Wednesday 26 February 2020

Elogio do (verdadeiro) jejum

Helen Freeh
Recentemente chamou-me a atenção um panfleto na minha paróquia. Continha sugestões inovadoras para sacrifícios quaresmais. Partes eram atribuídas ao Papa Francisco, mas outras partes eram escritas por alguém certamente bem-intencionado, mas claramente tonto. Perguntava em letras garrafais: “Está a pensar deixar de comer chocolate para a Quaresma? Para uma Quaresma mais profunda, pense antes em…” E depois vinha a lista: Jejue de dizer palavras ofensivas e diga coisas simpáticas; jejue de rancor e encha-se se paciência; jejue de egoísmo e seja compassivo para com os outros. E por aí fora.

Depois veio a linha que, sinceramente, me fez rir alto: “Jejue de pornografia”. A ausência de uma compreensão correcta de jejum católico seria cómica se não fosse tão tragicamente enganadora para católicos com falta de catequese.

Devemos sempre evitar pecados como palavras cruéis, rancor injusto, egoísmo e, claro, pornografia! Estas não são coisas boas das quais nos abstemos temporariamente, para oferecer como sacrifício a Deus como parte do nosso jejum. São só coisas más que ofendem sempre a Nosso Senhor e que devíamos sempre evitar fazer.

A ideia de abdicar de pecados como parte da nossa Quaresma confunde a própria natureza e propósito do jejum, que é privarmo-nos de um bem em nome de um bem maior – a proximidade e, por fim, a união com Deus. Não se pode “jejuar” de pecado. Se jejuamos de palavras ofensivas e de pornografia durante a Quaresma, devemos depois voltar a elas na Segunda-feira de Páscoa e anunciar orgulhosamente que no ano seguinte vamos deixá-las novamente? A própria noção é absurda.

Há já algum tempo que muitos de entre nós têm abandonado a compreensão tradicional de jejuar de bens físicos, considerando-o um acto superficial, antiquado ou impensado. Isso leva as pessoas a fazer as “sugestões inovadoras” referidas acima e muitas outras que os leitores facilmente podem imaginar.

O que é que nos leva a descartar a ideia do jejum corporal? Será um medo visceral de privar o corpo de luxos ou de nos sentirmos fisicamente desconfortáveis? Será uma forma de escravatura das nossas dependências físicas, disfarçada de enfoque nas coisas aparentemente superiores e “espirituais”?

Este salto de mortificações corporais para espirituais arrisca-se a tornar-se uma espécie de espiritualismo, em que alguém crê que o espírito é inteiramente à parte da matéria ou do corpo. Ou talvez um tipo subtil de gnosticismo em que se descarta a importância do corpo e, por isso, as mortificações do corpo são vistas como sendo desnecessárias para o crescimento espiritual.

Um católico não deve deixar-se enganar por estas mudanças das práticas tradicionais. Não devemos denegrir a mortificação da carne ou simplesmente considerá-la uma coisa do passado. A natureza do corpo não muda com o tempo e nunca deixa de pedir a sua própria satisfação. Mesmo que diga palavras bonitas e reduza a sua pegada ecológica, colocando os plásticos no ecoponto certo, as dependências corporais mantêm-se presentes, escondidas, até serem postas à prova.

Cristo tentado no deserto
Esse é o problema com estas tentativas erradas de “aprofundar” o tempo quaresmal. A Quaresma não é um período ou de crescimento espiritual ou de melhorar a disciplina corporal. Porque a oração e o jejum andam de mãos dadas. Os três pilares da época penitencial da Quaresma são a oração, o jejum e a esmola. Jejuar sem ser de comida e de bebida real é como dar esmola sem ser com dinheiro verdadeiro. O jejum é de bens físicos e as esmolas para os pobres são de dinheiro verdadeiro ou de bens materiais.

As oferendas espirituais são, como é evidente, muito boas e justas e uma necessidade para quem deseja avançar no caminho da perfeição. Mas para a maioria de nós o progresso costuma fazer-se da ordem natural para a ordem sobrenatural das coisas.

Os nossos corpos estão intimamente ligadas às nossas almas. Os críticos podem pensar que o jejum de gelado, chocolate, doces e por aí fora são actos “menores” ou “impensados” só porque muitos homens e mulheres de fé têm feito as coisas assim ao longo dos anos. Mas permitam-me sugerir, humildemente, que na nossa cultura indulgente a primeira coisa que uma pessoa deve tentar fazer é abdicar dos bens materiais de comida e de bebida.

É precisamente porque é difícil abdicar de bens destes que a pessoa que deixou de consumir café, por exemplo, precisa de recorrer ao auxílio da oração. Quando começarmos a ganhar maior autocontrolo sobre o corpo, então podemos passar para o próximo nível espiritual em que para além de abdicar destes bens espirituais, aprofundamos também a ligação espiritual a Nosso Senhor. Pedimos a graça de ter fé, esperança e amor mais profundos; para ser mais castos, temperados, diligentes, pacientes, bondosos e humildes.

Por isso, durante esta Quaresma, mortifique o seu corpo abdicando daquele café matinal, ou da doçura das sobremesas, e não deixe que ninguém o convença que essa disciplina corporal é simplista ou ultrapassada. E, já agora, arrependa-se dos seus pecados também.


