Friday 29 December 2023

O ponto mais baixo do pontificado de Francisco?

Com o ano a aproximar-se do fim, e no final de uma década de pontificado de Francisco, está na altura de perguntar se o Papa está a perder controlo da Igreja. A verdade é que a publicação do Fiducia Supplicans espoletou uma reacção que se vem juntar a uma divisão prolongada com as facções tradicionalistas, mas também com os progressistas na Alemanha e agora com uma diocese inteira da Igreja Siro-Malabar. Este artigo é uma versão mais curta de um que vai sair ainda hoje no site do Expresso e na edição impressa desta semana.

O tema das bênçãos para pessoas em uniões homossexuais foi, claro, um dos vários abordados no episódio desta semana do podcast E Deus Criou o Mundo, em que tive o privilégio de participar. Podem ouvir aqui. E fiquem atentos, porque também estarei no próximo.

Está a chegar ao final mais um ano de muitos conflitos. A fundação Ajuda à Igreja que Sofre dá-lhe uma lista de 10 países ou regiões que estão a precisar especialmente de orações.

Infelizmente o Natal passou com mais uma tragédia para os cristãos na Nigéria. São pelo menos 160 mortos e centenas de feridos no mais recente ataque.

Numa nota um pouco mais positiva, convido-vos a conhecer a história de Milad, um jovem sírio cujo nome significa Natal. Vale a pena ler, acreditem!

No artigo desta semana do The Catholic Thing o padre Paul Scalia analisa a diferença entre a pergunta que Nossa Senhora fez ao Arcanjo Gabriel, e a que Zacarias fez ao anjo que lhe anunciou o nascimento de João Baptista.

Thursday 28 December 2023

Estará Francisco a perder o controlo da Igreja?

[Esta é uma versão resumida de um artigo que escrevi para o Expresso, que pode ser lida na edição impressa e no site]

O Pontificado do Papa Francisco poderá estar a atravessar o seu momento mais difícil, com crises em diferentes pontos do mundo católico a pôr seriamente em causa a autoridade de Roma e a própria unidade da Igreja.

A declaração Fiducia Supplicans causou bastante polémica na Igreja, com o Dicastério para a Doutrina da Fé a anunciar que pessoas em uniões homossexuais podem receber bênçãos. Sem surpresas, a ideia que passou para o mundo foi de que o Papa acabava de aprovar a bênção de uniões homossexuais, apesar de o texto dizer explicitamente que a bênção é para as pessoas, e em caso algum para a relação em si.

No seguimento dessa declaração aconteceu um facto muito pouco comum, com muitos padres, bispos, e até conferências episcopais inteiras, a dizer que não aplicarão a Fiducia Supplicans nos seus territórios.

Pelo menos 10 conferências episcopais, incluindo a Polónia e o Canadá, já reagiram negativamente ao documento, algumas proibindo explicitamente a sua implementação, e outras apenas reiterando a proibição de bênçãos específicas para relações e uniões homossexuais.

E se é verdade que algumas das reações negativas vieram dos “suspeitos do costume”, também há bispos que são tidos como próximos de Francisco, como Ambongo Besungo, da República Democrática do Congo, que faz parte do grupo de cardeais consultores do Papa desde 2020 e chegou mesmo a pedir uma resposta conjunta de todos os bispos africanos, na qualidade de presidente do Simpósio de Conferências Episcopais de África e Madagáscar.

Talvez uma das respostas mais firmes tenha sido do arcebispo maior Sviatoslav Shevchuk, que é o líder da Igreja Greco-Católica da Ucrânia, que se demarcou do documento, dizendo que ele não se aplica à sua igreja. Shevchuk e Francisco podem ter tido alguns desentendimentos por causa da guerra na Ucrânia, mas são amigos e conhecem-se há muitos anos, pois Shevchuk liderou a comunidade ucraniana na Argentina.

