Thursday 15 September 2022

Francisco a ser Papa no Cazaquistão

O Papa está no Cazaquistão. Engane-se quem pensa que esta é apenas mais uma viagem apostólica, é muito mais que isso. Neste texto pretendo falar brevemente da dificuldade de navegar entre o diálogo religioso e o sincretismo, da importância contextual dos apelos do Papa à paz, e à questão da relação com a Igreja Ortodoxa Russa.

Diálogo sem sincretismo

Francisco está na capital do Cazaquistão, uma ex-república da União Soviética gigante que, curiosamente, tem investido muito em promover o diálogo inter-religioso ao longo das últimas décadas.

Os cristãos são uma minoria de 25% no país, e católicos são apenas 1%, na grande maioria membros de outros grupos étnicos, desde polacos a coreanos. A história da Igreja no país também é curiosa, uma vez que muitos dos católicos descendem de pessoas que foram deportadas para a região durante as perseguições na União Soviética. No Cazaquistão havia 11 campos de concentração, parte do sistema Gulag.

A relação da Igreja Católica com o diálogo inter-religioso é complexa. Durante séculos a atitude era de que esta é a Igreja fundada por Deus, quem quiser pode entrar, mas não há mais nada para discutir. O Concílio Vaticano II cristalizou uma mudança gradual de posição, tanto ao nível ecuménico como de diálogo inter-religioso, e Roma passou a interessar-se no diálogo. Em 1986 o Papa João Paulo II iniciou os encontros inter-religiosos de Assis, para rezar pela paz. Foi muito criticado por isso, com os seus adversários a dizer que os encontros promoviam o sincretismo e o relativismo, mas ele persistiu, tentando sempre deixar claro que juntar pessoas crentes para suplicar a Deus pela paz é diferente de dizer que essas crenças são todas igualmente válidas, ou que as diferenças não interessam.

Estes encontros no Cazaquistão surgem desse mesmo espírito de Assis. Quem o diz é o bispo de Almaty, no Cazaquistão, que é espanhol e foi entrevistado recentemente pela fundação Ajuda à Igreja que Sofre. Mas os críticos não desarmam e continuam a levantar o fantasma do relativismo.

Francisco está, por isso, em terreno difícil no Cazaquistão, mas no seu discurso ao Congresso de Líderes de Religiões Mundiais e Tradicionais não desiludiu e falou precisamente como Papa que é. Encorajou a colaboração inter-religiosa pela paz, condenou a utilização da religião para justificar a guerra e criticou, usando mesmo esse termo, o sincretismo. Foi um bom discurso, pleno de referências locais, que pode ser lido aqui. Deixo-vos com uma das principais citações:

Queridos irmãos e irmãs, avancemos juntos, para que seja cada vez mais amistoso o caminho das religiões. (…) O Altíssimo liberte-nos das sombras da suspeita e da falsidade; conceda-nos cultivar amizades ensolaradas e fraternas, através do diálogo frequente e da sinceridade luminosa das intenções. E desejo agradecer aqui o esforço do Cazaquistão neste ponto: sempre procura unir, sempre procura incentivar o diálogo, sempre procura construir a amizade. Isto é um exemplo que o Cazaquistão dá a todos nós e devemos segui-lo, apoiá-lo. Não procuremos falsos sincretismos conciliatórios – não servem –, mas guardemos as nossas identidades abertas à coragem da alteridade, ao encontro fraterno. Só assim, por este caminho, nos tempos sombrios que vivemos, poderemos irradiar a luz do nosso Criador.

Falar de paz numa região de guerra

É certo que Francisco fala muito de paz, e que tem falado sobretudo muito da guerra na Ucrânia. Podem ver aqui a extensa lista das declarações sobre o assunto que tem feito nos últimos meses, desde que a Rússia invadiu o país vizinho. Mas é preciso ter em conta o contexto em que o faz agora, no Cazaquistão. Aqui Francisco está ao lado da Rússia, na sua esfera de influência, e as suas palavras têm mais peso.

Mas é preciso ter também em conta que não é apenas a na Ucrânia que soam as armas neste momento. Sem sair da zona da ex-União Soviética, temos tido também problemas nos últimos dias, com tiros e mortos, na fronteira entre o Quirguistão e o Tajiquistão e, com uma gravidade muito maior, temos assistido a uma tentativa de invasão da Arménia por parte do Azerbaijão. Este último caso era previsível, infelizmente, e escrevi sobre ele exatamente quando a guerra na Ucrânia começou. Preferia ter-me enganado. Os problemas entre o Azerbaijão e a Arménia são mais graves ainda na medida em que o primeiro é muçulmano e o segundo cristão. O conflito é territorial, não religioso, mas existe sempre o risco agravado de adquirir também uma dimensão religiosa e espalhar-se, por isso, a países vizinhos. Esperemos que não.

