Friday, 17 March 2023

Listas completas e descarrilamentos

Foi um bocado a conta gotas, mas as últimas dioceses comunicaram finalmente o número de casos que tinham recebido nas famosas listas dadas pela Comissão Independente. Já actualizei os dados todos, com um quadro todo jeitoso feito no Excel. Fiz as fórmulas sozinho e tudo! A minha mulher está muito orgulhosa…

Mas isto não é só uma questão de números. Há conclusões gerais a tirar dos dados, e é isso que tento fazer aqui.

Uma das conclusões mais evidentes é que o item mais representado na lista de 98 nomes são os alegados abusadores que já morreram. Recordo que inicialmente era suposto esta ser uma lista de alegados abusadores ainda no activo. É importante isto? Não é fundamental – o fundamental são sempre as vítimas e o que pudermos enquanto Igreja fazer para melhorar a vida das que já existem e que possam ainda vir a existir – mas é importante, e é sobretudo importante por causa das vítimas. Confusos? Tudo explicado aqui.

Estas semanas foram um exemplo perfeito de algo que tinha tudo para correr bem e depois descarrilou. Escrevi um artigo para o The Pillar a explicar como é que isso aconteceu e o que as partes envolvidas pensam sobre o assunto. Está em inglês, mas encontram aqui dados que não encontram na imprensa portuguesa, por isso leiam.

Tenho sido solicitado com frequência para ir à televisão e rádio falar deste assunto e explicar o que se está a passar. Muitos desses comentários depois não ficam online, mas aqui podem ver algumas recentes, incluindo o muito simpático elogio que Paulo Portas fez ao meu trabalho no seu comentário a este assunto no Global, na TVI.

Estive também como convidado no programa “E Deus Criou o Mundo”, na Antena 1. Foram dois episódios em que se falou deste tema, mas também de diálogo inter-religioso. Podem ouvir aqui.

E por fim fui convidado para conversar com Margarida Vaqueiro Lopes e com a Rita Carvalho, do Ponto SJ, sobre o que se está a passar nesta questão dos abusos, e esse podcast, fresquinho e acabado de publicar, está aqui.

Temos artigo novo do The Catholic Thing, em que Anthony Esolen nos explica que vamos ser julgados por Deus por aquilo que fizemos e somos e não por aquilo que talvez tivéssemos feito e sido noutras circunstâncias. É sempre um bom exercício pensar nestas coisas na Quaresma.

Termino com um convite. Há Caminhada Pela Vida este fim-de-semana. Participem. Estas coisas podem às vezes parecer um exercício fútil. Vamos à caminhada, vemos amigos, parece que somos sempre os mesmos, vamos para casa e no dia seguinte percebemos que a cultura da morte continua a sua marcha aparentemente imparável. Mas lembrem-se que há muita gente a trabalhar para contrariar esta realidade. Fazem-no sem recursos, fazem-no sem grandes apoios, fazem-no até sem grande esperança de sucesso. A vossa presença nas caminhadas, que acontecem um pouco por todo o país, são um encorajamento que não se pode menosprezar. Nem que seja por isso.

Thursday, 16 March 2023

Conclusões sobre a lista de alegados abusadores

[Post já actualizado depois de o Porto ter anunciado a suspensão de três dos sete padres sobre quem tinha pedido informações complementares]
Agora que já temos informação de todas as dioceses sobre as listas que receberam, é tempo de tirar algumas ilações. Os dados propriamente ditos, o mais completos possível, estão aqui.

Menos de cem nomes

Sempre foi dito que seriam mais de 100 nomes, havendo quem falasse de 120. Afinal, somando todos estes casos temos apenas 98. Contudo, pode haver uma explicação para isto. Talvez a Comissão Independente se estivesse a referir a todos os nomes, incluindo os que estão nas listas a entregar ainda às congregações religiosas. A outra hipótese é que o número de “mais de 100” tenha sido dito assim por alto. Afinal de contas 98 é muito próximo de 100. Este não me parece ser um problema extraordinariamente grave, mas se for esta a hipótese é mais uma demonstração de falta de rigor no que diz respeito à lista de abusadores, o que era desnecessário.

