Thursday 30 June 2022

Uma mão cheia de mártires e a "maneira católica"

Anjo das crianças de rua
Esta foi uma semana triste para os padres católicos no mundo. Dois foram assassinados na Nigéria no mesmo fim-de-semana, e outros dois no México, situação lamentada publicamente pelo Papa. Estamos a falar de dois dos países onde é mais perigoso ser-se sacerdote.

Também no fim-de-semana uma freira italiana foi assassinada no Haiti. Era conhecida como o “anjo das crianças de rua”. Outra freira que foi raptada no Burkina Faso há mais de 70 dias continua desaparecida.

Entretanto o mundo continua a reagir, de diferentes formas e feitios, à notícia da revogação do Roe v. Wade, nos EUA. Algumas pessoas estão a reagir com fúria, prometendo vingança contra todos os que contribuíram para este resultado, incluindo Igrejas católicas e centros de apoio a grávidas em risco. Como se responde a este tipo de ameaça? Randall Smith explica que gostaria de responder “à maneira de Chicago”, prometendo retaliação em dobro por cada acto cometido. Mas claro que não pode ser assim. Há outra maneira, a “maneira católica”, e é muito diferente. Leiam que vale a pena.

Já a semana passada tinha enviado uma série de links para artigos que ajudam a compreender o alcance desta decisão. Um dos links, contudo, estava errado. Por tal peço desculpa. O meu artigo, escrito ainda antes da decisão formal, que explica o que muda, o que não muda e como tudo isto nos pode afectar a nós, na Europa, está aqui.

Se ainda não ouviram, não deixem de escutar o episódio da semana passada do podcast Hospital de Campanha, em que falámos sobre as nomeações de novos cardeais, os 20 anos de independência de Timor Leste e os desenvolvimentos eclesiais na Ucrânia. Para a semana há novo episódio!

Wednesday 29 June 2022

A Maneira de Chicago versus a Maneira Católica

Randall Smith

Quem decidiu divulgar a sentença do caso Dobbs na Solenidade do Sagrado Coração de Jesus foi um génio. O padre que celebrou a missa a que fui nesse dia não conseguia disfarçar a alegria com este maravilhoso dom. Suponho que essa alegria tenha sido um pouco amainada quando uma mulher entrou aos gritos na Igreja, na altura em que ele preparava a Eucaristia para a adoração, nessa tarde. Felizmente, conseguimos afugentá-la, e quando saí encontrei o nosso padre dominicano a falar com ela de forma calma, mas firme, no adro da Igreja.  

Há quem esteja zangado. Muito zangado. Como escreveu um amigo: “Os democratas não estavam tão zangados desde que Lincoln libertou os seus escravos e o Supremo Tribunal acabou com a segregação das suas escolas públicas”. Quando esses “direitos” lhes foram negados – “direitos” baseados, então, como hoje, na negação da plena humanidade de outros seres humanos – essas pessoas ficaram mesmo muito zangadas.

Tal como muitas outras pessoas, estou preocupado com o aumento das ameaças às igrejas católicas e aos centros de apoio a grávidas em crise. Houve pelo menos sessenta e três destes ataques desde que um rascunho da sentença de Dobbs foi divulgado há várias semanas. Um grupo chamado “A Vingança de Jane” está a apelar à participação em motins no que chamou um “Verão de Ira”. O seu lema é: “Aos nossos opressores: se o aborto não for seguro, vocês também não estarão”.

Como devemos responder?

Eu quero dizer o seguinte:

Ouçam lá, Vingança de Jane. Se os centros de apoio a grávidas em risco não estão seguros, vocês também não. Se gostam de dar, também vão levar, faz parte das regras do jogo.

Pensam que estão zangados? Há cinquenta anos que, pacifica e pacientemente, vivemos com um regime opressivo de aborto, sem qualquer capacidade de nos fazermos ouvir no sistema democrático que nos foi deixado pelos nossos fundadores, tentando, de todas as formas legais, proteger a vida intrauterina.

Por isso aqui fica um recado para os nossos opressores. Por cada um dos nossos que cair, caem dois dos vossos. É a “maneira de Chicago”.

Talvez se recordem dessa cena do filme “Os Intocáveis” em que o inestimável Sean Connery diz a Eliot Ness, protagonizado por Kevin Costner: “Queres apanhar o Capone? É assim que se faz. Ele puxa de uma navalha, tu puxas de uma pistola, ele envia um dos teus para o hospital, tu envias dois dos dele para a morgue. À maneira de Chicago”.

Para nós, Vingança de Jane, vocês são o Capone. Porque, sejamos honestos, é mesmo isso que vocês são: rebentam com crianças inocentes no útero, e ganham dinheiro com isso. Mantêm as mulheres reféns até pagarem. Os centros de apoio pró-vida oferecem serviços médicos, mas vocês incendeiam-nos para que as mulheres fiquem sem outras opções.

Por isso, Vingança de Jane, ouçam este conselho. Vocês não querem declarar guerra a um povo que tem uma tradição de mártires e que tem lutado para proteger os nascituros diante de oposição constante ao longo de cinquenta anos. Especialmente porque é claro que não passam de meros cobardes que gostam de fazer vandalismo adolescente a meio da noite e que ameaçam os filhos dos juízes do Supremo Tribunal. Ui, que corajosos.

É isso que eu quero dizer, mas não é isso que eu devo dizer. Porque a “maneira de Chicago” não é “a maneira americana”. Nem é a “maneira católica”.

Comecemos com a “maneira americana”, que demasiadas pessoas parecem ter esquecido.

Eu tinha um aluno magnífico que certa vez concluiu que existia uma injustiça na nossa universidade.