(Publicado pela primeira vez no sábado, 22 de Fevereiro de 2020 em The Catholic Thing)

Helen Freeh obteve a sua licenciatura e mestrado na Universidade de Dallas e fez o doutoramento na Baylor University. Leccionou em Hillsdale College, onde conheceu o seu marido, John. Actualmente goza de uma reforma antecipada e está a criar e a educar em casa os seus filhos em Lincoln, Nebraska

© 2020 The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de reprodução contacte:info@frinstitute.org

The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing.

Friday 21 February 2020

Gewargis e fardos

Gewargis
A eutanásia foi aprovada. E agora? Agora temos todos responsabilidades acrescidas de garantir o respeito pela dignidade. Podemos começar por não dizer que aquela pessoa não é a nossa avó.

Na mesma linha respondi há dias a um testemunho forte de um rapaz que tem uma deficiência física e que pedia que um dia pudesse optar pela eutanásia para não ser um fardo na vida da família.


O Patriarca Gewargis III Ilwan resignou por problemas de saúde. Não o conhecem? Nem à Igreja Assíria do Oriente? Está tudo aqui.

No sábado passado o The Catholic Thing publicou um texto meu sobre um tema que como sabem me é caro. Crianças nos funerais, sim ou não? Podem lê-lo aqui.

Parem de dizer que aquela mulher já não é a vossa avó

Fardo é isto
Ontem perdemos. Não há outra forma de o dizer. Perdemos e por muitos.

O jogo não acabou, mas as possibilidades de travar a eutanásia por via política são praticamente nulas.

Mas a luta não acabou. Mudou foi de campo. Agora, mais do que nunca, nós podemos fazer a diferença. E sabem como é que podem fazer a diferença? Parem de dizer que a vossa avó já não é a vossa avó.

Mais do que meter na cabeça, temos de passar à prática o facto de que a identidade das pessoas, a sua dignidade e essência, não estão vinculados à sua sanidade mental, à sua destreza física ou à sua autonomia.

Aquela senhora que parece a vossa avó mas já não vos reconhece, que já não sai da cama, que se baba e usa fraldas, não é uma ex-pessoa, não é um ser que deixou de ser humano. Aquela mulher continua a ser a vossa avó. É mulher, é humana e não perdeu um pingo da sua dignidade.

O argumento a favor da eutanásia assenta na ideia de que as pessoas podem perder valor. Não podem. Não queremos viver num mundo assim.

Quando a vossa avó for mordida por um zombie e se transformar, aí – mas só aí – podem usar essa expressão. Até lá, não obrigado.

Outra coisa que podem deixar de fazer é falar de pessoas como um fardo, e com isto refiro-me a vocês mesmos também.

Por mais que se fale em morte digna, em sofrimento insuportável e respeito pela dignidade, sabe-se que muitas das pessoas que optam pela eutanásia, ou contemplam a possibilidade, o fazem porque não querem ser um fardo para os outros.

Não há palavras para expressar o triste que isto é. É uma falsa compaixão – bem-intencionada, sem dúvida – que tem efeitos terríveis. As pessoas não são fardos. Cuidar de quem precisa não é um castigo, não é fardo nem é fado. É difícil, sim, mas tem de ser encarado mais do que como uma obrigação, como um privilégio.

Um dia, Deus queira, serei eu a cuidar dos meus pais, como eles cuidaram dos meus avós e – espero bem – um dia serão os meus filhos a cuidar de mim. Isto não é trágico, é belo. Pode ser sujo, difícil, cansativo, mas é um privilégio.

E por isso nunca falem de ninguém como sendo um fardo e nunca, mas nunca, digam que não querem ser um fardo na vida dos outros, porque podem pensar que estão a ser queridos e altruístas, mas o que estão a dizer na verdade é que também não querem que os outros sejam fardos na vossa vida.

Por fim, lembrem-se que há muitos que não têm sequer “outros” que possam cuidar deles. Para esses o drama chama-se solidão. Ou então têm “outros” que não prestam, que não querem saber, que mais valia não serem.

Pode ser que tenhamos oportunidade de ser os “outros” certos para essas pessoas. Isso é um acto de heroísmo a que todos devemos aspirar.

Se vivermos assim, se falarmos assim, se pensarmos assim, podemos não mudar lei alguma, mas faremos mais pela dignidade humana do que todos os políticos que tanto gostam de a invocar.


Wednesday 19 February 2020

Once more unto the breach...

Valha-nos São Crispim
É já amanhã que se vota a eutanásia. Mas a luta não acaba amanhã, só muda de palco.

Passei os últimos dias a trabalhar muitos artigos sobre este tema, deixo-vos links para alguns:


Escusado será dizer que o Conselho de Ética da Ordem dos Médicos chumbou todas as propostas. Até agora todos os pareceres que o Parlamento recebeu – TODOS – foram negativos…

Mudando de assunto, no seguimento do artigo que escrevi sobre crianças nos funerais, publiquei um parecido, mas em inglês, no The Catholic Thing, que podem ler aqui.

O artigo desta semana do The Catholic Thing é sobre o génio da arte sacra Fra Angelico, aconselho vivamente, nem que seja para contemplar a beleza numa altura em que bem estamos a precisar dela.