37% mortos

Já dediquei um artigo inteiro a explicar porque é que é importante a questão de saber se a lista continha os nomes de mortos ou não, não me vou repetir. Mas fica o registo de que 36 dos nomes na lista dizem respeito a alegados abusadores que já morreram. É, de longe, o maior número de todos os itens.

Isto não deixa de ser boa notícia. Não porque o sofrimento das vítimas seja menor, mas porque é a maior das garantias de que, caso esses homens tenham sido de facto abusadores de menores, já não constituem uma ameaça activa para ninguém.

9 no activo

Este é um número sujeito ainda a muitas mudanças. À medida que as dioceses que pediram mais informação sobre alguns dos nomes nas suas listas a forem recebendo, poderemos ver novos casos de afastamento provisório e abertura de processos canónicos e/ou civis. Na verdade, contudo, apenas se aguarda mais informação relativa a 8 destes nomes, uma vez que Coimbra já recebeu a informação pedida e concluiu que não se tratava de um caso de abuso de menores. Este facto será escrutinado um pouco mais abaixo.

Falta de uniformidade

Uma das dificuldades com a lista é a falta de uniformidade com que cada diocese apresentou os seus dados. Por exemplo, algumas dioceses dizem que têm padres na lista que não têm cargo atribuído. Isto pode querer dizer que estão a gravemente doentes e hospitalizados (há um caso assim); pode querer dizer que estão reformados e possivelmente incapazes de participar em qualquer tipo de inquérito; pode querer dizer que foram expulsos do sacerdócio ou que o abandonaram de livre vontade (há pelo menos três casos assim) ou pode querer dizer que o padre em questão já foi ilibado pela justiça civil e canónica, mas ainda não foi nomeado para um novo cargo (também há um caso assim).

No que diz respeito a este último exemplo, algumas dioceses disseram especificamente que os padres nas suas listas tinham sido já alvo de processos. Alguns disseram quais tinham sido os resultados, outros não.

Tudo isto torna difícil sistematizar os dados, mas é mais do que isso. É um exemplo – pequeno, mas real – do que correu pior em todo este processo, que foi a variedade de estilos e ritmos de resposta dos bispos e das dioceses. Eu sei que cada diocese é independente e que zelam muito por isso, mas teria feito sentido, num tema destes centralizarem as respostas e falarem a uma só voz.

E agora? A transparência continua?

Não está tudo feito (e estou a referir-me só à lista, nem estou a falar de tudo o resto que falta fazer). Neste momento ainda temos 13 casos de padres sobre quem foi pedida mais informação, mais dois casos que foram enviados para a diocese errada e ainda os casos dos padres desconhecidos que poderão eventualmente ser identificados com mais dados fornecidos pela Comissão. Agora que a atenção mediática vai começar a diminuir, será que as dioceses vão continuar com a política da transparência e manter a comunidade informada sobre os desenvolvimentos em relação a esses casos? Era muito importante que isso acontecesse.

E nesse sentido, sublinha-se que algumas das dioceses aproveitaram os seus comunicados para informar que alguns dos casos já tinham sido tratados processualmente, embora essa informação nunca tivesse sido pública. Claro que é bom que assim seja, mas porque é que isso não tinha sido tornado público antes?

Pode-se argumentar que a população em geral não tem nada que saber se um padre é acusado formalmente de um crime de abuso sexual ou não, que o que interessa é que a coisa seja tratada. Mas na Igreja os maiores prejuízos que têm sido causados por este escândalo não são só a existência de predadores, que sempre os haverá em qualquer sector da sociedade, mas sobretudo os encobrimentos. Ora, é muito mais fácil um bispo cair na tentação de encobrir um caso se não existir uma cultura de transparência total.

Recentemente, algumas dioceses já adoptaram a prática de fazer comunicados quando um padre é alvo de uma acusação credível de abuso sexual, e nalguns casos divulgam mesmo o seu nome. Esta última questão é discutível, mas eu acho que é boa política, pois sendo muito duro para o padre, que pode vir a ser ilibado, não dizer o nome coloca todo o resto do clero sob suspeita.