“Muito bem, e o que pretendes fazer sobre o assunto?”, perguntei.

“Organizar uma manifestação?”, respondeu.
“Essa é a tua primeira opção? E que tal votar? E que tal seres eleito e trabalhares pela mudança, mudando os corações e o espírito dos teus colegas?”

“Ah, pois é”, disse, mas sem estar completamente convencido.

A participação cívica e o governo democrático tornaram-se a última coisa em que as pessoas pensam hoje em dia, quando devia ser a primeira. Essa é a maneira americana.

E que dizer dos outros, com as suas t-shirts pretas e máscaras, que partem vidros e lançam cocktails Molotov? São fascistas. Pesquisam “camisas negras em Itália” e vejam o que aparece. Pesquisem “Kristallnacht”. Estão a ver quem é que usa camisas negras e parte vidros?

Agora vejam vídeos dos motins que se realizaram quando os primeiros alunos negros foram escoltados para a Universidade do Alabama, em 1963. Verão raparigas brancas com saias de feltro e meia curta a gritar aos altos berros, com ar de quem está prestes a morrer.

Vejam imagens dos protestos passivos de negros nos restaurantes segregados: pessoas a gritar, a fazer birras, a entornar bebidas e a atirar comida aos alunos pacíficos que se encontram sentados ao balcão. Os fascistas são assim. Tal e qual os manifestantes pro-aborto enraivecidos à porta do Tribunal.

Eu não levo a mal as pessoas que discordam com a sentença do caso Dobbs, mas não faz qualquer sentido dizer que uma decisão que leva o assunto de volta aos eleitores representa “a destruição da nossa democracia”.

Devolver um assunto aos eleitores é “antidemocrático”? Pessoas com t-shirts pretas e máscaras a vandalizar propriedade são antifascistas? Claro. E “guerra é paz”, “liberdade é escravatura” e “ignorância é força”.

Mas não se deixem enganar: todas estas medidas políticas, por mais importantes que sejam, não são as nossas principais armas. As nossas principais armas são o que sempre foram: oração, jejum, esmola, sacrifício pessoal, coragem, paciência, apoio incansável para mulheres e crianças necessitadas, e esforços pacíficos para converter mentes e corações.

Essa é a maneira católica. Foi assim que chegámos onde estamos. É nisso que temos de confiar enquanto caminhamos para um futuro incerto. Podemos alegrar-nos, mas o trabalho em prol dos bebés por nascer deve intensificar-se.

Os nossos opositores já deixaram bem claro o que pretendem. Deixemos também nós bem claro o que queremos. Estamos dispostos a qualquer sacrifício, sofreremos qualquer indignidade, e trabalharemos sem descanso e sem retribuição para proteger estas crianças e as suas mães. Diremos: “Se nos tirarem um, construiremos outros dois”. “Obriguem-nos a carregar este fardo durante uma milha, e carregá-la-emos durante duas”.

Essa é a maneira católica.


Randall Smith é professor de teologia na Universidade de St. Thomas, Houston.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na terça-feira, 28 de Junho de 2022)

© 2022 The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de reprodução contacte: info@frinstitute.org

The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing.

Thursday 23 June 2022

Hospital de Campanha - Episódio 7: Novidades cardinalícias

O Papa Francisco nomeou uma série de novos cardeais, que vão ser elevados ao cargo no próximo mês de Agosto. Neste episódio analisamos essas nomeações e o que significam à luz do pontificado de Francisco. 
Nesta lista não consta nenhum português, mas há muito de interesse para Portugal nos nomeados!

Um dos novos cardeais vem de Timor Leste, é o primeiro deste país. Este facto serve de ponto de partida para falar um pouco sobre os 20 anos da independência do mais novo país lusófono do mundo. 

Por fim, alguns minutos para falar das novidades sobre as Igrejas ortodoxas na Ucrânia e na Rússia, onde se registaram mudanças importantes nas últimas semanas. 


Tuesday 21 June 2022

A Visão Profética de Samuel Alito

David F. Forte
Em breve saberemos se o rascunho da sentença de Samuel Alito no caso Dobbs v. Jackson Women’s Health Organization sobrevive enquanto opinião maioritária e ganha força de lei. Aconteça o que acontecer, o rascunho de Alito permanecerá como uma das maiores e mais corajosas decisões alguma fez redigidas por um juiz do Supremo Tribunal. É um documento purificador, que limpa muitos dos argumentos pretensiosos e errados feitos pelo Tribunal no passado.

A opinião é profética – no sentido clássico do termo. Frequentemente usamos a palavra profecia como sinónimo da previsão do futuro. Mas na Escritura os profetas não eram principalmente videntes, embora alguns emitissem avisos sobre o que aí vinha (Jonas ao povo de Nínive), ou afirmações sobre as coisas grandes e boas que Deus preparou (Isaías sobre a vinda do Messias).

O profeta não é, por isso, um leitor de sinas, mas aquele que diz a verdade. Ele dirige-se àqueles que se encontram apaixonados pelo seu próprio poder, tão envolvidos pela sua própria vontade ilimitada que cometem pecados graves. Foi nesse tom que Natã falou a David, que Eliseu desafiou Acab, Ester expôs Hamã e João Baptista condenou Herodes. Por sua parte, Alito expõe (de forma mal-educada, segundo os seus críticos) a sobranceria de Harry Blackmun, autor da sentença Roe v. Wade, que não só inventou um “direito” que não tem qualquer base na história ou na Constituição, mas apresenta também uma análise da gravidez que não tem lógica interna nem qualquer relação com a realidade médica.