Alemanha e Índia

Entretanto a maioria dos bispos alemães continua a defender o seu “caminho sinodal”, que já apelou explicitamente a mudanças na doutrina moral e sexual da Igreja e tem um caráter marcadamente progressista e liberal.

Francisco criticou abertamente o “caminho sinodal”, dizendo que “a Alemanha já tem uma Igreja evangélica, não precisa de outra”, mas até agora tem evitado tomadas de posição mais firmes que possam acelerar a divisão ou mesmo promover uma rutura. Esta atitude, contudo, leva as alas mais conservadoras a estranhar a dualidade de critérios, recordando que o Papa tem tido mão firma contra outras comunidades, como por exemplo os tradicionalistas, que viram limitada a liberdade que o Papa Bento XVI tinha concedido para a celebração de missa de acordo com a liturgia anterior ao Concílio Vaticano II.

O clima de desconfiança entre Roma e os grupos tradicionalistas espalhados pelo mundo tornou-se conhecida como a “guerra litúrgica” e torna ainda mais bizarro o que está a acontecer neste momento na Índia, onde o clero de uma diocese inteira pode estar prestes a ser excomungado.

Trata-se da diocese de Ernakulam-Angamaly, a principal da Igreja Siro-Malabar, a segunda maior igreja católica de rito oriental do mundo, a seguir à já referida igreja ucraniana. A Igreja Siro-Malabar tem mais de quatro milhões de membros, e só a diocese de Ernakulam tem 500 mil, com pelo menos 400 padres.

Tal como outras igrejas de rito oriental, a Igreja Siro-Malabar tem a sua própria liturgia, de origem siríaca, muito anterior à chegada dos portugueses à Índia. Contudo, essa liturgia sofreu muitas influências latinas ao longo dos séculos, que a Igreja tem tentado retificar. Uma dessas influências levou a que em algumas dioceses, incluindo em Ernakulem, os padres passassem a celebrar a liturgia voltados para a comunidade, em vez de seguir a tradição de celebrar voltados para o altar.

Como parte do esforço de uniformização e regresso às raízes litúrgicas, o sínodo da Igreja Siro-Malabar chegou a uma fórmula de consenso em que os padres celebram voltados para os fiéis, exceto a liturgia eucarística, em que se voltam para o altar. Todas as dioceses aceitaram, menos a de Ernakulem, onde padres e fiéis se revoltaram de tal forma contra as novas regras que a polícia encerrou a catedral para evitar cenas de violência e grupos de fiéis queimaram efígies de cardeais da cúria romana.

Falhadas várias tentativas de mediação, o Papa Francisco enviou uma mensagem para a diocese em que pediu aos padres para “não se tornarem uma seita”, sublinhando que a persistência na desobediência poderia levar à excomunhão. Francisco deu até ao Natal para se começar a celebrar o novo rito, mas no dia 25 de dezembro os padres da diocese limitaram-se a celebrar uma missa de acordo com essa liturgia, deixando claro que o faziam por respeito ao Papa, e que ela não se tornaria regra. A possibilidade de um acordo não está descartada, mas o braço-de-ferro mantem-se.

A ironia de o Vaticano estar, de um lado, a pressionar os fiéis de rito latino que querem celebrações com o padre voltado para o altar e, do outro, a ameaçar com excomunhão os padres e fiéis que querem celebrar voltados para o povo, tem sido sublinhada, embora as situações não sejam idênticas. Mas o que as duas realidades revelam é que Francisco tem entre mãos uma Igreja Católica universal cada vez mais dividida, com conflitos abertos sem solução evidente à vista.

Acresce que a idade avançada do Papa, e a sua saúde frágil, tornam ainda menos provável que ele consiga resolver estas crises antes do final do seu pontificado, até porque os seus opositores podem estar dispostos simplesmente a esperar que seja eleito o seu sucessor, para terem um novo parceiro de diálogo, o que implica também que todas estas questões: as bênçãos a homossexuais, o caminho sinodal alemão e as diferentes frentes das guerras litúrgicas, podem vir a desempenhar um papel importante no próximo conclave. 

