Talvez mais umas coisas, caso
tenhamos andado na catequese. Ainda assim, o nosso “deus” é o nosso “objecto de
suprema preocupação”, segundo o existencialista protestante Paul Tillich. E
sabemos que o dinheiro, o prazer, o sucesso, ou o poder podem transformar-se em
deuses quando se tornam uma preocupação maior do que qualquer outra coisa nas
nossas vidas.
Duvido que muitos de nós
admitiríamos ser idolatras. “Nem tanto ao mar, nem tanto à terra”, diríamos.
“Não há qualquer mal em procurar estes bens, desde que não abandonemos a crença
em Deus.” Justificamos as nossas buscas com a desculpa de que temos Deus à
mistura.
Mas será que a crença em Deus
nos livra da idolatria? Não será antes uma questão de justiça litúrgica? Afinal
quem é que merece o nosso louvor?
A religião é uma virtude
porque dá a Deus o que é de Deus. Quando nos perguntam a quem devemos “latria”
(a adoração suprema), a resposta justa é de que apenas devemos adorar o
não-criado, e nunca a criatura.
Mas há algo mais grave – e
talvez mais comum – do que prestar culto a uma imagem (eidolon-latria).
Trata-se de adorar-nos a nós mesmos: auto-latria. A autolatria é mais
secreta e mais grave do que a idolatria porque o falso deus habita em nós.
Somos nós.
Muitas são as personalidades
da tradição que atestam isto.
A abadessa beneditina Cécile Bruvère
escreveu que “A acreditar no apóstolo, a idolatria não está confinada à
adoração de falsos deuses. Podemos erguer em nós mesmos muitos ídolos, e
cegamente lhes oferecer sacrifícios” (Vida
Espiritual e Oração).
Esta doi. Posso excluir-me
presunçosamente da idolatria externa dos terríveis pecadores que me rodeiam,
mas devo recordar-me que “em todos os momentos da vida existe uma idolatria
interior”, como escreve François Fénelon. “Tudo o que amamos fora, amamos
unicamente por nós” (Perfeição Cristã).
Tanto a crença em Deus como o
amor por Deus devem manifestar-se como obediência a Deus. É por isso que os
autores espirituais referem as palavras de Samuel a Saúl, quando disse: “A
rebelião é tão culpável quanto a superstição; a desobediência é como o pecado
de idolatria” (I Samuel, 15). Um dos mestres do asceticismo, Giovanni Battista Scaramelli S.J., explica o que Samuel
queria dizer: “A razão é que pela desobediência colocamos a nossa opinião e a
nossa vontade própria acima da vontade de Deus que nos é revelada pela sagrada
obediência”.
A idolatria é semelhante à
desobediência uma vez que no caso daquela adoramos um ídolo de madeira ou de
pedra em vez do único verdadeiro Deus, o único a quem é devido o culto e nesta
desviamo-nos da verdadeira regra para seguir uma enganadora, que é a dos nossos
próprios juízos e dos ditames do mundo. A falsa adoração e o falso juízo estão
relacionados. A adoração correcta e a rectidão também estão ligadas.
A vontade de Deus deve ser
atendida liturgicamente, isto é, com adoração.
Fénelon descreve desta forma essa
situação: “Fingem amá-lo sob, mas desde que isso não diminua o amor-próprio
cego que depois se transforma em idolatria e que, em vez de se referir a Deus
como o Fim para o qual fomos criados, procura arrastá-lo ao seu próprio nível,
usando-o como algo que ajuda e conforta quando a criatura falha.”
O meu professor Aidan Kavanagh
costumava definir a liturgia como “fazer o mundo como o mundo deve ser feito”.
O oposto disto é a mundanidade, que trata o mundo e as acções no mundo sem
referência a Deus.
A mundanidade é um estado
antilitúrgico: é latria mal-direccionada. É auto-adoração, a idolatria mais
secreta de todas. Por isso é que Frederick William Faber descreve o homem
mundano como aquele que vive como se nunca tivesse de “prestar contas de si
mesmo a um poder maior” (Criador e
Criatura).
Onde é que pretendo chegar?
A descoberta desta idolatria secreta
não traz Deus para a praça pública? Não introduz no espaço secular uma
preocupação com o sagrado? O crime da idolatria não é cometido apenas quando
escolhemos o templo em que vamos prestar culto, é cometido sempre que a vontade
própria se sobrepõe à vontade divina.
A autolatria acontece quando elevamos
a nossa própria opinião e vontade acima da vontade de Deus. Em relação a quê?
Não apenas nas questões religiosas (embora exista aí muita autolatria também), mas
nas coisas do mundo.
Como é que podemos ajuizar de
forma recta assuntos como política, normas sociais, sexo, género, família, a
vida intrauterina, o estranho, o criminoso e a vítima se colocámos a nossa
vontade acima da de Deus? São João Eudes diz que “o orgulho leva o pecador a
fazer de si mesmo um ídolo, e a colocar-se no lugar de Deus, uma vez que quando
estão em causa a sua satisfação, vontade e desejos, prefere-se a si do que a
Deus” (Meditações).
Os nossos interesses,
satisfação, vontade e desejos estão sempre em causa. O problema
espiritual do orgulho mete-se em tudo, não apenas no contexto religioso. A quem
vamos prestar culto? Vamos escolher-nos a nós em vez de a Deus?
Esta é uma questão espiritual,
mas é colocada a partir do coração do mundo. Por isso, os assuntos externos e
sociais não estão totalmente separados do conflito interno, espiritual. A
Igreja tem uma ou duas coisas a dizer sobre este último.
E tem toda a alegria em
partilhar a sua experiência e sabedoria com todas as sociedades em que se
encontra.
David
W. Fagerberg é professor emérito de teologia litúrgica na Universidade de Notre
Dame. O seu mais recente livro é Liturgical Dogmatics.
(Publicado
pela primeira vez em The Catholic Thing no Domingo, 14 de Setembro de 2022)
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