O que se passou em Coimbra?

Um dos casos mais curiosos foi o que se passou com a lista entregue a Coimbra. Sem quaisquer informações sobre um dos padres na sua lista, a diocese pediu mais dados à Comissão, que prontamente os enviou. Na sequência, a diocese disse que tendo em conta esses dados tinha-se concluído que a situação não enquadrava qualquer tipo de abuso sexual, nem de menores, nem de outra espécie. Como é que isto acontece?

Uma possibilidade – e isto é uma suposição minha – é que seja um caso parecido com o que surge na página 236 do relatório, embora dificilmente seja especificamente o mesmo caso, por causa das datas:

Nascido na década de 30, M preencheu o inquérito online com a ajuda de um neto. Conta que, com 14 anos, foi uma vez confessar-se, numa igreja importante de uma cidade do Norte e o padre lhe fez perguntas «impróprias e sexuais. Disse: "já namoras? Já puseste as mãos nas maminhas da tua namorada? e nas coxinhas?" (…) Fui-me embora e nunca mais entrei numa Igreja.» Contou aos pais que lhe pediram «para não falar».   

Eu percebo que um caso destes esteja no relatório, se a pessoa ficou incomodada com o estilo da confissão, fez bem em falar do assunto, até porque já vimos que muitos dos abusos foram de facto insinuações e frases ditas nesse ambiente. Mas dificilmente este caso em particular configura uma situação de abuso sexual de menor.

Pode ter sido isto? Não sei, mas tendo a Comissão validado este testemunho, caso o nome do padre tenha sido divulgado, então deve estar na lista. Se não na de Coimbra, uma vez que não sabemos a diocese, então noutra qualquer.

[Nota: Depois de ter publicado isto recebi alguns comentários e telefonemas a alertar-me para ter cuidado, porque este tipo de conversa pode de facto constituir abuso. Agradeço e aceito que não deveria ter escrito "dificilmente este caso em particular configura uma situação de abuso sexual de menor". Não vou apagar por uma questão de transparência, e porque acho que vale a pena alertar para o facto de este ser um assunto que cai mesmo naquela fronteira cinzenta da questão e acredito que possa haver casos - não estou a falar deste em particular, mas no geral - em que as perguntas sejam inocentes mas não sejam entendidas assim pelo penitente.]

Padres afastados

Por fim, a célebre questão dos padres afastados preventivamente do ministério enquanto os seus processos são investigados. Tem havido muitas críticas às listas e à forma como tudo se passou, mas por causa delas pelo menos seis padres já foram afastados e isso é importante. Não estou aqui a contar com o padre de Viseu que já estava suspenso antes de ter sido nomeado na lista. Este número está sujeito a aumentar, uma vez que há 11 padres sobre quem se espera mais informação e quando essa informação chegar eles também poderão ser afastados preventivamente, bastando para isso que haja credibilidade na acusação, o que não implica qualquer assunção automática de culpa. Este é o grande fruto desta lista e não pode ser negligenciado. Frases como “a montanha pariu um rato” não ajudam ninguém nesta fase. Sim, falou-se em 100; sim, isso gerou um ruído desnecessário, mas isso está no passado.

Agora estes casos serão investigados e se tudo correr bem será feita justiça, passe isso por uma condenação e eventual pena, ou por arquivamento ou ilibação. Essa justiça é que é importante, mais do que guerras de números.

Conclusão: Uma Igreja segura e insegura

O objectivo final de todo este processo é garantir que a Igreja seja simultaneamente mais e menos segura.

Mais segura para crianças e adultos vulneráveis, como é evidente. Segura não só no sentido de ser muito menos provável alguém passar por uma situação de abusos – impossível nunca será – mas também no sentido de saberem que há mecanismos e processos que funcionam caso façam uma denúncia.

