Diálogo sem sincretismo
Francisco está na capital do
Cazaquistão, uma ex-república da União Soviética gigante que, curiosamente, tem
investido muito em promover o diálogo inter-religioso ao longo das últimas
décadas.
Os cristãos são uma minoria de
25% no país, e católicos são apenas 1%, na grande maioria membros de outros
grupos étnicos, desde polacos a coreanos. A história da Igreja no país também é
curiosa, uma vez que muitos dos católicos descendem de pessoas que foram
deportadas para a região durante as perseguições na União Soviética. No
Cazaquistão havia 11 campos de concentração, parte do sistema Gulag.
A relação da Igreja Católica
com o diálogo inter-religioso é complexa. Durante séculos a atitude era de que esta
é a Igreja fundada por Deus, quem quiser pode entrar, mas não há mais nada para
discutir. O Concílio Vaticano II cristalizou uma mudança gradual de posição,
tanto ao nível ecuménico como de diálogo inter-religioso, e Roma passou a
interessar-se no diálogo. Em 1986 o Papa João Paulo II iniciou os encontros
inter-religiosos de Assis, para rezar pela paz. Foi muito criticado por isso,
com os seus adversários a dizer que os encontros promoviam o sincretismo e o
relativismo, mas ele persistiu, tentando sempre deixar claro que juntar pessoas
crentes para suplicar a Deus pela paz é diferente de dizer que essas crenças
são todas igualmente válidas, ou que as diferenças não interessam.
Estes encontros no Cazaquistão
surgem desse mesmo espírito de Assis. Quem o diz
é o bispo de Almaty, no Cazaquistão, que é espanhol e foi entrevistado
recentemente pela fundação Ajuda à Igreja que Sofre. Mas os críticos não desarmam
e continuam a levantar o fantasma do relativismo.
Francisco está, por isso, em
terreno difícil no Cazaquistão, mas no seu discurso ao Congresso de Líderes de
Religiões Mundiais e Tradicionais não desiludiu e falou precisamente como Papa
que é. Encorajou a colaboração inter-religiosa pela paz, condenou a utilização
da religião para justificar a guerra e criticou, usando mesmo esse termo, o
sincretismo. Foi um bom discurso, pleno de referências locais, que
pode ser lido aqui. Deixo-vos com uma das principais citações:
Queridos irmãos e irmãs,
avancemos juntos, para que seja cada vez mais amistoso o caminho das religiões.
(…) O Altíssimo liberte-nos das sombras da suspeita e da falsidade; conceda-nos
cultivar amizades ensolaradas e fraternas, através do diálogo frequente e da
sinceridade luminosa das intenções. E desejo agradecer aqui o esforço do
Cazaquistão neste ponto: sempre procura unir, sempre procura incentivar o
diálogo, sempre procura construir a amizade. Isto é um exemplo que o
Cazaquistão dá a todos nós e devemos segui-lo, apoiá-lo. Não procuremos falsos
sincretismos conciliatórios – não servem –, mas guardemos as nossas identidades
abertas à coragem da alteridade, ao encontro fraterno. Só assim, por este
caminho, nos tempos sombrios que vivemos, poderemos irradiar a luz do nosso
Criador.
Falar de paz numa região de
guerra
É certo que Francisco fala
muito de paz, e que tem falado sobretudo muito da guerra na Ucrânia. Podem
ver aqui a extensa lista das declarações sobre o assunto que tem feito nos
últimos meses, desde que a Rússia invadiu o país vizinho. Mas é preciso ter em
conta o contexto em que o faz agora, no Cazaquistão. Aqui Francisco está ao
lado da Rússia, na sua esfera de influência, e as suas palavras têm mais peso.
É aqui, nesta região unida por
um passado de forte perseguição às religiões e que se debate ainda com um pesado
legado comunista, que Francisco vem falar de paz. E em boa hora o faz.