É aqui, nesta região unida por um passado de forte perseguição às religiões e que se debate ainda com um pesado legado comunista, que Francisco vem falar de paz. E em boa hora o faz.

Diálogo com os russos

Uma dimensão muito importante desta visita é a do diálogo com a Igreja Ortodoxa da Rússia. Já escrevi e falei várias vezes sobre o período difícil que a Igreja Russa atravessa, travando uma luta pelo poder no interior da comunhão de Igrejas Ortodoxas e ao mesmo tempo tentando sobreviver a uma relação demasiado estreita com o poder político em Moscovo.

O Patriarca Cirilo, de Moscovo, quis afirmar-se como o grande representante da ortodoxia no mundo, em oposição a Bartolomeu de Constantinopla, mas acabou, pela sua proximidade a Vladimir Putin, por se tornar um pária aos olhos do mundo religiosos. Tenho comentado, nas minhas mais recentes análises às suas declarações, que já nem se percebe se as suas palavras são para ser levadas a sério, se são críticas (muito) dissimuladas ao regime de Putin, ou se simplesmente perdeu toda a noção. Só na última semana lamentou o facto de o mundo estar a sofrer por causa dos ditadores que espalham o conflito e elogiou a Rússia por não cometer crimes de guerra, algo que se deve ao facto de ter um historial de líderes ortodoxos crentes. E não nos esqueçamos da vez em que se regozijou no facto de a Rússia, apesar de ser um país muito poderoso, nunca ter atacado ninguém. E sim, disse-o já depois da invasão da Ucrânia.

O facto é que Cirilo está quase totalmente isolado e ninguém parece disposto a falar com ele, excepto o Papa Francisco. Há até quem considere que Francisco está a ser ingénuo quando diz que quer falar com Cirilo, mas o Papa parece entender que por mais que esteja a atravessar, digamos, um mau momento, a Igreja Russa não deixa de ser uma grande denominação cristã e que não se deve desistir, por isso, desse diálogo. Aliás, no seu discurso à chegada ao Cazaquistão disse: “Precisamos de líderes que, a nível internacional, permitam aos povos compreenderem-se e dialogarem, e gerem um novo ‘espírito de Helsínquia’, a vontade de reforçar o multilateralismo, de construir um mundo mais estável e pacífico pensando nas novas gerações. E, para fazer isto, é preciso compreensão, paciência e diálogo com todos. Repito: com todos.”

Mais uma vez, porém, Cirilo perdeu a oportunidade de se agarrar a esta mão estendida. Se tivesse ido ao Cazaquistão, como estava inicialmente combinado, teria conseguido tornar-se o centro do evento e o seu encontro com o Papa Francisco seria o ponto alto do congresso, em termos mediáticos. Mas temendo ser alvo de críticas, refugiou-se novamente no seu palácio de cristal em Moscovo e tornou ainda mais pertinentes as palavras do Papa que muitos acreditam terem sido ditas com ele em mente.

Se o Criador, a quem dedicamos a existência, deu origem à vida humana, como podemos nós – que nos professamos crentes – consentir que a mesma seja destruída? E como podemos pensar que os homens do nosso tempo – muitos dos quais vivem como se Deus não existisse – estejam motivados para se comprometer num diálogo respeitoso e responsável, se as grandes religiões, que constituem a alma de tantas culturas e tradições, não se empenham ativamente pela paz?

Irmãos e irmãs, purifiquemo-nos, pois, da presunção de nos sentir justos e de não ter nada a aprender dos outros; libertemo-nos das conceções redutoras e ruinosas que ofendem o nome de Deus com rigidezes, extremismos e fundamentalismos, e o profanam por meio do ódio, do fanatismo e do terrorismo, desfigurando inclusive a imagem do homem. (…) Nunca justifiquemos a violência. Não permitamos que o sagrado seja instrumentalizado por aquilo que é profano. O sagrado não seja suporte do poder, e o poder não se valha de suportes de sacralidade! Deus é paz, e sempre conduz à paz, nunca à guerra.

Mais uma vez, belas palavras. Haja quem as oiça e as ponha em prática!

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