Ao mesmo tempo é importante – e este ponto depende do anterior – que nenhum predador sinta que possa seguir uma vida na Igreja porque assim terá caminho facilitado para poder cometer abusos. Isto é crucial. Trabalhar a montante, evitando a ordenação ou contratação de pessoas que revelem comportamentos desviantes, falta de maturidade sexual ou outras características que certamente os psiquiatras conseguirão identificar melhor que eu, é das maiores reformas que a Igreja deve empreender ou, onde já é feito, aprofundar e dar continuidade. De resto, muita atenção, sem tornar a Igreja um estado policial, para ter a certeza que qualquer comportamento suspeito não é ignorado.

É assim que se tem feito noutros países que já levam umas décadas de avanço, é assim que se deve fazer aqui também. Deus dê força aos nossos bispos para continuarem o bom trabalho que já existe, e fazer o que falta fazer.

A Igreja sabe comunicar?

Tive o privilégio de ser convidado pelo Ponto SJ para discutir este assunto com a Rita Carvalho e a Margarida Vaqueiro Lopes. Falámos longamente sobre a questão dos abusos e a forma como a Igreja reagiu ao relatório da Comissão Independente e ao que se seguiu, incluindo o famoso caso das listas. 

Uma conversa entre três pessoas que percebem alguma coisa de comunicação social e que querem que a Igreja saia de tudo isto mais forte. 

Ouçam e partilhem, que acho que vale mesmo muito a pena!

O que sabemos da lista dos abusadores dada à CEP pela Comissão Independente - Final

Já mais de metade das dioceses revelaram alguma informação sobre as listas que receberam da Comissão Independente. Neste post irei actualizando os dados referentes a isto.

Todas as 21 dioceses já revelaram informação sobre as listas. Entre parênteses está o número de alegados abusadores na lista de cada uma e no final encontram um gráfico que irei actualizando à medida que surgir mais informação.

  • Algarve (2)
  • Angra (2)
  • Aveiro (3)
  • Beja (5)
  • Braga (8)
  • Bragança-Miranda (3)
  • Coimbra (7)
  • Évora (2)
  • Forças Armadas (0)
  • Funchal (4)
  • Guarda (2)
  • Lamego (2)
  • Leiria-Fátima (5)
  • Lisboa (24)
  • Portalegre Castelo Branco (2)
  • Porto (12)
  • Santarém (0)
  • Setúbal (5)
  • Viana do Castelo (2)
  • Vila Real (3)
  • Viseu (5)

Total 98

Deste total, tendo por base a informação veiculada pelas dioceses e, nalguns casos, cruzada com informação que já era pública ou do meu conhecimento:

  • 36 já morreram (um é leigo)
  • 14 estão suspensos preventivamente (treze foram suspensos no seguimento do entregar da lista, um já estava. Inclui-se aqui um de Vila Real que foi preventivamente suspenso embora seja originário de outra diocese, pelo que não foi contabilizado no ítem de "Diocese errada", para não haver duplicação. Três da diocese do Porto e quatro de Lisboa foram suspensos depois de terem recebido mais informação da Comissão Independente)
  • 8 ninguém sabe quem são 
  • 2 Estão identificados, mas eram de outras dioceses, tendo os seus dados sido remetidos para essas dioceses. (Não está aqui incluído o padre de outra diocese que se encontrava em Vila Real e que foi preventivamente afastado lá, tendo a informação sido enviada para a diocese de origem. Está contabilizado na lista dos suspensos, para evitar duplicações)
  • 12 já não desempenham cargos (pode ser por serem idosos/reformados, ou por terem abandonado ou sido expulsos do estado clerical)
  • 9 são padres no activo, esperando-se mais informação da Comissão para poder decidir as medidas a aplicar (4 do Porto, 1 de Coimbra, 2 de Lamego, 2 de Setúbal). No dia 16 de Março o Porto informou que recebeu informação que levou à suspensão preventiva de três dos sete padres sobre quem tinha pedido mais informação. Não disse nada a respeito dos restantes quatro.
  • 4 já foram ilibados (1 civil e canonicamente, 1 só canonicamente, porque civilmente estava prescrito, 1 - de Braga - só civilmente, 1 em Setúbal pelo menos canonicamente)
  • 9 já tratados civil e/ou canonicamente (4 de Viseu, mas sem que se saiba o resultado do processo, 1 de Braga que foi condenado e cumpre pena de medidas disciplinares, 1 de Coimbra cujo processo foi arquivado civil e canonicamente, 1 de Bragança que foi condenado e tem medidas disciplinares em vigor, 2 em Vila Real, que resultaram em penas de suspensão e de dispensa do ministério e um de Lisboa que segundo o comunicado do patriarcado de 21 de Março, já tinha sido sujeito a medidas cautelares mas já estava novamente no activo, pelo que se presume que viu o caso arquivado)
  • 3 são leigos (1 Lisboa, 2 Leiria-Fátima, sendo que um destes poderá já ter morrido. Beja também reportou um leigo, mas que está contabilizado com os mortos)