Diálogo com os russos
Uma dimensão muito importante
desta visita é a do diálogo com a Igreja Ortodoxa da Rússia. Já escrevi e falei
várias vezes sobre o período difícil que a Igreja Russa atravessa, travando uma
luta pelo poder no interior da comunhão de Igrejas Ortodoxas e ao mesmo tempo
tentando sobreviver a uma relação demasiado estreita com o poder político em
Moscovo.
O Patriarca Cirilo, de Moscovo,
quis afirmar-se como o grande representante da ortodoxia no mundo, em oposição
a Bartolomeu de Constantinopla, mas acabou, pela sua proximidade a Vladimir
Putin, por se tornar um pária aos olhos do mundo religiosos. Tenho comentado, nas
minhas mais recentes análises às suas declarações, que já nem se percebe se
as suas palavras são para ser levadas a sério, se são críticas (muito) dissimuladas
ao regime de Putin, ou se simplesmente perdeu toda a noção. Só na última semana
lamentou o facto de o mundo estar a sofrer por causa dos ditadores que espalham
o conflito e elogiou a Rússia por não cometer crimes de guerra, algo que se
deve ao facto de ter um historial de líderes ortodoxos crentes. E não nos
esqueçamos da vez em que se regozijou no facto de a Rússia, apesar de ser um
país muito poderoso, nunca ter atacado ninguém. E sim, disse-o já depois da
invasão da Ucrânia.
O facto é que Cirilo está
quase totalmente isolado e ninguém parece disposto a falar com ele, excepto o
Papa Francisco. Há até quem considere que Francisco está a ser ingénuo quando
diz que quer falar com Cirilo, mas o Papa parece entender que por mais que esteja
a atravessar, digamos, um mau momento, a Igreja Russa não deixa de ser uma
grande denominação cristã e que não se deve desistir, por isso, desse diálogo.
Aliás, no seu discurso à
chegada ao Cazaquistão disse: “Precisamos de líderes que, a nível
internacional, permitam aos povos compreenderem-se e dialogarem, e gerem um
novo ‘espírito de Helsínquia’, a vontade de reforçar o multilateralismo, de
construir um mundo mais estável e pacífico pensando nas novas gerações. E, para
fazer isto, é preciso compreensão, paciência e diálogo com todos. Repito: com
todos.”
Mais uma vez, porém, Cirilo
perdeu a oportunidade de se agarrar a esta mão estendida. Se tivesse ido ao Cazaquistão,
como estava inicialmente combinado, teria conseguido tornar-se o centro do
evento e o seu encontro com o Papa Francisco seria o ponto alto do congresso,
em termos mediáticos. Mas temendo ser alvo de críticas, refugiou-se novamente
no seu palácio de cristal em Moscovo e tornou ainda mais pertinentes as
palavras do Papa que muitos acreditam terem sido ditas com ele em mente.
Se o Criador, a quem
dedicamos a existência, deu origem à vida humana, como podemos nós – que nos
professamos crentes – consentir que a mesma seja destruída? E como podemos
pensar que os homens do nosso tempo – muitos dos quais vivem como se Deus não
existisse – estejam motivados para se comprometer num diálogo respeitoso e
responsável, se as grandes religiões, que constituem a alma de tantas culturas
e tradições, não se empenham ativamente pela paz?
Irmãos e irmãs,
purifiquemo-nos, pois, da presunção de nos sentir justos e de não ter nada a
aprender dos outros; libertemo-nos das conceções redutoras e ruinosas que
ofendem o nome de Deus com rigidezes, extremismos e fundamentalismos, e o
profanam por meio do ódio, do fanatismo e do terrorismo, desfigurando inclusive
a imagem do homem. (…) Nunca justifiquemos a violência. Não permitamos que o
sagrado seja instrumentalizado por aquilo que é profano. O sagrado não seja
suporte do poder, e o poder não se valha de suportes de sacralidade! Deus é
paz, e sempre conduz à paz, nunca à guerra.
Mais uma vez, belas palavras. Haja
quem as oiça e as ponha em prática!
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