"I ran a sport club, make me leader of your country"


This is a full transcript, in the original English, of my interview with Simon Kuper, author of several books on football and politics and economy, amongst others. The edited and published version can be found here, in Portuguese.

Esta é uma transcrição completa, no Inglês original, da minha entrevista a Simon Kuper, autor de vários livros sobre futebol e política e economia, entre outros. A reportagem publicada pode ser lida aqui. 
It’s been 26 years since you wrote Football against the Enemy, a book which argues that football is far more than just a game. All these years later, have things changed?
I think in some ways football has become more important in politics in the last few years, because what you see around the world is that voters are becoming distrustful of parties, so if you are a party politician it is harder to have trust. You see that with Hillary Clinton, for example, and more and more you see the Berlusconi phenomenon, where somebody comes from sport, or from football, and says: "I am a respected figure in sport, I ran a sport club – like Berlusconi, or Mauricio Macri –, or I played great football – like George Weah – make me leader of your country". 

As parties become weaker, this sports route becomes more important. Donald Trump has a background in professional wrestling, that helped him build a name among working class Americans, George W. Bush in Baseball, and so on. So I think that in some ways it has become a more common part of politics. 

We tend to think that sports should be free of outside influence. Is this possible? Does politics ruin football?
I think it is very hard to imagine football without a political and social meaning. What are the institutions in Portugal that get most people motivated and build more loyalty? In all our countries we have seen churches become more important and trade unions become less important, people know fewer people... The institutions that have survived are often football clubs. 

Clubs like Benfica and Porto are some of the most powerful, most popular and most beloved institutions in Portugal today, and of course those institutions are not just sport. Benfica also represent Lisbon and the Benfica-Porto relationship is also about the relationship about the two cities, which in Portugal has been a very political relationship, which has caused a lot of anger and mistrust.

So, football is never just football, it always speaks to much wider tribes and divides in society. 

You mentioned the decline in Church attendance and religious affiliation, for example. Some people compare football to religion, do you put much stock in that?
There are obviously huge differences. Football doesn't promise you an afterlife. I don't think football is a religion in that it can't give full meaning to answer the question of why we are on earth, at least for most people. 

I think the similarity is community. If you think of a parish church in Portugal 50 years ago, it was your community, those were the people you knew, you knew them from birth to death, that was where you belonged, unquestionably, it was a place of social support,  place where you celebrated your big life events, births, deaths, weddings, and of course, for most people in Portugal and in Western Europe that has disappeared. So, for a lot of people the community is now the football fandom, and that is true, even among people who don't go to the stadium... I don't know what the average attendance at Benfica is, but let’s say 50,000, but the number of Benfica fans is much higher, so a lot of those people get a sense of identity, who I am, who is my tribe, in this new and rather lonely world, from football. 

You see it in social media as well. If you look at how people describe themselves on Facebook and on Twitter, often they say: "I am João, 21 years old, Porto fan", and that is the identification that he gives. And you see it also in third countries. "I am Mohammad, I live in Kuala Lumpur, 100% Manchester United". 

So, the identity that they are presenting to the world, first, is football, and that becomes more common as these other identities become weaker. 

How familiar are you with Portuguese football? What news reaches you?
I am more aware of your national team, José Mourinho, Ronaldo, than of your club football.

Surely you have heard of Football Leaks. How familiar are you with this case?
Somewhat...

Rui Pinto, a criminal or a whistleblower?
I'd say that it is possible to be both.

I just don't want to step into a field where I don't know the facts.

The past years have given us many suspicions of corruption in Portuguese football. Sporting is involved in the “cashball” case; opponents say Benfica’s leaked emails point to corruption and Porto was at the center of the famous “Golden Whistle investigations” several years ago, although the evidence was considered inadmissible because of illegal phone taps. Fans always whine about corruption when their own teams are in the dumps. In your experience, is corruption really that widespread in football in general? 
I think historically Portugal has more of a problem than Northern European leagues, and in the past, due maybe more to political interference. I think you see that in the figure of Mourinho. Mourinho is a product of Portuguese football and he knows all about all these fixes, or purported fixes, many of which, I'm sure, are absolutely real. 

So when Mourinho comes to England he presumes it is the same system. So, Chelsea are being nobbled by the BBC, and by Arsenal, and by the FA, and they are all trying to arrange a bad fixture list for Chelsea with the wrong referees, and Mourinho says these things partly to draw attention to himself – he is a kind of verbal performer – but I think he also believes a lot of it. And in the English context it is very bizarre, because almost nobody in English football believes that sort of thing is happening in England.

So people will get very angry at the referee, but they don't have this belief that everything is fixed, everything is corrupt, and I think they are right, I think that in most Northern European countries football is not fixed, not corrupt. With a figure like Mourinho you see this Portuguese mindset of everything is corrupt, transposed into a country where it just seems a bit bizarre. 

Britain has enormous flaws, enormous problems, but I don't think the whole football system is secretly rigged, which he does seem to think. 

Up to what point should the state be involved in seeing its domestic football?
You need a rule of law environment, so if people are fixing football matches, that should be a crime. It is not a crime in all European countries. So you need a robust law that says that if you fix a football match that is a criminal offense, and then that needs enforcement, and that needs to have police involvement.

But in terms of running day-to-day football I'd be happier if it was done by a football association that is separate from the state but overseen by the state. Often, around the world, we see football federations that are completely corrupt. Argentina, under Julio Gondona was an example where the money was just stolen and none goes back into football, in those cases you need a state that steps in. 