Nas Escrituras os profetas não eram conhecidos pela sua linguagem polida. As palavras de Eliseu eram “como uma fornalha ardente”. De igual modo, o juiz Samuel Alito há muito que é conhecido por expor os factos por detrás de um caso, por mais feios ou chocantes que possam ser.

Em Stevens v. United States, por exemplo, na qualidade de único dissidente, Alito descreveu os gritos aflitos de um gatinho a ser morto num vídeo pornográfico “crush”*, apesar de a maioria ter revogado a lei do congresso que proíbe tais vídeos, com base na Primeira Emenda da Constituição.

Em Brown v. Enterntainment Merchants Association falou de jogos de computador em que: 

Dezenas de vítimas são mortas com qualquer utensílio imaginável, incluindo metralhadoras, caçadeiras, bastões, martelos, machados, espadas e motosserras. As vítimas são desmembradas, decapitadas, esventradas, imoladas e cortadas aos pedaços. Gritam em agonia e imploram por misericórdia. O sangue escorre, salpica e acumula. Partes de corpo decepadas e pedaços de restos mortais são exibidos de forma gráfica.

O Tribunal acabou por abolir uma lei que proibia a venda de tais jogos a menores e Alito votou com a maioria, mas apenas porque uma parte da lei era pouco clara.

E em Snyder v. Phelps protestou contra a protecção que a maioria decidiu dar a manifestantes em enterros de soldados mortos em combate, com cartazes como “Deus odeia-te”, “Vais para o Inferno”, “Deus odeia maricas” e “Maricas condenam nações”.

Mais do que qualquer outro juiz de memória recente – certamente mais do que o juiz Antonin Scalia – Alito condena o mal moral que é causado por raciocínios judiciais desnecessariamente rígidos: o mal moral da crueldade cometida contra animais, de permitir a jovens que se mascarem de assassinos em série, de permitir que pessoas maliciosas transformem a dor de um pai enlutado em agonia ou, no caso de United States v. Alvarez, de deixar que alguém roube a honra de heróis caídos, fingindo ser detentor de uma Medalha de Honra.

Referindo-se ao aborto como “uma questão moral profunda”, Alito volta a ir à essência do propósito da lei.

Em Dobbs, o tom de Alito deve-se à sua discordância com muitos dos seus colegas que desprezaram a sua vocação em nome do poder, chegando a consagrar esse mesmo poder em fórmulas solipsistas como a “passagem mistério” do juiz Kennedy**.

Alito “endireita as sendas” até à verdade, descartando pelo caminho os falsos ídolos que o Tribunal ergueu para justificar o direito a matar o inocente, e – por isso – ferindo gravemente o próprio Tribunal e dividindo a nação em facções ferozmente opostas.

Samnuel Alito

Não deixa nenhuma falsidade por revelar:

• A análise da história do aborto em Roe “varia entre o constitucionalmente irrelevante (…) e o simplesmente incorrecto”. De facto, a história revela que o aborto sempre foi tratado na lei como algum tipo de mal.

• “A Constituição não faz qualquer referência ao aborto, e tal direito não está implicitamente protegido por qualquer provisão constitucional”.

• A sentença maioritária em Planned Parenthood v. Casey modificou muito a sentença de Roe, enquanto afirmava, contraditoriamente, que estava a sustentá-la.

• “Roe estava profundamente errada desde início. A sua lógica era excepcionalmente fraca e a sentença tem tido consequências danosas”.

• Em vez de pôr fim à discussão, como o Tribunal presunçosamente afirmava, a sentença Roe v. Wade “inflamou” a questão e tornou-a ainda mais “amargamente divisiva”.

• Não existe direito de igualdade de protecção ao aborto, uma vez que a regulamentação do aborto não é uma classificação feita com base no sexo.

• A regra do respeito pelos precedentes não justifica manter esta sentença tão profundamente cheia de falhas.

• O conceito de viabilidade fetal é indeterminado e “nada tem a ver com o estatuto de um feto”.

• A questão essencial a tratar pelo legislador é saber se está em causa um ser humano. Nenhum dos precedentes citados pelo lado contrário toca nesta questão.

O juiz Alito conseguiu separar o trigo do joio. Mas um profeta não é um líder, um juiz não é um legislador. Não lhe cabe, em sua opinião, fazer a travessia para a terra prometida onde a vida intrauterina é protegida por lei. O seu sentido de vocação impele-o a ficar do seu lado do rio, mas indica o caminho para os Estados e para o povo.

Os legisladores, diz ele, só precisam de dar um passo racional para proteger aqueles bens morais que são do mais elementar senso comum:

respeito por, e protecção de, vida prenatal em todos os estágios de desenvolvimento; a protecção da saúde e segurança materna, a eliminação de procedimentos médicos particularmente grotescos ou bárbaros; a preservação da integridade da profissão médica; a mitigação da dor fetal; e a prevenção da discriminação com base em raça, sexo ou deficiência.

Se a opinião de Alito se tornar lei, como é que os americanos vão responder ao seu desafio? Alguns farão certamente como David fez com Natã, e escutá-lo-ão. Outros, como Herodes, tentarão cortar a cabeça ao profeta.

* Se, como eu, não fazia ideia o que é um filme “crush”, este artigo faz uma descrição bastante simples e, felizmente, não gráfica [NT].

** Refere-se a uma expressão que ficou conhecida na decisão Planned Parenthood v. Casey, em que o juiz Anthony Kennedy escreveu: “No cerne da Liberdade está o direito a definir o nosso próprio conceito de existência, de sentido, do universo e do mistério da vida humana”. Esta passagem tem sido ridicularizada desde então por conservadores, tendo sido definida por um como “jurisprudência new age” [NT].