(Clicar para aumentar
Quadro não actualizado com novas medidas anunciadas por Lisboa)

Wednesday, 15 March 2023

E Deus Criou o Mundo - Abuso de Menores e Casa Abraâmica

Fui novemente convidado para participar em dois episódios do programa "E Deus Criou o Mundo", da Antena 1. 

O tema do primeiro episódio foi o abuso de menores. 

No segundo falámos, entre outras coisas, da inauguração da Casa Abraâmica, em Abu Dhabi.

Podem ouvir os programas clicando abaixo.


Abusos de menores


Casa abraâmica

O Único Caminho para um Coração Limpo

Anthony Esolen
Recentemente, durante uma conversa, comentei que a introdução da pílula nas relações entre rapazes e raparigas jovens tinha elevado perigosamente o risco das relações sexuais. Todas os prazos saudáveis que medeiam entre um encontro amigável e uma noite na cama foram varridos. De repente, nenhum dos sexos sabia muito bem o que esperar do outro. O resultado, como tenho estado a dizer há muitos anos, foi a solidão de todos os que não alinham no jogo e uma variedade de destroços morais e pessoais para quem alinha. E talvez, no final de contas, uma solidão ainda mais profunda, incluindo uma alienação completa do sexo oposto.

Como é que não prevemos isto? Como é que os católicos, e em particular os teólogos e filósofos, não compreenderam aquilo que pagãos como Platão, Aristóteles, Zenão o Estóico, Cícero e Marco Aurélio viram, que mascarar o pecado não altera o seu efeito, tal como polvilhar com açúcar não diminui o efeito de um prato de veneno?

O meu interlocutor ficou admirado, respondendo que se a pílula tivesse sido disponibilizada 40 anos antes, as pessoas de então teriam agido exactamente da mesma forma que os seus descendentes. Estava a sugerir que a geração do meu avô era tão fraca, egoísta e podre como a que aceitou a pílula.

Respondi que não podemos julgar as pessoas por aquilo que achamos que teriam feito, mas apenas por aquilo que de facto fizeram. Ele admitiu que os mais antigos eram melhores na arte do cortejo, mas contrapôs que fumavam cigarros em elevadores com crianças, ao que eu poderia ter respondido que os nossos tempos também estão repletos de obscenidade públicas, entretenimento ordinário e pornografia, tudo na presença de crianças e, no que diz respeito aos primeiros dois, encorajando mesmo a sua participação.

Há que fazer distinções. A natureza humana não muda. Os alemães que se tornaram nazis talvez fossem pilares das suas comunidades se tivesse crescido noutro local ou tempo; e qualquer um de nós, sobretudo aqueles com tendência para movimentos intelectuais ou para encontrar bodes expiatórios, coisa não rara entre a humanidade, poderia ter-se tornado nazi.

Talvez seja mais seguro dizer que este exercício não faz muito sentido. É como pensar como seríamos se tivéssemos nascido de outro sexo. Isso implicaria ter todo um outro corpo, mas não existe um “eu” flutuando por aí, dissociável do meu corpo.