Wednesday 27 December 2023

A Pergunta de Maria

Pe Paul Scalia

Ora aqui está uma coisa curiosa. A Bendita Virgem Maria – o último máximo de humildade, fé e obediência – faz algo que normalmente não associamos a essas virtudes. Faz uma pergunta: “Como será isso, se não conheço homem?”. Claro que a pergunta é feita precisamente com toda a humildade, fé e obediência. Ao fazê-la ela ensina-nos a perguntar e, por isso, a pensar rectamente sobre a nossa fé.

E devemos mesmo pensar sobre a nossa fé. Não o fazer seria um mau serviço à fé em si. A revelação de Deus é feita a criaturas racionais e deve ser recebida e respondida como tal. Jesus Cristo, a plenitude da revelação de Deus, é o Logos – o verbo, a ideia e ou o pensamento – tornado carne. Deus é o nosso “culto racional” (Romanos 12,1). A ausência de pensamento deturpa e distorce a fé católica. Conduz a uma fé superficial, supersticiosa e frágil, pronta para ser estilhaçada mal seja confrontada por uma boa pergunta.

Fiéis que não pensam tornam-se alvo fácil para predadores. São como a semente que caiu ao longo do caminho. “Quando um homem ouve a palavra do Reino e não a entende, o Maligno vem e arranca o que foi semeado no seu coração” (Mateus 13,19). Um magistério que não pensa torna-se uma tirania que não ensina a palavra de Deus com autoridade, mas impõe simplesmente o seu poder.

Agora, para apreciar a pergunta de Nossa Senhora, temos de a contrastar com a pergunta de Zacarias que surge mais cedo no Evangelho de São Lucas (ver Lucas 1,5-23). O Anjo Gabriel aparece-lhe no templo. Junto ao altar, anuncia a resposta às orações de Zacarias, o nascimento de João Baptista. Em resposta, Zacarias pergunta: “Como terei certeza disso?” À primeira vista, a pergunta é semelhante, praticamente a mesma feita por Maria. Mas a diferença é profunda.  

Como terei a certeza disso? Bom, tens à tua frente o mensageiro de Deus. Isso devia ser prova suficiente. Se o envio de anjo por Deus não é suficiente, então que mais será preciso? Em termos modernos, a pergunta de Zacarias soaria a algo como “deve ser, deve”, ou “Ai sim? Então prova.” Ele não está aberto à verdade que lhe está a ser anunciada. Pelo contrário, insiste que Deus lhe dê provas. Zacarias é um cético, não procura conformar a sua mente à realidade, mas insiste que a realidade se comprove ao seu gosto. Isso torna Zacarias uma imagem adequada da maioria dos pensadores modernos.

A pergunta de Maria é diferente. “Como pode ser isso?” pode ser traduzido como “como será isso?” ou ainda “Como é que isto vai ser?” O ponto é que ela aceita que aquilo que o anjo lhe anunciou será. Mas também quer saber como. Maria confia – tem fé – de que o mensageiro de Deus está a dizer a verdade. Depois, quer compreender como é que esse milagre irá ocorrer

Esta é, por isso, a primeira lição que Nossa Senhora nos ensina sobre como pensar: fazer perguntas com fé. A definição de teologia é uma fé que tenta compreender. Primeiro, acreditamos naquilo que Deus revelou; depois procuramos compreendê-lo melhor. Não condicionamos a nossa fé à compreensão. Não dizemos: “Acreditarei, depois de me convenceres”. Isso foi o que fez Zacarias, e foi punido por isso. A fé no que Deus revelou é necessária ao pensamento correcto na Igreja.

Na verdade, a fé é necessária para qualquer tipo de pensamento. Todos os professores compreendem isto, porque a primeira coisa que os seus alunos devem fazer é confiar neles. Se o aluno não tiver este tipo de fé natural, se recusar-se a confiar, então não será capaz de receber aquilo que o professor tem para partilhar. Os revolucionários instam-nos questionar a autoridade, mas esse é o mantra daqueles que se recusam a ser ensinados e por isso nunca aprenderão a pensar.