So the football federation should be regulated, but not state-run, ideally. 

How about football violence? In Portugal the current law, still being fully implemented, calls for segregated seating for organized football firms (ultras), issuing of fan IDs, and calling for all football supporter groups to be legalized and form associations if they intend to benefit from club support. Do you know of any other country that has taken these measures to try and fight football violence? What do you think of them?
The thing is we know a lot about football violence because Britain had the unfortunate distinction of being the first country where this was a big problem. 

So from the 80s the British government has had 35 years, really, of trying to work out what to do, and it has mostly been successful in that football violence in Britain is much lower than it was.

I think the football ID scheme is very damaging, because it makes it very difficult for casual people to go to a football match. They did this in Italy at one point. You have to have an ID, so if you and your friends decide one day that you want to go to a football match it is impossible because you haven't ordered your IDs weeks before and it is exactly the kind of casual fans you want to encourage, as well as women, to keep the stadium atmosphere a bit less insane and fanatical, which is the situation you'd have if you only had ultras. So I think fan ID is just an obstacle to a majority of fans.

You really only need to think about a small group of people. And the best way to deal with these people is through the police. Because what you have in a country like Portugal, Italy or Argentina, is that the ultras and the club are very intertwined. So the ultras know where the club's president lives, the president needs their support, he needs them not to be chanting against them, money is often exchanged, favours are done, if they are violent then the president doesn't dare to step in... These kinds of cosy relationships between ultras and the club are very dangerous.

I spoke to one Italian club president and he said: “What can we do? We are afraid of these people”. The club doesn't have the resources to deal with criminals, and when you are talking about hooligans doing violence that is criminal. You need the police. 

And it is not very complicated, because you are not talking about very many people. You don't want the police to worry about 50,000 people, because we are only talking about 500. You want the police to know who those 500 are, if somebody shouts something racist, or hits somebody, or throws a firework in the crowd, that is all on CCTV now, we know exactly who those people are. One good thing that has happened now in Britain is that the police come along on Monday Morning and say they saw you shouting racist abuse, essentially the club then bans you from the stadium and you have to report at the police station during a match, so you can't go. 

I think we need a much more micro approach to those specific people, run by the police, not by the club.

Here in Portugal we are often told about the English example, and how Britain managed to eliminate hooliganism. Is that true?
Very largely, yes. People always say, well yes, but they fight outside the stadium, but there is very little evidence of that. British society, like all Western societies, has become much less violent in the last 25 years. You have far fewer groups of young men getting completely drunk and hitting each other in city centres, which was a normal thing around 1990, even leaving aside football. So society is much more peaceful.

I would happily take my children to any football match anywhere in Britain without fear. And you get these stories about how the Cardiff fans are going to meet the Swansea fans in a pub a mile from the stadium and they are going to have a prearranged fight... Football hooligans like to talk this up, because it makes them look macho, the police like to talk it up, because it retains funding for anti-hooligan policing, and the media like to talk it up because it is an exciting media story. But there is very little evidence of anything like that... I mean, when was the last person killed in a hooligan battle in the UK? I am sure there have been one or two in the last couple of decades, the only media coverage I can remember is when Leeds fans went to Turkey and that happened in Istanbul.

Many English fans bemoan the fact that with its effort to modernize and stomp out violence the FA and the Government also, effectively, destroyed football as a popular sport, making it too refined and too expensive for ordinary families or working-class people to attend. Your thoughts?
You must also remember that society has become less working-class since 1985, which was the peak of football hooliganism, which was obviously not necessarily a working-class activity, but this is a much richer country, just as Portugal is a much richer country than in 1985. So people say oh, in the 1950s when my grandfather went, and you look at those photos and it was men in cloth caps, from a different era, men who worked in factories which no longer exist, there were no women, no ethnic minorities, in the 80s it was still terrifying for ethnic minorities, so we have a different country, also a different football audience, which is more feminine, ethnic minorities are now safe in the stadiums. So I don't think that safety and gentrification are the same thing. In Germany and Spain tickets are still quite cheap, but it is also not dangerous, you can also go to a game in Germany and pay 10 euros, often, for a big game, but you are safe. So I don't think it necessarily goes together. 

What is true is that in Britain the stadiums are modernised and that attracted more families and what had been a game for 17-year-old boys who were willing to put up with terrible toilets and pushing in the stands and discomfort, has become much more a kind of game for all age groups. 

At the top-level British football is very expensive, that's true, so going to Arsenal or Chelsea will cost you an enormous amount of money, and they've priced out the poor, but at the lower levels that's not really true. 

Could you say that is where the pure football remains, in the lower levels, the people's sport?
What is the people's sport? I was never an Arsenal fan, but because I live near there and my cousins are big fans, I've been to Arsenal quite a lot and you'd see the crowds change over the decades. I first started watching Arsenal in the 80s and I see them occasionally now when I'm in London. 

In the 80s it was white men with working-class or lower middle-class accents, who were not necessarily poor, many of them drove in from the suburbs. And now it is a much more urban audience of modern londoners. 