Posso imaginar, ou adivinhar, o que eu, enquanto pessoa já existente, teria feito caso não tivesse feito um curso em Princeton que mudou a minha vida, ou caso não tivesse conhecido a minha mulher Debra, mas mesmo aí estou em território minado. Se calhar, quando tentamos adivinhar o que teríamos feito perante um determinado conjunto de circunstâncias, estamos na verdade a basear essa suposição naquilo que de facto já fizemos em circunstâncias semelhantes.

Por exemplo, aqueles que actualmente se divertem em difamar outros, ou em interpretar as suas palavras ou acções à pior luz possível, talvez tivessem dado óptimos informadores. Ou, pegando na coisa de outra forma, talvez os que actualmente partem do princípio que o lugar da relação sexual é numa relação comprometida e exclusiva, com vista à permanência (por mais iludidas que as pessoas possam estar em relação a tudo isso), teria praticado a castidade e a continência antes do casamento naquela altura.

Ainda assim, fazemos o que fazemos e os nossos actos tornam-se aquilo que somos. John C. Calhoun tratava os seus escravos de forma bondosa, e isso fez mais do que deixar uma marca na sua alma. Esse pecado consumiu a sua alma e assimilou-se a ela de tal forma que na sua velhice Calhoun já não sentia qualquer vergonha por ser esclavagista, olhando-o mesmo como um bem.

Não pretendo julgar a disposição eterna da sua alma. Deus é o juiz. Mas aquilo que vemos, podemos declarar. O pecado deforma e o pecado praticado com uma consciência tranquila, como parece ter ocorrido com Calhoun, deforma ainda mais. Daí que a prostituta que chorou aos pés de Jesus estivesse em melhor estado que Simão o Leproso, que pecava com orgulho e com a consciência límpida como a luz do dia.

O pecado está para a alma como a doença para corpo, mas com uma diferença fundamental que torna o pecado ainda mais perigoso. O corpo consegue combater a doença com os seus próprios recursos. A alma não consegue combater o pecado desta forma. Isto acontece, mais uma vez, porque o pecado é mais do que um invasor. “Quem me libertará do corpo sujeito a esta morte?”, clama São Paulo, descrevendo a luta daquele que sabe aquilo que é bom para a alma, que quer escolher esse bem, mas dá por si a escolher o mal. 

Pior ainda é a luta de quem já nem sequer reconhece o bem. Deve ser claro que nenhum esforço da alma lhe pode valer, uma vez que a escória está completamente misturada com o minério. O minério não tem qualquer forma de expulsar a escória, salvo uma. Só a operação da graça divina pode valer, com a palavra de Deus que penetra até à medula.

Daí decorre também a necessidade urgente de pregar a verdade. Ninguém nos diz que que Deus vai julgar uma ficção de nós mesmos, algo que poderíamos ter sido noutras circunstâncias, imaginárias. Ninguém nos diz que Ele deve salvar a mesma percentagem de nazis e de carpinteiros amish. Somos todos pecadores e todos ficamos aquém da glória de Deus.

Devemos voltar-nos para Deus e dizer: “Um novo coração me dá Senhor”. É algo grandioso que pedimos, porque a re-criação de uma só alma é uma maravilha maior do que a criação do mundo. Não devemos pedir a Deus que “julgue aquilo que eu poderia ter sido”, mas sim “perdoa aquilo que sou, e faz de mim uma pessoa nova”.


Anthony Esolen é tradutor, autor e professor no Providence College. Escreveu, entre outros, Out of the Ashes: Rebuilding American Culture, and Nostalgia: Going Home in a Homeless World, e mais recentemente The Hundredfold: Songs for the Lord. É professor e autor residente na Magdalen College of the Liberal Arts, em Warner, New Hampshire. Pode visitor o seu site em: Word and Song.

(Publicado pela primeira vez no sábado, 11 de Março de 2023 em The Catholic Thing)

© 2023 The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de reprodução contacte: info@frinstitute.org

The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing.

 

Tuesday, 14 March 2023

Abusadores activos ou não activos? E isso interessa?