David Forte é Professor Emérito na Universidade Estadual de Cleveland e faz parte do Conselho de Académicos na James Wilson Institute.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na Terça-feira, 21 de Junho de 2022)

© 2022 The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de reprodução contacte: info@frinstitute.org

The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing.

 

Wednesday 15 June 2022

Preparem-se para os Dias da Ira

Robert Royal

Não sei se é hoje* que o Supremo Tribunal vai dar a conhecer a sua decisão no caso Dobbs. Nem sei se, quando o fizer, a decisão será idêntica ao rascunho de Samuel Alito, que reverte o Roe v. Wade. O que sei é que seja qual for a margem que o Tribunal dará para que se limite o direito ao aborto, o resultado não serão manifestações “maioritariamente pacíficas”, mas sim a violência.

Os radicais pró-aborto já levaram a cabo ataques contra centros de aconselhamento pró-vida e houve vários incidentes suspeitos em igrejas por todo o país. Os mesmos grupos já prometeram muito mais para o verão e para o outono, e já estão a organizar os “Dias da Ira”.

Uma vez que nós temos sido os mais visíveis defensores da protecção de toda a vida humana, desde a concepção até à morte natural, as igrejas católicas irão ser um alvo específico. Por isso chegou a hora de também nós – não apenas os bispos e os pastores, mas todos os católicos – nos organizarmos para o que aí vem.

Não podemos depositar demasiada confiança nas instituições governamentais. Olhem só para a forma como responderam ao caso do jovem tresloucado que ameaçou matar o juiz Brett Kavenaugh. É verdade que ele foi detido e acusado – depois de se entregar. Mas pouca coisa foi feita para evitar que outra pessoa fizesse o que ele apenas ameaçou.

A questão do aborto está de tal forma politizada que Nancy Pelosi tem travado legislação no Congresso que forneceria mais protecção para os juízes, suas famílias, escrivães e empregados, dizendo que “ninguém está em perigo”. Claro que estão, mas admiti-lo poderia ofender os seus constituintes.

Entretanto o grupo pro-aborto Ruth Sent Us deu a entender num tweet, na Quinta-feira, que está a vigiar Ashley, a mulher de Kavenaugh, e que sabe onde é que dois dos seus filhos vão à escola.

O mesmo grupo divulgou a morada da juíza Amy Coney Barrett, bem como o facto de ela ir diariamente à missa e de enviar os seus sete filhos para uma escola do grupo cristão People of Praise. (Também já chamou à Igreja “uma instituição para a escravatura das mulheres”.)

E Samuel Alito está num abrigo secreto.

Isto é tudo saído diretamente do manual de instruções da Mafia: “Belo estabelecimento que aqui tem. Seria uma pena se alguma coisa lhe acontecesse.”

Se ainda vivêssemos num Estado de Direito, as pessoas da Ruth Sent Us que foram responsáveis pelo envio daqueles tweets já estariam presas. O facto de não estarem – e os media ter-nos-iam dito se estivessem – mostra-nos bem como serão tratados os protestos e a violência depois de sair a decisão de Dobbs.

Mostra também como é que o Twitter, que é tão sensível a mensagens que fazem as pessoas sentirem-se “inseguras” (algumas pessoas, pelo menos), se comportará nesta situação. Juntamente com outros meios de comunicação e redes sociais.

O procurador-geral Merrick Garland disse que este tipo de ameaças é intolerável numa sociedade civilizada. Mas onde está a acção? Não apenas as protecções nominais para aqueles que estão a ser ameaçados, ou a investigação de grupos violentos, mas o poder robusto da lei.

Protesto à porta de casa de um
juiz do Supremo Tribunal
Quando Nicholas John Roske chegou à casa de Kavenaugh estavam apenas dois polícias armados a protegê-la. Um assassino mais experiente, ou um grupo mais determinado, teria conseguido, o que seria por si só um escândalo, mas também poria todo o Supremo Tribunal e o nosso sistema de governo numa situação de desastre iminente.

Entretanto, vêm aí os Dias da Ira. Temos de começar a pensar como vamos responder. No país do Papa Francisco, Argentina, feministas radicais tomaram de assalto e incendiaram igrejas e escritórios governamentais. (Vejam aqui um exemplo). Leigos católicos têm tido que formar cordões para as impedir.

Na minha paróquia tivemos dois carros da polícia estacionados junto à Igreja no domingo depois da fuga do rascunho de Alito. Mas é evidente que o perigo só vai aumentar exponencialmente quando a decisão for oficial. Todos os bispos e todos os párocos no país deviam estar a pensar – agora mesmo, antes de começarem os problemas – sobre quem deverá ser chamado para responder aos protestos e à violência.

Eu já disse ao meu pároco que estou disposto a ir para as barricadas, se chegar a tanto. Esperemos que não chegue.

Mas ao nível local vamos precisar dos conselhos de antigos polícias e ex-militares, pessoas habituadas a lidar com o mínimo de força indispensável com indivíduos e multidões. Responder com violência equivalente seria adoptar os métodos dos nossos adversários.

É triste pensar que a América também já chegou a este ponto, mas a culpa é do próprio tribunal, por ter inventado um direito constitucional ao aborto.

Os meus amigos europeus dizem-me às vezes que nos seus países há menos comoção pública sobre o aborto porque, em vez de ser uma decisão imposta por decreto pelos tribunais, as leis foram mesmo debatidas pelas suas legislaturas. Ao contrário do que os grupos pró-aborto afirmam aqui na América, a maioria dos países europeus têm restrições ao aborto semelhantes ao que o Estado de Mississippi procura na lei Dobbs: aborto legal até às 15 semanas e mais limitado a partir daí.