But those older white men, living in the Northern suburbs of London, are still largely there. And tickets for Arsenal are about the most expensive you can buy in Europe, it is something like 1000 pounds a year for a season ticket, which is around 1,100 or 1,200 euros. So it is a lot of money. But the average salary in London is about 30,000 pounds. So if you are really an Arsenal fan, this is not such a big deal. If you are big Arsenal fan you spend a big part of your social life thinking about and talking about Arsenal, to pay 1,000 pounds a year is not a big dissuasion for those people. 

Remember that the London region is still about the wealthiest in the EU. So when people compare the old stadiums of the 80s or 70s with now, remember it is also a different country, it is a much richer Europe that we inhabit, and football, to some degree, reflects that. 

Are football fans one of the last social groups that you are allowed to discriminate against?
No, I think that being a general football fan is a very popular and highly admired thing to be. So you see football fans appearing in television adverts for cars, you see politicians pretending to be football fans, or some of them really are football fans. A football fan is a highly regarded figure in society, if you think of the general person. 

So when the European championship starts this summer, on Portuguese TV you will see endless advertisements for cars, for television screens which show people wearing Portugal shirts and cheering goals, because that is now our image of happiness and togetherness in society. 

Around ultras there is some demonization. Of course, not all ultras are violent at all, but I think much less than before. I think social fear of hooliganism is greatly reduced.

Before every big tournament you used to have the fear that hooligans were going to wreck everything. I lived in France during 2016 and during the Euro the great French anxiety had nothing to do with hooligans, it was about terrorists. So the obsession with hooligans has largely gone away. I think football fans have a much better reputation, including ultras, than they have had for decades. 

You were in France when Portugal won the European Cup, did it surprise you? 
I have been around football long enough to know that there is a lot of chance in football, so let me say, first of all, that I hugely admire Portuguese football, but you have had much better national teams than in 2016.

When I think back to the team of 2004, with players like Figo and Ronaldo, but also Maniche and Miguel, Ricardo. I thought that was just a magnificent team. I am a Holland fan, I grew up in Holland and I remember you beating us in the semis, and it was 2-1, but really it was 5-1, Holland never had a chance. The way Portugal keeps the ball, controls the game, Deco was a beautiful example of that, to me that was some of the most beautiful football I'd ever seen. 

In 2016 you didn't have that kind of team, it was a very beatable team. But strange things happen in football. I think Portuguese football, like Dutch football, is highly intelligent, which means that teams can win without having very good players, because of good positioning. Portugal is very good at controlling the tempo of the ball. Holland usually loses to Portugal because Holland is used to controlling the tempo of the game. And then you play Portugal and they do that, so it is very confusing.

So I think that Portugal 2016, like Holland reaching the World Cup Final in 2010, is a tribute to a football culture of high intelligence, that two not very good teams went all the way, and of course you had Ronaldo, although he missed most of the final, but went all the way based on a bit of luck and a lot of football intelligence.

Portugal deserve to win a trophy because you have an incredible football history, for such a small country, so you didn't necessarily deserve to win in 2016, but you had it coming. 

Have you ever been to see any games in Portugal?
Yes, I took my kids to see Benfica-Marítimo a few years ago, it was a very pleasant experience, I have to say. I like the stadium, it was relaxed.

I went around Portugal during Euro 2004 and went to all sorts of towns that I'll never go to again. I was in Braga, Coimbra, Porto, as well as Lisbon of course. So just the joy of travelling around this beautiful country... That's one of the things I love about these tournaments.


Fotos de Simon Kuper: Gustavo Lopes Pereira/Clube de Lisboa

Tuesday 18 February 2020

Fra Angelico

Brad Miner
Passam-se hoje 565 anos sobre a morte do artista renascentista Fra Angelico.

Nascido Guido di Pietro, cerca de 1395, cresceu no bairro de Rupecanina, em Vicchio, uma vila da República de Florença. Não sabemos com quem é que ele e o seu irmão Benedetto aprenderam a pintar e a iluminar – a especialidade de Benedetto – mas Guido já era um pintor bem conhecido quando entrou para o mosteiro dominicano em Fiesole, nos anos 20 do Século XV, altura em que assumiu o nome Fra Giovanni, isto é, Irmão João.

Só após a sua morte é que se viria a tornar, nas palavras do “Martyrologium Romanum”, “Beato Giovanni de Fiesole, apelidado ‘o Angelico’”, daí que seja conhecido como Fra Angelico, o irmão angélico. Mesmo para historiadores de arte seculares ele é o Pictor Angelicus, tal como o seu antecessor dominicano, o Doctor Angelicus, São Tomás de Aquino.

Repare-se no “Beato”. O irmão Giovanni foi beatificado pelo Papa São João Paulo II em 1982. Claro que a sua causa não avançará se as pessoas não rezarem por sua intercessão e isso não resultar em milagres. Mas a sua piedade era de tal ordem que, mesmo em vida, era conhecido pela alcunha angélico. Foi também são João Paulo II que declarou Fra Angelico padroeiro dos artistas católicos, em 1984.

Quando o Metropolitan Museum de Nova Iorque fez uma exposição da sua obra, em 2005, juntou obras de alguns sessenta museus e colecções privadas mas que – naturalmente – não incluíam frescos. Como escreveu o diretor do MET, na altura, as novas investigações sobre o homem e a sua obra moderaram a imagem de Fra Angelico como apenas “um irmão santo que nunca pegava no pincel sem rezar primeiro”. Diz ele que Fra Angelico possuía “um intelecto competitivo e foi um participante ativo na revolução cultural em Florença do início do Século XV”. Não tenho a menor dúvida que assim seja, mas isso não significa que ele não fosse um cristão devoto. Pode bem ter tido a esperteza das víboras (em termos de política eclesial, modas artísticas e até economia renascentista), mas era também manso como um pombo.