Jesus a reactivar Lázaro

Ao longo da última semana, desde que as dioceses começaram a lançar comunicados a dar conta dos nomes que tinham recebido nas suas listas, que a perplexidade se tem adensado. Afinal não era suposto a lista de 100+ nomes que a Comissão Independente entregou aos bispos incluir apenas abusadores que estão no activo? Pois parece que não. Mas como é que esta confusão nasceu?

A confusão nasceu precisamente no seio da Comissão Independente. A ideia de que a lista iria incluir nomes de abusadores ainda activos na Igreja foi avançada pelo próprio Pedro Strecht na conferência de imprensa de apresentação do relatório e, mais, está inscrita no relatório, na página 109.

Decidiu, assim, a Comissão Independente, depois de muito ponderar, que a lista das pessoas alegadas abusadoras ainda no ativo, seria remetida, apenas no termo dos trabalhos, tanto ao Ministério Público, como à Conferência Episcopal Portuguesa, entidade que promoveu o presente Estudo, para a análise que aí se julgar adequada, recomendando, embora, e em ambas as situações, o máximo respeito pelo sigilo desde o início garantido.

Naturalmente, por isso, criou-se entre a imprensa e entre a população uma grande expectativa. Haveria mais de 100 abusadores ainda no activo na Igreja portuguesa. O que é que os bispos fariam sobre o assunto?

Quando Funchal divulgou os seus dados, porém, veio-se a perceber que três dos quatro nomes afinal eram de pessoas que estando vivas não exerciam qualquer cargo eclesiástico. Ora, isto pode querer dizer muita coisa. Pode significar que o padre já se encontra afastado do exercício do sacerdócio; que esteve afastado para investigação e até já foi ilibado, mas ainda não foi reintegrado (há pelo menos um caso assim na lista geral); que está reformado ou doente; ou então que já não tem qualquer cargo atribuído porque entretanto foi demitido do estado clerical, ou por vontade própria ou por imposição da Igreja. Posto por outras palavras, e para melhor se poder perceber, na lista do Funchal, por exemplo, um dos três padres referidos poderia até ser o “padre” Frederico, sobre quem o actual bispo pouco ou nada poderia fazer, como é evidente.

Depois do Funchal surgiram vários outros casos semelhantes e até bastantes de padres e leigos alegados abusadores que já morreram.

Entretanto, muito por culpa própria, a Igreja enfrentava uma profunda crise derivada do facto de ter dado a entender que não havia por parte dos bispos qualquer vontade de afastar preventivamente os padres suspeitos. Juntando as duas coisas, fomos sujeitados a vários exemplos como este:

 


Perante isto, a Renascença tentou falar com vários membros da Comissão para saber o que se passava, mas nenhum atendeu, com excepção de Ana Nunes de Almeida que disse não iria comentar as listas.

Um ou dois dias seguintes, contudo, em resposta a um tweet meu, em que eu expressava surpresa e desagrado por ter sido prometida uma lista de 100 nomes de abusadores activos quando afinal mais de 50% não podia de forma alguma ser descrita como activa, ela revelou que sim, a primeira intenção tinha sido de apresentar uma lista de abusadores activos, mas depois mudou-se de ideias e optou-se por se incluir na lista todos os casos, vivos e mortos.


O problema? É que se esqueceram de avisar o resto do mundo. E não, uma resposta breve no meio de uma longa entrevista apenas disponível para assinantes de um jornal online, não conta como um aviso ao mundo.


Aliás, desde que Ana Nunes de Almeida deu essa entrevista, Pedro Strecht deu uma entrevista à SIC Notícias (Cerca 12’30”) em que a jornalista lhe perguntou se a lista com o nome de padres abusadores no activo iria ser entregue aos bispos e respondeu: “Exactamente”, se bem que depois –  ouvindo agora com atenção é que se apanha – tenha dito que ao Ministério Público iria ser entregue uma lista com os nomes dos padres “ainda vivos”.

E agora mais recentemente Daniel Sampaio veio a público defender o trabalho da Comissão dizendo que “é possível que existam [padres mortos] porque é uma lista muito difícil de concretizar, estamos a falar de abusos entre 1950 e 2022”.