É evidente que as pessoas na Europa arranjam formas de contornar a lei, e mesmo o aborto feito apenas no primeiro trimestre não deixa de ser uma abominação. Mas é revelador da nossa condição social que mesmo a lei do Mississippi, que corresponde basicamente ao consenso liberal da Europa, é vista por cá como extremista e um atentado radical aos direitos das mulheres.

Agora vamos ter de debater essas questões ao nível estadual.

Entretanto, muitos de nós seremos chamados a chegar-nos à frente, literalmente, para proteger as nossas igrejas e outras instituições que defendem o simples princípio de que a vida humana inocente é sagrada. Esse é um princípio do direito natural, uma conclusão a que se chega através do bom uso da razão e não – como dizem até alguns católicos, como o presidente Biden – a imposição de um dogma religioso aos cidadãos americanos.

As pessoas por vezes brincam, dizendo que se o grande céptico Voltaire voltasse hoje ficaria chocado ao descobrir que a Igreja se tornou a maior defensora da razão humana no nosso mundo pós-moderno e radicalmente relativista. E talvez ficasse ainda mais espantado ao ver católicos, e outras pessoas de boa-vontade a chegar-se à frente, como agora somos chamados a fazer, em defesa da razão – e da vida humana.

* As decisões do Supremo Tribunal são divulgadas às segundas-feiras. Não foi no dia 13, mas pode ser no dia 20 ou no dia 27 de Junho - Tradutor


Robert Royal é editor de The Catholic Thing e presidente do Faith and Reason Institute em Washington D.C. O seu mais recente livro é 


A Deeper Vision: The Catholic Intellectual Tradition in the Twentieth Century, da Ignatius Press. The God That Did Not Fail: How Religion Built and Sustains the West está também disponível pela Encounter Books.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na Segunda-feira, 13 de Junho de 2022)

© 2022 The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de reprodução contacte: info@frinstitute.org

The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing.


Thursday 9 June 2022

Hospital de Campanha - Episódio especial Pe João Seabra

O padre João Seabra marcou milhares de pessoas ao longo da sua vida, que terminou de forma prematura na semana passada. 

Os elementos que compõem o "Hospital de Campanha" não são excepção. Todos o conhecemos pessoalmente, e neste episódio especial do podcast recordamos o seu exemplo, histórias da sua vida, episódios engraçados e até algumas reflexões sobre o sentido da doença que o deitou por terra e elevou ao Céu. 

É um episódio especial, em mais sentidos do que um. Sobre um homem especial, em mais sentidos do que um. 

Ouçam por vocês mesmos, e partilhem.




O Aborto - Roe v. Wade, e agora?

Actualização: Vai ter transmissão no Zoom.

salL está convidando você para uma reunião Zoom agendada.

Tópico: Aborto - Roe v Wade, e agora?
Hora: 14 jun. 2022 09:00 da tarde Lisboa

Entrar na reunião Zoom
https://us06web.zoom.us/j/83223793472?pwd=MzdEd2V5N0NLNy9DMWxXbGJBNXZrZz09

ID da reunião: 832 2379 3472
Senha de acesso: sal

No próximo dia 14 de Junho estarei a moderar o que promete ser uma interessantíssima conversa entre o procurador estadual americano Tom Haine e o especialista em direito Francisco Correia. 

A conferência é organizada pelo Sall, uma associação portuguesa que intervém na área da liberdade religiosa e de consciência e objectivo é compreender as implicações e consequências da muito provavel revogação da famosa sentença Roe v. Wade, nos Estados Unidos. 

Sim, é um assunto interno americano, mas é também, claro, muito mais do que isso!

Já escrevi um pouco sobre este caso aqui no blog e no Hospital de Campanha dedicámos-lhe um episódio inteiro também.

A conferência é às 21h, no auditório do Colégio de São Tomás, na Quinta das Conchas. Apareça!

 

Wednesday 8 June 2022

Utopia em vez de Escatologia

David G. Bonagura
Há trinta anos o então Cardeal Ratzinger esteve em Praga, onde deixou um aviso ao povo de uma democracia recém-nascida que estava repleta tanto de promessas como de perigos. O futuro Papa falou sobre a diferença entre escatologia – a compreensão e crença no “final”, isto é, vida eterna – e utopia. A crença nesta última, que ele definiu apenas como “a esperança de um mundo melhor no futuro” veio a ocupar o lugar da vida eterna entre muitos dos crentes que subsistem no Ocidente.

Para o homem moderno, continuou Ratzinger, “a vida eterna é supostamente irreal; diz-se que nos distrai do tempo real, mas que a utopia é um objectivo real que podemos ajudar a concretizar com o nosso poder e as nossas capacidades”. A arrogância dos homens “substitui a escatologia com uma utopia feita à sua imagem” que “pretende preencher as esperanças do homem” sem referência a Deus. Constantemente seduzido por novas capacidades tecnocráticas, o homem moderno pensa que a utopia está mais próxima a cada dia que passa.

Em anos recentes – à medida que os americanos se desvinculam cada vez mais das religiões tradicionais – a sede pela utopia atingiu ponto de fervura, como que para preencher esse vazio. Os três reinos utópicos realizar-se-ão, prometem-nos, se conseguirmos travar as três grandes ameaças sociais: mudanças climáticas, Covid e racismo. A eliminação destas três trará a salvação civilizacional.

Esta salvação continua permanentemente fora do alcance, mas cada tentativa falhada gere uma urgência e um medo maiores. O choro e ranger de dentes tornam-se mais altos a cada dia que passa, para tentar converter os cépticos. Se continuarmos a perfurar a terra para procurar combustíveis fósseis, as calotas polares derretem e o nível do mar sobe; mais uma variante de Covid e os governos fecham novamente as escolas e as cidades; mais um conflito inter-racial e veremos motins e pânico nas ruas.