Em 1436 um grupo de dominicanos de Fiesole mudou-se para o convento de San Marco, em Florença, recentemente renovado pelo arquitecto Michelozzo di Barolomeo Michelozzi e Fra Giovanni foi posto a trabalhar na decoração do mosteiro, o que resultou em algumas das melhores pinturas dos primórdios do Renascimento. Também aceitou trabalhos em Roma (veja-se a Capela Nicolina no Vaticano) e noutros lados, deixando um legado inigualado no património católico artístico.

Nas palavras de São João Paulo:
Consta-se que Angelico terá dito que “quem faz a obra de Cristo deve permanecer sempre com Cristo”. Este lema valeu-lhe o epíteto “Beato Angelico”, por causa da integridade perfeita da sua vida e da beleza quase divina das imagens que pintou, de forma superlativa as da bem-aventurada Virgem Maria.

 
A Deposição de Cristo
A mais famosa das suas pinturas marianas é o fresco da Anunciação, pintado numa das paredes em torno do claustro em San Marco, sobre o qual o grande artista James Patrick Reid escreve de forma tão bonita aqui, há vários anos. Como dizia o sr. Reid: “Uma grande pintura reflete a divina providência. Tal como nada escapa ao governo divino da criação, assim nada escapa à mestria do artista; não há nada que seja meramente acidental”.

Na sua obra “As vidas dos mais excelentes pintores, escultores e arquitectos” (publicado em duas edições, em 1550 e 1568 e reeditado várias vezes desde então), Giorgio Vasari escreveu que a figura de Gabriel na Anunciação é “tão devota, delicada e bem pintada que não parece a obra de mão mortal, mas parece que foi pintado no Paraíso (…) Daí que é verdadeiramente justo que este bom monge tenha sido conhecido como Frate Giovanni Angelico.”

Isto vê-se em quase tudo o que Fra Angelico pintou – só não digo tudo mesmo porque não vi a sua obra completa – e nota-se especialmente em duas outras obras, ambas no seu antigo mosteiro, que é agora o Museu Nazionale di San Marco: A Deposição de Cristo e o Juízo Final.

A magnífica Deposição começou na verdade como um tríptico para a Capela Strozzi, na Santa Trinità, em Florença, pelo pintor Lorenzo Monaco, que morreu cerca de 1425 depois de ter acabado só os pináculos por cima dos três arcos. Passou uma década antes de Fra Angelico assumir o trabalho de completar a obra. Os trípticos têm três painéis, cada um dos quais apresenta, tradicionalmente, três cenas relacionadas, mas distintas. Mas Angelico tratou a Deposição de outra forma, criando um cenário lotado que mostra apenas um panorama. Como é costume com a arte da Idade Média e do Renascimento – eras em que não existia historiografia nem arqueologia – as pessoas e os lugares representados são contemporâneos de Itália do Século XV.

 
Juízo Final
E aqui encontram o artigo do Wikipedia sobre A Última Ceia de Fra Angelico. Adoro a sua Deposição de Cristo, mas O Juízo Final é possivelmente uma composição ainda mais maravilhosa. A imagem no topo do artigo, à direita, pode ser aumentada várias vezes, clicando em cima, permitindo um exame cuidadoso (convido-vos a fazê-lo) dos detalhes que o artista colocou na pintura (sobre fundo de madeira), incluindo o horror de todos aqueles (incluindo clérigos) que são conduzidos pelos demónios através das portas do Inferno, mas também a alegria orante da comunidade dos salvos, abraçando-se e dando as mãos, “as suas caras radiantes com o amor de Deus”.

Mas, em verdade, a contemplação das caras dos que descem para o abismo traduz o horror desta perspectiva. Alguns parecem esconder os olhos, outros metem as mãos e os dedos na boca e outros ainda tapam os ouvidos com as palmas das mãos, esperando abafar o clamor dos atormentados. Alguns estão a ser arrastados, outros parecem estar simplesmente a caminhar para a perdição. É uma imagem de arrependimento e pânico. Se existe alguma pinga de esperança em qualquer um deles, está prestes a ser extinta. Para sempre. E eles sabem-no.

Fra Angelico captou tudo isto porque se deixava guiar pelo Espírito Santo.

 
Pensa-se que esta imagem, do centro da Deposição,
é um autorretrato de Fra Angelico 

(Publicado pela primeira vez na segunda-feira, 17 de Fevereiro de 2020 em The Catholic Thing)

Brad Miner é editor chefe de The Catholic Thing, investigador sénior da Faith & Reason Institute e faz parte da administração da Ajuda à Igreja que Sofre, nos Estados Unidos. É autor de seis livros e antigo editor literário do National Review.

© 2020 The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de reprodução contacte:info@frinstitute.org

The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing.

Monday 17 February 2020

Não Tiago, tu não vales menos que eu


O Tiago escreveu um testemunho pessoal, defendendo a eutanásia. Pode ser lida no Twitter, aqui
Segue-se uma resposta ao Tiago. 