Em segundo lugar, Maria mostra-nos que devemos fazer perguntas com a disposição certa para receber a resposta. A pergunta de Zacarias era a única resposta que ele queria. A pergunta de Nossa Senhora revela abertura a aprender. Aqui devemos recordar a frase de Newman de que “dez mil dificuldades não formam uma dúvida”. Uma dificuldade é uma perplexidade ou questão sobre algum aspecto da fé. Leva a questionar e à disposição para acolher o que Deus tem para dizer.

Já a dúvida tem as suas raízes no cepticismo, e conduz ao mesmo. Coloca Deus no Banco dos Réus e coloca sobre Ele o ónus da prova. A ironia é que Deus fez muitas coisas para provar o seu amor por nós. Mas não estamos abertos às suas respostas. Estamos constantemente a mudar o alvo, insistindo que ele se prove de acordo com os nossos critérios.

Terceiro, Maria revela que as nossas questões devem servir para a autodoação. A sua pergunta não é apenas um exercício intelectual. Não está a perguntar só porque era giro saber. Ela não sofre do vício de curiositas. Antes, pergunta, procura compreender mais, para que se possa conformar à verdade de Deus. É por isso que devemos fazer perguntas sobre a fé: para que, ao compreender melhor, possamos dar-nos mais. 

O castigo de Zacarias foi ficar mudo – porque os cépticos não têm nada de útil para dizer. Maria foi premiada com uma explicação e uma prova. Ela não as exigiu; Deus deu-lhas na sua generosidade. Nem sempre Ele fala tão rápida ou claramente. Mas retribui sempre aqueles que o buscam com corações retos e sinceros, que desejam conhecê-lo e compreendê-lo mais, não segundo os seus critérios, mas segundo os dele.


O Pe. Paul Scalia é sacerdote na diocese de Arlington, pároco da Igreja de Saint James em Falls Church e delegado do bispo para o clero. 

(Publicado pela primeira vez no domingo, 24 de Março de 2023 em The Catholic Thing

© 2023 The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de reprodução contacte: info@frinstitute.org

The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing.   

Friday 22 December 2023

Assassinatos na Terra Santa e bênçãos polémicas na Santa Sé

O Papa Francisco fez esta semana 87 anos, e que semana foi!

Começou no passado sábado com a notícia da condenação de dez pessoas e quatro empresas no megaprocesso de corrupção no Vaticano. O Cardeal Becciu recebeu a sentença mais pesada, com cinco anos e seis meses de prisão. Agora haverá recursos, como é evidente, e a coisa pode ser demorada, mas a primeira fase está concluída.

Este processo é de uma complexidade enorme, e é muito difícil acompanhar tudo em detalhe. Uma das pessoas que tem feito o melhor trabalho nesse campo é o Ed Condon, do The Pillar. Por isso, se lêem bem inglês, sugiro que acompanhem a reportagem dele, que será certamente a melhor fonte de informação.

Dois dias depois de ter saído a sentença, o Dicastério para a Doutrina da Fé lançou um documento sobre bênçãos, que explica que pessoas em uniões irregulares, incluindo em uniões homossexuais, podem pedir bênçãos aos ministros da Igreja. O documento foi apresentado na imprensa como uma revolução e como se a Igreja estivesse a aceitar as uniões homossexuais. Não é mesmo assim tão simples. Fui chamado várias vezes a falar do assunto, para diferentes órgãos de imprensa, sugiro que cliquem aqui e sigam os diferentes links para ver a minha opinião.