Ratzinger compara a utopia com a figura mítica de Tântalo, que foi condenado a viver com água pelo pescoço em Hades. Sempre que tentava chegar a água ou fruta eles retrocediam, para fora do seu alcance. Não espanta, por isso, que os adeptos da utopia que vemos nas suas manifestações estejam sempre tão zangados. Não conseguem alcançar aquilo que tão desesperadamente querem. Estão frustrados como Tântalo. Por isso, comenta Ratzinger, mesmo que “trabalhem com total dedicação para consolidar aqueles factores que estão, por ora, a manter o mal à distância”, censuram a concorrência e cancelam os potenciais rivais que ameaçam os seus objectivos esquivos.

A insanidade generalizada que a busca pela utopia ambiental, de saúde, e racial gerou entre os adeptos deveria levar todos os que contemplam sair das igrejas cristãs a pensar duas vezes. Os seres humanos têm sede do divino, mas os dogmas utópicos dos nossos dias não nos trazem salvação, mas sim angústia eterna. Vale a pena olhar de novo para o Cristianismo (ou, para muitos desta geração, olhar pela primeira vez, mas libertos das distorções deliberadas do credo cristão).

“A verdadeira diferença entre a utopia e a escatologia”, escreve Ratzinger, é que o “presente e a eternidade não estão lado-a-lado, separados; mas sim interligados”. A vida eterna não é um fenómeno que começa de repente, depois da morte. É um “novo tipo de existência, em que tudo flui em conjunto para o ‘agora’ do amor” que se torna possível pela presença de Deus no universo. “Deus é amor, e aquele que vive no amor vive em Deus, e Deus vive nele” (1 João 4,16).

Através da Encarnação do Filho de Deus, a vida eterna faz agora parte do tempo. Em Cristo, escreve Ratzinger, “Deus tem tempo para nós. Deus já não é meramente um Deus lá em cima, mas Deus envolve-nos por cima, por baixo e por dentro: Ele é tudo em tudo, e por isso tudo em tudo nos pertence.”

O toque de Cristo é mais tangível na Igreja quando Ele vem ao nosso encontro na Eucaristia. Quando o recebemos na Santa Comunhão a eternidade conjuga-se com o presente e transforma-o, para o elevar dos horrores deste mundo, dando-lhe uma prova da glória vindoura. O presente deixa de ser o lugar de preparação de um futuro inalcançável e torna-se ocasião para o encontro com um Deus que nos ama e que nos chama a si.

Só desta perspectiva é que podemos lidar com os males que nos confrontam, sejam eles ecológicos, sanitários, sociais ou morais. Porque os crentes reconhecem que o mal, tal como as ervas daninhas que crescem com o trigo, farão sempre sombra sobre o bem desta vida. Mesmo quando a sombra do mal parece cercar totalmente o bem, como acontece com os horrores da guerra e os massacres nas escolas, os raios de bondade continuam a romper a escuridão para nos dar esperança de que Deus, aparentemente ausente, reina aqui e agora.

Tendo descartado a fé, o adepto da utopia não consegue processar o mal desta forma. Tenta, sem sucesso, amputá-lo, ficando frustrado e paranoico quando o vê a regressar, qual hidra, com o dobro da força. Faz dos avanços tecnológicos e das acções governamentais o seu Hércules, mas são obras demasiado difíceis para serem levadas a cabo por mortais. O adepto da utopia sofre assim uma derrota estrondosa quando tenta construir o céu na terra.

Fazemos melhor, conclui Ratzinger, quando trabalhamos no sentido oposto. “A terra torna-se celestial, torna-se Reino de Deus, sempre que se faz a vontade de Deus na Terra como no céu. Rezamos assim porque sabemos que não está ao nosso alcance trazer o céu até nós. Porque o Reino de Deus é o seu reino, não o nosso, e não o podemos influenciar”.

Nós, os crentes, devemos desafiar todos os que se estão a afastar do Cristianismo por estas razões. Jamais encontrarão a utopia. Mas a vida eterna está ao seu alcance, se apenas pudessem olhar novamente com os olhos da fé.


David G. Bonagura, Jr. leciona no Seminário de São José, em Nova Iorque. É autor de Steadfast in Faith: Catholicism and the Challenges of Secularism, que será lançado no próximo inverno pela Cluny Media.

(Publicado pela primeira vez na segunda-feira, 7 de Junho de 2022 no The Catholic Thing)

© 2022 The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de reprodução contacte: info@frinstitute.org

The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing.

Tuesday 7 June 2022

Nº2 do Patriarcado de Moscovo despromovido

Surgiu hoje uma notícia muito inesperada na Igreja Ortodoxa Russa. 

O Metropolita Hilário, que era diretor do Departamenteo de Relações Externas do Patriarcado de Moscovo, foi removido desse cargo e nomeado responsável da diocese da Igreja Ortodoxa Russa na Hungria. 

Para terem ideia do grau desta despromoção, Hilário era, na qualidade de director de Relações Externas, uma espécie de Ministro dos Negócios Estrangeiros do Patriarcado de Moscovo e tornou-se assim uma das figuras mais conhecidas da Igreja Russa. Viajava com frequência e era muitas vezes sobre ele que recaía a responsabilidade de defender as posições e a influência da Igreja Russa, algo que continuou a fazer durante esta guerra. 

Já enquanto bispo da Igreja na Hungria, terá a seu cargo um total de 11 paróquias e oito padres. Seria mais ou menos o equivalente ao Papa mudar o cardeal Parolin para uma diocese no sudeste asiático.