Olá Tiago

Quero começar por agradecer a forma como partilhaste parte da tua vida, certamente na convicção de que estás a contribuir para um debate esclarecido sobre o assunto da eutanásia. Não deve ter sido fácil.

Queria responder ao teu texto para te explicar porque é que não posso concordar com a tua posição e porque é que rejeito a ideia de que a tua vida valha menos que a minha, mesmo que tu insistas.

Porque no fundo é disso que se trata. Quando tu dizes: “tenho mais 20 anos de vida útil”, ou 30, o que é que isso quer dizer? Que a vida só é útil enquanto consegues caminhar e mover-te? Que a vida só é útil quando não sentes dor? É que se isso é assim, se é essa a tua definição de utilidade, então neste momento eu, que caminho sem dores, que me movo sem grandes dificuldades, sou mais “útil” que tu. Não acredito que penses isso, como é evidente. Mas não percebes que é essa a ilação lógica do que afirmas?

Dizes depois que quando o teu corpo chegar ao fim da linha, queres poder decidir não ser um peso na vida da tua família, que eles não merecem isso.

Mas isto é uma questão de merecimento? De obrigação? Enquanto membros da sociedade, enquanto familiares e amigos, só tomamos conta uns dos outros porque de alguma forma merecemos esse “castigo”? Tu podes pensar que a tua vida é um fardo, que és um peso para todos os que estão à tua volta. Eu duvido muito que eles olhem para ti dessa forma e, acima de tudo, rejeito viver numa sociedade em que seja permitido que as pessoas sejam classificadas como fardos e pesos que são impostos aos outros. Mesmo que sejas tu a pensar isso, sobre ti mesmo, eu não posso aceitar.

É essa a chave desta discussão. Mesmo que tu consideres que a tua dignidade depende da tua mobilidade, autonomia e ausência de dor, eu não posso simplesmente cruzar os braços e acenar, dando-te palmadinhas nas costas. Tenho de discordar.

Da mesma forma que discordaria de alguém que diz que não merece ser livre pela cor da pele, ou que vale menos do que eu porque é de um sexo diferente, ou que tem menos dignidade porque é doente.

Eu não tenho doença degenerativa alguma, mas provavelmente um dia estarei numa cama, ou demente e precisarei que os meus filhos, talvez a minha mulher, cuidem de mim. Como um dia talvez precise de cuidar dos meus pais. E espero poder fazê-lo, como espero que os meus filhos estejam lá para mim. Porque é isso que as pessoas fazem, é isso que as comunidades pedem e é isso que a sociedade tem de exigir. Cuidamos uns dos outros.

Temos urgentemente de recuperar a ideia de que cuidar de quem precisa não é um fardo, ou um peso, é um privilégio. Poder partilhar do momento de fraqueza e vulnerabilidade de alguém, olhar por ela, é um privilégio. Tens o direito de privar a tua família dessa experiência? Têm eles o direito de o recusar? Penso que não.

Dizer que sim é admitir que não somos sociedade nenhuma, somos um aglomerado de indivíduos sem redes nem ligações. Há um nome para isso. É inferno. Um mundo assim é um mundo bem pior que o sofrimento que te espera e que nos espera a todos, de uma forma ou de outra.

Eu não quero isso para mim e não posso aceitar que assim seja para ti, ainda que tu o queiras.

Espero que compreendas esta minha posição. Não é desprezo pela tua liberdade, é uma admiração assombrada pela tua dignidade e pelo teu valor intrínseco, por mais aparelhos nas pernas e por mais limitações físicas que tenhas.

Tu não vales menos que eu, e não te admito que digas o contrário.

Wednesday 12 February 2020

Padres casados não, eutanásia muito menos...

Longe da floresta tropical!
A notícia quente do dia é que afinal não vai haver padres casados na floresta tropical, nem diaconisas. Mas polémicas à parte, vale a pena ler sobre os “quatro sonhos do Papa para a Amazónia”.

O outro assunto é a eutanásia. Vão-se juntando vozes a pedir referendo. Os bispos tomaram posição, Cavaco Silva e Ramalho Eanes também, bem como Fernando Santos.

A minha posição sobre um eventual referendo foi expressa há mais tempo e está aqui. Sem margem para dúvidas e sem pretensões democráticas.

Mas porque há vida para além da eutanásia e dos padres casados, leiam também o artigo do The Catholic Thing desta semana em que Randall Smith usa o exemplo da viúva pobre para nos dizer, essencialmente: façam o que puderem, deixem Deus fazer o resto.

Uma lição que serve para tudo, incluindo para debates como o da eutanásia. Que cada um faça o que puder!

As Moedas da Viúva

Randall Smith
Conta-se que quando estavam a restaurar a Estátua da Liberdade, no início dos anos 80, e para o efeito estava-se a recolher fundos em todo o país, apareceu um envelope com duas moedas de dez cêntimos, e um bilhete de um rapazinho, que dizia: “Isto é o meu dinheiro para o almoço de hoje, mas estou a enviá-lo para a Estátua da Liberdade. Por favor usam-no com juízo”.