Estamos em vésperas do Natal e a Terra Santa, onde tudo começou, continua a ferro e fogo. Recentemente tivemos a terrível notícia do assassinato – é mesmo esse o termo – de duas mulheres cristãs que se encontravam dentro do complexo da paróquia Católica em Gaza. Foram mortas com tiros de sniper, e outras sete pessoas ficaram feridas. Quem carregou no gatilho? Israel dirá Hamas, Hamas dirá Israel. A própria da comunidade cristã palestiniana acredita que foi Israel, mas o que interessa é que isto é mais um prego no caixão da já pequena comunidade de Gaza.

Não deixem de ler o artigo desta semana do The Catholic Thing, no qual Stephen White comenta o facto de a nossa civilização guardar cada detalhe minúsculo do passado, mas não parecer capaz de produzir nada que dure mais do que uma ou duas gerações. Para saber o que isto tem a ver com a Basílica de São Pedro, leia.

Convido ainda a quem possa ou queira que leia o meu artigo na edição em papel da revista Brotéria, que está agora à venda, e que oiçam o programa “E Deus Criou o Mundo” da RDP de dia 26 de Dezembro, para o qual fui convidado.

Só me resta desejar a todos um Santo Natal! Voltarei para a semana, se Deus quiser.

Wednesday 20 December 2023

As minhas declarações sobre o Fiducia Supplicans

Ao longo dos últimos dias tenho sido chamado a pronunciar-me algumas vezes sobre a mais recente declaração do Dicastério para a Doutrina da Fé "Fiducia Supplicans".

Junto aqui links para os que estão disponíveis.

Aqui encontram o meu texto para o Expresso online. É apenas para assinantes. Vai sair outro texto na edição impressa desta semana.  

Aqui encontram as minhas declarações à Rádio Observador.

Aqui encontram a minha participação na SIC Notícias de quarta-feira de manhã.

Aqui podem ouvir a minha participação no podcast Expresso da Manhã. 

E por fim, aqui encontram o artigo que escrevi sobre esta questão em Outubro, quando foram publicadas as respostas às dubia, em que este assunto apareceu.

Lembrar de esquecer

Stephen P. White

No início do Século XVI o Papa Júlio II decidiu demolir a Basílica de São Pedro. A antiga basílica, construída por Constantino por cima do túmulo do apóstolo, no Século IV, tinha servido bem, mesmo segundo os padrões romanos. Mas depois de doze séculos de terramotos, pilhagens e descuido generalizado, a antiga Basílica de São Pedro estava em risco de desabar. Por isso, o Papa Júlio desistiu dos seus planos de renovar o edifício e mandou-o demolir e substituir.

A basílica que conhecemos hoje, com a sua majestosa cúpula – a basílica de Bramante e de Miguel Ângelo e Bernini – começou a ser edificada em 1506 e foi consagrada em 1626. Ou seja, a Basílica de São Pedro que conhecemos hoje só existe há um terço do tempo que a sua antecessora.

Como se não bastasse a demolição de um dos mais sagrados santuários da cristandade, o mármore usado para a fachada da nova basílica veio de um local próximo e barato, a pedreira preferida dos romanos: o Coliseu. Os romanos da idade média, e até bem mais tarde, nunca tiveram problemas em reutilizar pedras de antigos edifícios e monumentos.

Retirar mármore do Coliseu pode-nos parecer hoje um acto de vandalismo histórico e cultural, mas fazê-lo para construir algo tão grandioso como a Basílica de São Pedro é certamente louvável quando comparado com os outros usos que os romanos contemporâneos davam às toneladas de mármore do Coliseu, que costumavam esmagar e queimar para fazer cal viva.

Que cultura é esta que tem a audácia de usar o Coliseu (e não apenas o Coliseu, mas a maioria dos antigos edifícios romanos) como pedreira? Que cultura tem a temeridade de demolir um dos edifícios mais veneráveis do mundo, a antiga Basílica de São Pedro, mas tem também a confiança, capacidade e visão para construir algo tão magnífico como a basílica actual?

Lembro-me de ficar a pensar nesta incongruência há uns anos, quando estava em Roma. Por um lado, não podemos se não lamentar a aparente indiferença para com a preservação de monumentos que agora consideramos de significado histórico e cultural insubstituível. Porém, esta mesma disposição para pilhar o passado produziu alguns dos maiores feitos de arte e arquitectura em toda a civilização ocidental.