Isto não são declarações de quem sabia à partida que era mesmo suposto a lista incluir  nomes de padres já mortos, pelo contrário, é uma desculpa para eles estarem lá acidentalmente.

Finalmente, esta terça-feira o Observador publicou uma longa e interessante entrevista com Laborinho Lúcio em que se aborda longamente esta questão das listas. Ele confirma aquilo que Ana Nunes de Almeida já tinha dito, mas deixa também no ar a ideia de que esta discussão foi criada como forma de desviar a atenção do essencial, que são as vítimas. Ora, dizer isso é não compreender a comunicação social. É evidente que, criada a ideia de que havia 100 pedófilos à solta na Igreja, esse seria sempre o foco principal da comunicação social na semana depois da entrega das tais listas.

Urge, por isso, perguntar porque é que ao longo de mais de uma semana em que todos os meios de comunicação continuaram a falar de uma lista de abusadores ainda no activo, ninguém da Comissão veio anunciar publicamente, de forma clara e a um meio de grande circulação e audiência – que obviamente estariam disponíveis para isso – que afinal tinha-se espalhado uma percepção errada e que a decisão de base era outra. Tenho criticado muito as falhas de comunicação dos bispos, mas estas falhas de comunicação da Comissão também são lamentáveis. A diferença é que já vimos bispos a vir fazer meas culpas pelos seus fracassos comunicacionais, mas a Comissão continua a recusar qualquer crítica ou a fazer qualquer esclarecimento.

E depois?

É natural que se pergunte, e muitos têm perguntado, afinal o que é que isto interessa? Mortos ou vivos, se estes homens abusaram mesmo de alguém então o que importa é reconhecer e ajudar a vítima. Têm toda a razão!

O problema é que esta confusão das listas, a somar-se à confusão das declarações dos bispos, aparentemente contraditórios, corre o risco de afectar sobretudo as vítimas. As que contribuíram para o relatório e outras que ou ainda não contribuíram, ou então ainda estão por vir. Esse é o grande objectivo de toda esta operação. O relatório, as comissões diocesanas, a comissão independente, os memoriais, os pedidos de desculpa, tudo isso só faz sentido se contribuir para criar um ambiente eclesial em que as pessoas se sentem em segurança e em que sentem que se tiverem uma denúncia a fazer podem fazê-la e que serão levadas a sério.

Tudo o que servir para descredibilizar o processo desta Comissão Independente e do relatório que produziu, acaba por prejudicar as vítimas. É por isso que é importante reconhecer que esta baralhada das listas, que acabou por gerar muito ruído, foi um erro. Podiam incluir lá os padres que quisessem, não podiam era anunciar uma coisa, deixar espalhar-se uma ideia, e depois fazer uma coisa diferente.

Mais, estes erros encorajam aqueles que nunca quiseram aceitar o trabalho e as conclusões da Comissão Independente e do relatório, descrevendo-o como um “ataque à Igreja”.

Já o disse várias vezes, e repito. A melhor solução para isto é os bispos e a Comissão Independente juntarem-se novamente, falarem sem cerimónias, porem cá para fora tudo o que os desagradou nestas últimas semanas e aceitar que de ambos os lados se cometeram erros. Afinal de contas, é a primeira vez que se faz algo deste género em Portugal, era natural que nem tudo corresse bem. Urge, contudo, salvar a credibilidade deste processo para que não tenha sido tudo em vão.

É por isso com muito agrado que vejo, por entre algumas críticas duras, palavras conciliatórias nesta entrevista de Laborinho Lúcio ao Observador, recusando quase sempre imputar má vontade aos bispos que têm dito coisas infelizes e elogiando muito claramente a coragem da Igreja de se deixar escrutinar desta forma.

Tenho sugerido que a Comissão e os bispos se voltem a encontrar para falar. Algumas pessoas me têm dito que isso não é cada vez menos provável. Mantenho a esperança de que impere de ambos os lados o bom senso de resgatar a credibilidade de todo este processo para benefício das vítimas, sobretudo.

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