É certo que a Hungria é um país importante para a Rússia, mas na qualidade de diretor das relações externas Hilário tinha tanta ou mais capacidade de visitar e cultivar as relações diplomáticas com o regime húngaro do que terá sendo, na prática, um bispo de uma diocese negligenciável. 

O que conduziu a esta decisão? Aqui há algumas pistas. Este artigo indica que recentemente Hilário parecia estar a tentar distanciar-se de Cirilo. Durante uma visita a Chipre, para participar num encontro do Concelho Mundial das Igrejas, ele teve um encontro pessoal com o líder da Igreja Cipriota Ortodoxa, o que é assinalável porque essa é uma das igrejas que reconheceu a autocefalia da Igreja Ortodoxa da Ucrânia, levando à quebra de comunhão entre ela e a Igreja Russa. Aos olhos de Cirilo, portanto, a Igreja Cipriota é "inimiga" e pelos vistos ele não gostou do encontro. 

Mais tarde, em comentários feitos à imprensa russa, Hilário mostrou esperanças de se poder chegar a um entendimento com as Igrejas com as quais existe uma quebra eucarística, dizendo mesmo que não devem ser consideradas inimigas. 

Tudo isto foi feito na sequência da tentativa da Igreja Ortodoxa da Ucrânia, que continua formalmente ligada a Moscovo, se separar da influência de Cirilo. É possível que Hilário tenha entendido, como eu refiro aqui, que esse pássaro já voou... A Rússia perdeu toda a influência que podia ainda exercer sobre a Igreja Ortodoxa na Ucrânia, e por isso não vale a pena continuar a alimentar uma cisão intra-ortodoxa por causa de uma Igreja que já não quer nada com Moscovo de qualquer maneira. 

Mais interessante é o facto de Hilário ter liderado a delegação russa presente no tal encontro inter-ortodoxo do Conselho Mundial das Igrejas e de não se ter oposto a que essa organização, no seu documento final, manifestasse uma forte condenação da invasão da Ucrânia (ver ponto 24). A declaração foi aprovada por unanimidade, o que significa que Hilário votou a favor.

Tanta coisa em tão poucos dias não passou despercebida a Cirilo, que percebendo que já não tinha em Hilário um aliado fiel, o despachou. 

Resta ver agora se Hilário, cuja inteligência e sagacidade são notórias, conseguirá salvar a sua reputação aos olhos do resto do mundo, ou se esta já está demasiado danificada por anos de seguidismo ao regime de Putin.

[Actualizado]

Friday 3 June 2022

Novo Patriarca para a Antiga Igreja do Oriente

A Antiga Igreja do Oriente tinha de escolher o seu novo Patriarca entre seis candidatos.

Calculo que tenham seguido o critério mais lógico para a escolha, optando pela barba mais fixe e mais comprida.

Longa Vida a Mar Yaqoob III Daniel! Que conduza a sua Igreja com sabedoria e ajude a pôr fim ao cisma com a Igreja Assíria do Oriente, contribuindo assim mais um pouco para a unidade total dos cristãos que todos desejamos. 

A Antiga Igreja do Oriente separou-se da Igreja Assíria do Oriente em 1964, numa disputa sobre a forma de escolher o Patriarca. Até então, na IAO a escolha era sempre hereditária, passando do Patriarca para um sobrinho. Infelizmente, a separação reflectiu também divisões internas tribais/familiares. Antes desta eleição falou-se novamente numa tentativa de aproximação e reunificação. Esperemos que isso agora ande para a frente. 

Os seis bispos do sínodo. Mar Yaqoob à
direita, ao centro, com a barba mais fixe.
Estas igrejas servem fiéis sobretudo da região do Iraque, Turquia e Síria e, hoje em dia, uma grande diáspora no Ocidente, nomeadamente na Austrália, Nova Zelândia e Estados Unidos. São igrejas canónicas, isto é, têm ordens e sacramentos válidos, mas por razões históricas não pertenciam a nenhuma comunhão de Igrejas, nem as ortodoxas bizantinas, nem as ortodoxas pré-calcedónias, nem a Católica. Esse facto deixou-as num isolamento fragilizador, que levou a terríveis perseguições e massacres, mais do que as restantes igrejas cristãs na região. São João Paulo II referiu-se à Igreja do Oriente como "Igreja dos Mártires" e isso aplica-se a qualquer destes ramos que entretanto, infelizmente, se separaram entre si. 

Mar Yaqoob III Daniel, (Yaqoob vem de Jacob, que em Português pode ser Tiago) torna-se assim o 110º Patriarca  desta Igreja (uma vez que eles contam com os patriarcas anteriores ao cisma). Era até agora o bispo para as comunidades na Austrália e Nova Zelândia.

Para mais informações sobre a importância religiosa da barba e do cabelo, vejam este artigo que escrevi há mais de 10 anos. 


Wednesday 1 June 2022

Bem-aventurados os que choram

Randall Smith

“Bem-aventurados os que choram, pois serão consolados” (Mt. 5,4). No comentário às bem-aventuranças, no livro “Jesus de Nazaré”, o Papa Bento XVI refere que existem dois tipos de tristeza: “Uma que perdeu a esperança, que deixou de confiar no amor e na verdade e, consequentemente, insidia e destrói o homem por dentro; mas há também a tristeza que deriva da comoção provocada pela verdade e leva o homem à conversão, à resistência contra o mal. Esta tristeza cura, porque ensina o homem a esperar e a amar de novo”.