Se for verdade, então é uma versão moderna da história das moedas da viúva (Marcos, 12, 41-44 e Lucas 21, 1-4), em que uma viúva pobre doou duas moedinhas, as mais baixas em circulação, ao tesouro do Templo. “Chamando a si os discípulos”, diz Marcos, “Jesus disse-lhes. ‘Em verdade vos digo que esta viúva pobre deitou no tesouro mais do que todos os outros; porque todos deitaram do que lhes sobrava, mas ela, da sua penúria, deitou tudo quanto possuía, todo o seu sustento.’”

É uma história maravilhosa, no geral toda a gente gosta dela. Às vezes preocupo-me que gostamos muito dela porque é uma daquelas parábolas em que os ricos parecem ser denunciados e os pobres (que associamos a nós mesmos, apesar de vivermos no país mais rico do mundo) são elogiados. “Sim, os pobres como eu é que vão para o Céu e aqueles arrogantes ricos idiotas vão finalmente levar com o que merecem.”

Talvez não seja essa a melhor lição a tirar desta história, uma vez que somos um povo rico, a quem muito foi dado, e de quem muito se esperará. E que, se formos honestos connosco mesmos, normalmente contribuímos do que temos a mais e não do nosso sustento. Por isso talvez seja melhor deixar de parte os nossos ressentimentos financeiros por enquanto e considerar outras duas lições que a Igreja pode aprender com a história desta viúva e do jovem que enviou o seu dinheiro do almoço com a recomendação de que fosse usado com juízo.

A primeira lição, que deve ser aprendida por certos bispos, é de que o dinheiro do “tesouro do Templo” não é vosso. O dinheiro é da viúva e ela confiou-o à Igreja e ao vosso cuidado. O vosso dever passa por usá-lo sábia e dignamente.

Com cada despesa o bispo deve perguntar: O uso deste dinheiro é digno da pobreza e do amor da pessoa que o doou? Aquela viúva deixou as duas moedas no cesto da colecta para que pudesse voar em primeira classe para Roma? Doou para que pudesse oferecer presentes caros àqueles de quem espera obter favores?  

Poucas coisas metem mais nojo do que prelados que tratam o dinheiro doado como se fosse sua propriedade, para disporem como quiserem. Talvez esta não seja a melhor altura para referir que no seu último encontro os bispos americanos votaram para aumentar as contribuições das dioceses do país em 3% para financiar as diversas atividades da conferência episcopal. Acredito que as usem com juízo.

Mas a segunda lição é para todos nós e é sem dúvida mais importante, uma vez que é menos diretamente “financeira”. Seja qual for o nosso talento, é o suficiente que o ofereçamos a Deus. Especialmente em tempos difíceis como estes, quando as grandes movimentações no mundo e na Igreja parecem estar fora do nosso alcance, é tentador dizer: “Eu? O que é que eu posso fazer? Como é que posso contribuir?” Se Deus to deu, então chega.

Lembram-se da história da multiplicação dos pães e dos peixes? (João 6, 1-14). Vendo a multidão de “cerca de cinco mil”, Jesus disse a Filipe: “Onde é que podemos comprar pão para eles comerem?” Filipe responde. “Duzentos denários de pão não chegam para cada um comer um bocadinho”. Outro dos discípulos, André, irmão de Simão Pedro, falou, dizendo: “Há aqui um rapazito que tem cinco pães de cevada e dois peixes.” O resto, como dizem, é história. Jesus tomou os dois pães e os peixes e deu de comer a toda a multidão. E depois de se terem saciado, ainda sobraram 12 cestos com os restos.

Esta história também é famosa, e com razão. Mas não queremos perder de vista a importância de uma das personagens menores: o rapazito. Os cinco pães e os dois peixes eram tudo o que ele tinha para comer o dia todo. Quando os apóstolos lhos pediram, podemos imaginá-lo a responder. “Isto? Não. É tudo o que tenho. Procurem um rico com muito pão”. Mas não o fez. Deu o pouco que tinha. Não era muito, mas era o suficiente.

Imaginem ser este rapaz e virem ter consigo as pessoas que perguntam: “Foste tu que deste os cinco pães e os dois peixes que alimentaram os cinco mil?” O que diria? “Bem, sim. Mas não é como se eu tivesse alimentado aquelas pessoas todas”. “Não, mas se não tivesses sido tu não tinha acontecido nada. Foi como Maria. Fizeste a tua parte, deste o teu ‘Sim’, e isso fez toda a diferença”.

Por isso, caro amigo, só tens é que dar os teus míseros cinco pães e dois peixes, de forma altruísta, de graça, sem qualquer desejo de lucro ou de promoção, e depois confiar que Deus consiga alimentar milhares com os dons que Ele te deu. É a estranha matemática do amor, multiplica-se. O dom altruísta do amor entre duas pessoas cria uma terceira, e depois outra, e outra, até que há trinta-e-cinco netos. Um pequeno grupo de amigos pode produzir bons efeitos que se expandem de forma exponencial, sozinhos, sem os mecanismos do poder, da propaganda e do controlo social.

É uma Igreja grande, um mundo enorme, com milhares de milhões de pessoas. “Que posso eu fazer?” Dá as tuas duas moedas. Dá os teus pães e um par de peixes. Depois deixa que Deus faça a cena dele.


Randall Smith é professor de teologia na Universidade de St. Thomas, Houston.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020)


© 2020 The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de reprodução contacte: info@frinstitute.org

The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing.

Partilhar