Hoje jamais nos passaria pela cabeça arrancar nacos do Coliseu para construir uma nova igreja. Mas também não parecemos capazes de construir nada que tenha o significado e a beleza duradouras da Basílica de São Pedro. Podemos tentar manter e restaurar um edifício antigo, mas é difícil imaginar simplesmente demoli-lo, quanto mais de imaginar a nossa cultura a construir um substituto que possa rivalizar com o original, ou exceder a sua beleza intemporal e a sua magnificência original.

Naquele dia em Roma dei por mim a pensar se não existirá alguma ligação causal entre a disposição de uma cultura para largar o passado – deixar que esse passado esvaneça na memória, ou ser mesmo esquecido – e a capacidade para o tipo de criatividade e confiança necessárias para construir algo tão novo e tão magnífico como a actual Basílica de São Pedro.

O nosso mundo tem uma grande dificuldade em desligar-se do passado. Os museus que construímos para albergar coisas belas, mas também curiosas ou apenas antigas, são uma invenção relativamente recente. Os mundos antigos e medievais não tinham nada como museus, pelo menos no sentido que lhes atribuímos hoje. Sim, havia colecções de arte e de escultura, e por aí fora, mas a preservação em larga escala até dos mais pequenos artefactos do passado é um fenómeno distintivamente moderno.

Estudamos atenciosamente os detritos de eras passadas, mas, no entanto, construímos pouco que mereça ser preservado daqui a mil anos, se é que dure tanto tempo. O que criamos hoje em dia raramente é pensado para durar para sempre, ou sequer mais do que uma ou duas gerações. E não é só na arquitectura. Pensem em quanta da nossa arte e literatura contemporânea se resume ao comércio da nostalgia, sequelas e prequelas infinitas, reedições de filmes antigos, mas com efeitos especiais modernos.

Não pensem que estou a subvalorizar o passado. A memória é uma parte fundamental da existência humana, de certa forma, é a melhor parte. Agarramo-nos àquilo que amamos e estimamos, e conhecemos muito bem a dor da perda. O desejo de explorar o passado e aprender dele é perfeitamente saudável. E o anseio por preservar e sustentar o que é bom surge naturalmente, tal como o esquecimento – pelo menos daquilo que é verdadeiramente importante – é a morte de qualquer sociedade ou civilização.

Ainda assim, não consigo se não pensar que uma preocupação pouco natural com a preservação – a exagerada fixação pelas coisas boas deste mundo – anda de mão dada com uma imaginação diminuta daquilo que ainda está por vir. O horizonte da nossa experiência abre-se diante de nós e fecha atrás.

“O que foi, o que será; o que foi feito, o que será feito. Nada há de novo debaixo do sol!”. Assim fala Qohélet.

Entretanto, estamos todos presos algures no meio. A transitoriedade deste mundo, de nós mesmos e de tudo o que podemos construir e estimar, permanece como um facto teimoso da existência humana. Isso, pelo menos, não se pode atribuir aos males próprios da modernidade.

O esquecimento é, também, parte da providência divina. O esquecimento pode também ser libertador, tal como quando a misericórdia apaga o arrependimento. Talvez a nossa cultura, na qual tudo é catalogado e armazenado para sempre “na nuvem”, e que parece nunca se esquecer de nada excepto aquilo que é importante, tivesse a ganhar com o esquecimento de algumas coisas, ou com a contemplação de algumas novas.

O Advento é um bom tempo para reflectir sobre tudo isto. Durante o Advento a Igreja recorda-nos do fim de todas as coisas enquanto se prepara para a celebração da única coisa genuína e radicalmente nova que aconteceu em toda a história da criação. Que alegria em poder contemplar aquela criança na manjedoura! É o suficiente para nos abandonarmos nas mãos de Deus e esquecer tudo o resto.


