na quarta-feira, 14 de Setembro de 2022)

© 2022 The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de reprodução contacte: info@frinstitute.org

The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing.



1 comment:

  1. Muito bom! De facto, as mais pequenas obras de misericórdia - vestir os nus, alimentar os esfomeados, educar os incultos - começam sempre em casa! E a família numerosa é uma das mais exigentes escolas de santificação que conheço. Vai crescendo no ambiente católico a realização, tão evidente, de que a vida matrimonial e familiar não é em nada inferior à consagrada ou sacerdotal na construção de santos...

    ReplyDelete

Partilhar