Falando sobre as mulheres aos pés da Cruz, o Papa escreve que “num cenário cheio de crueldade e cinismo ou de conivência gerada pelo medo, permanecem fiéis”. Elas não têm o poder de mudar a situação geral, ou prevenir o desastre, mas ao recusar deixar os seus corações endurecerem-se perante a dor de outro, “estando com” e “sofrendo com” o inocente que foi injustamente condenado, elas colocam-se do seu lado, ao seu lado. Através da sua paixão – no sentido etimológico de partilhar da Sua paixão – e através da sua recusa de virarem as costas ou de deixarem que a revolta, o medo ou a vingança endureçam os seus corações, abriram-se ao amor do Deus que é amor.

Que mais poderiam elas fazer? Fugir, com medo, como os outros discípulos? Sair com armas e matar todos os que achincalhavam Cristo? Interromper uma conferência de imprensa para se queixarem das autoridades judaicas e romanas? Alguma dessas coisas teria ajudado a dar continuidade ao Reino que o Senhor veio estabelecer? Ou teria simplesmente tornado tudo incomensuravelmente pior?

Facilmente imaginamos a reacção de um transeunte: “Por amor de Deus, mulheres, parem de chorar e façam alguma coisa! Peguem numa espada, cortem uma orelha a alguém! Vinguem-se do Sinédrio e do governo romano corrupto”. E que mais é que estas mulheres poderiam responder para além de: “Por amor de Deus, não. Lamentamos, mas está muito enganado”.

“A tristeza de que o Senhor fala é o não-conformismo com o mal, é um modo de opor-se àquilo que todos fazem e que se impõe ao indivíduo como modelo de comportamento. O mundo não suporta este tipo de resistência, exige que se participe. Esta tristeza parece-lhe uma denúncia que se opõe ao aturdimento das consciências”.

Recentemente uma amiga enviou-me um link para um artigo de Elizabeth Bruenig chamado “Uma cultura que mata as suas crianças não tem futuro”. Na sua mensagem a minha amiga comentou “tem piada, pensava que isto ia ser sobre o aborto”. Não era. Não podemos chorar as crianças abortadas. O mundo exige conformismo e chorar essas crianças seria considerado uma acusação contra consciências que se tornaram aturdidas.

Assim, um editorial publicado nesse mesmo dia no L.A. Times tinha como título: “A Califórnia deve tornar-se um porto de abrigo para abortos? Não pode não fazê-lo”. Uma cultura que se tornou tão confortável com a ideia de matar crianças não deve sentir-se tão chocada quando descobre que outras pessoas estão a matar crianças.

No seu artigo, a senhora Bruenig fala várias vezes de uma “cultura de morte”. Ecos do Papa São João Paulo II! Mas no seu caso este termo não se referia aos milhões de bebés abortados todos os anos, ou sequer aos milhares de jovens dos guetos que morrem anualmente em violência relacionada com gangues. Falou também de “declínio moral”, mas para ela isso significa o aumento do número de pessoas que possuem armas.

Memorial para as vítimas do massacre de Uvalde
Eu não gosto de armas. Mas as estatísticas citadas por pessoas como David Frum, no seu artigo “A América tem Sangue nas Mãos” sugerem que estou em minoria. “Os Estados Unidos têm posto mais e mais armas em mais e mais mãos, 120 armas por cada 100 pessoas neste país”, escreve Frum. É uma construção estranha: “pôr mais armas em mais mãos”? Foi alguém que as pôs lá?

Eu poderia dizer: “A América pôs mais material pornográfico em mais mãos este ano do que nunca!” Mas aí alguém poderia referir que esse material foi adquirido. Parece que existe mesmo um mercado para isso. Posso não gostar (e não gosto), mas como há tantas pessoas dispostas a pagar, calculo que elas gostem. Presumo, por isso, que se isto fosse a votos eu perderia – a não ser que antes conseguisse converter as suas mentes e os seus corações.

Eu acho as minhas convicções fantásticas. Por isso é que as tenho. Mas às vezes há quem discorde. Aprendi, ao longo dos anos, que isto não significa que essas pessoas sejam necessariamente más ou estúpidas. Simplesmente discordamos. É importante saber discordar sem ser desagradável, sem ódio e sem recriminação.

A autora do tal artigo sobre uma cultura que mata as suas crianças, em contraste, escreve isto: “Depois há algumas pessoas que dizem que todas as coisas terríveis – incluindo esta coisa insuportável que nenhuma civilização deveria ter de aguentar, esta lotaria assassina e demoníaca de alunos – deve simplesmente continuar. E essas pessoas estão a ganhar.” Fiquei a pensar: quem são essas pessoas? Quem é que diz que “todas as coisas terríveis devem continuar”? Não devo ter apanhado essas entrevistas.

Este tipo de comentário ajuda? Irá trazer a paz que nós – todos nós, à sua maneira – tão desesperadamente deseja?

Tanta revolta, tanto ódio, tanta desconfiança, tanta vilificação desnecessária: talvez seja por isso que tantas pessoas compram armas. Pessoalmente, preferia que não o fizessem, mas as suas escolhas livres não dependem de mim.

Então, talvez haja momentos em que temos simplesmente que parar e chorar: sofrer com os outros, não virar as costas, nem apontar dedos de recriminação e culpa para anestesiar o sofrimento, mas simplesmente sentarmo-nos juntos e chorar. Não faltará tempo para voltarmos a arrancar olhos uns aos outros, amanhã, na próxima semana, ou no próximo mês.

“Quem não endurece o coração perante o sofrimento e a necessidade do outro, quem não abre a alma ao mal, mas sofre sob a sua pressão dando assim razão à verdade, a Deus, esse escancara a janela do mundo para fazer entrar a luz”. (Bento XVI).


Randall Smith é professor de teologia na Universidade de St. Thomas, Houston.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na terça-feira, 31 de Maio de 2022)

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