Stephen P. White é investigador em Estudos Católicos no Centro de Ética e de Política Pública em Washington.

(Publicado em The Catholic Thing no Domingo, 17 de Dezembro de 2023)

© 2023 The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de reprodução contacte: info@frinstitute.org

The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing

Friday 15 December 2023

Devem os bispos meter-se em política? Tolentino é Prémio Pessoa 2023

Esta semana houve novos dados sobre a questão dos abusos na Igreja em Portugal, com o Grupo Vita a revelar alguns números. A falta de detalhes dos dados revelados impede-me de usar estes números para actualizar as minhas tabelas e listas, porque não tenho como saber se não se tratam de casos duplicados. Na mesma altura, o novo Patriarca de Lisboa afirmou que não pode haver vítimas de primeira e de segunda, e que se as vítimas da Igreja devem ser indemnizadas, então as vítimas do resto da sociedade também.

Na véspera, o JN publicou um artigo em que tenta explicar quantos dos padres que foram originalmente afastados cautelarmente por constarem das listas da Comissão Independente já foram reintegrados, e quantos continuam afastados. O artigo consegue a proeza de dar números gerais correctos, mas com base em números parciais errados. Neste artigo eu desmonto a questão, mostrando onde estão os erros dos números do JN, mas também a explicar que é exactamente por esta razão que a Igreja devia tomar a iniciativa de ter e fornecer dados centralizados e tratados de forma homogénea.

O artigo do The Catholic Thing desta semana explica como alguns católicos apoiaram o regime da Nicarágua que agora se voltou contra a Igreja com toda a sua força. São detalhes interessantes e lições importantes a reter, e na semana passada disse neste boletim que os bispos da Baviera, na Alemanha, tinham condenado o partido Alternativa para a Alemanha, o que gerou alguma polémica na caixa dos comentários. O que estas duas notícias têm em comum é o envolvimento da Igreja no campo da política partidária. Neste artigo publicado hoje, partilho alguns pensamentos sobre essa questão, deixando ainda algumas ideias sobre a realidade portuguesa, numa altura em que nos preparamos para as novas campanhas políticas e eleições. Leiam e juntem-se à discussão.

Continua a terrível guerra no Médio Oriente. A paróquia católica de Gaza foi novamente atingida, desta vez por estilhaços de bombas que causaram alguns danos materiais. Felizmente há quem esteja a prestar apoio material aos cristãos em Gaza e no resto da Terra Santa, que também estão a sofrer os efeitos deste conflito. Saiba tudo aqui. E se querem dar uma ajuda material mais imediata, vejam como aqui.

E soube-se hoje que D. Tolentino Mendonça venceu o Prémio Pessoa deste ano, um dia depois de ter proferido na Assembleia da República uma conferência sobre a liberdade religiosa, dizendo que é fundamental “escutar a sabedoria das religiões”.

Numa notícia algo curiosa, o bispo da Guarda, D. Manuel Felício, anunciou que pediu ao Papa Francisco que aceite a sua resignação, três anos antes da idade limite dos 75 anos, para que se possa dedicar a uma missão fora da diocese.

Termino com uma recomendação. Se é aluno, pai ou professor, e se preocupa com quem dá formação sobre educação sexual nas nossas escolas, então sigam este link para conhecer uma organização de confiança que trabalha neste campo. São iniciativas destas, mais do que petições ou constantes lamúrias, que conseguem realmente mudar alguma coisa no terreno.

Por hoje é tudo. Não sei ainda se volto para a semana, mas caso não o faça, ficam desde já os desejos de um Santo Natal!

Thursday 14 December 2023

Bispos e política, falar ou não falar?

Causou alguma polémica a notícia de que dei conta a semana passada de que os bispos da Baviera tinham denunciado o partido Alternativa para a Alemanha (AdF), que muitos consideram ser de extrema-direita.

Embora alguns tenham considerado que o facto de eu divulgar a notícia constituía apoio da decisão, a verdade é que eu não sei mesmo o que pensar sobre este assunto. É, sem dúvida, um terreno muito complicado.

Entretanto, acabei de publicar ontem um artigo do TheCatholic Thing que explica como o regime da Nicarágua, que tem perseguido de forma implacável a Igreja Católica, chegou ao poder com o apoio de muitos católicos, que chegaram a desempenhar cargos no Governo.

Sem dúvida, a intervenção da Igreja na política é um campo difícil e pantanoso. Normalmente os pântanos evitam-se, mas quando é preciso ir para lá – e às vezes é preciso – deve-se caminhar com o maior cuidado para não se afundar no lodo.

Se é verdade que não tenho uma posição firme sobre este assunto, tenho certamente várias ideias soltas que acho que podem contribuir para uma discussão interessante, a que vos convido a dar seguimento na caixa de comentários* ou nas redes sociais.

  • Os primeiros interessados em que os bispos se mantenham calados sobre questões de política partidária são os políticos. Talvez seja mesmo uma das coisas que mais une a esquerda e a direita.
  • Pelo contrário, acho que os bispos têm não só o direito como mesmo o dever de falar de política, sobretudo para alertar os fiéis para políticas, medidas ou propostas que sejam claramente contrárias à doutrina e aos valores cristãos.
  • Obviamente, este zelo dos bispos pelo bem-comum deve-se aplicar tanto à direita como à esquerda. Quando isso não acontece, os bispos perdem credibilidade e expõem-se a críticas que acabam por desviar a discussão daquilo que é essencial.
  • A Igreja alemã tem um historial recente louvável de intervenção pública e denúncia de políticas anticristãs. Foi firme, e sofreu devidamente, durante o regime nazi. Isso está muito bem documentado. Esse é um legado que honra os católicos alemães.
  • Há uma tendência hoje em dia para confundir direita populista com extrema-direita. Existem ligações, mas não são a mesma coisa. Eu não sei se a AdF é de extrema-direita ou não, mas aceito que os bispos da Baviera sintam que existe uma ameaça suficientemente grande para que deva ser denunciada. Agora, a AdF é a única força partidária que defende posições anticristãs? Todos os outros partidos na Alemanha defendem posições compatíveis com a doutrina católica? Tenho sérias dúvidas. A solução não é os bispos estarem calados, é os bispos falarem, mas falarem de tudo, e não apenas da ameaça mais recente ou mais premente.

E em Portugal?

Estamos a meses das eleições e os partidos preparam-se para entrar em campanha. Devem os bispos falar sobre a previsível subida da direita populista em Portugal? Podem fazê-lo sem falar sobre os perigos de reeleger uma esquerda supostamente moderada, mas que continua a insistir em presentear-nos com medidas perigosíssimas como a lei da autodeterminação de género nas escolas, a eutanásia e o aborto?

A questão, a meu ver, é que a Igreja em Portugal parece distinguir entre os partidos do sistema – com os quais tem anos de ligação, diálogo e experiência, e que por isso considera serem “seguros”, ainda que discorde e se pronuncie pontualmente sobre certas políticas isoladas – e os partidos “antissistema”, especialmente os novos. No caso da direita populista, por exemplo, acresce o facto de alguns tentarem apresentá-lo como estando alinhado com os valores católicos. Eu percebo que para os bispos seja mais fácil alertar contra esses partidos novos, e pessoalmente não acho mal que o façam, mas acho que estamos num ponto em que não podem continuar a confiar cegamente nos partidos “do sistema” que continuam a inquinar o mesmo, tornando-o impróprio para consumo, alimentando assim a impaciência e a revolta que fazem subir os partidos populistas e extremistas.

Pessoalmente, gostava de ver bispos com coragem de criticar abertamente as políticas anticristãs do populismo da direita e da esquerda, mas que critiquem com igual vigor as políticas dos partidos supostamente moderados que continuam a destruir a família, a impor uma cultura da morte e a tratar os nossos filhos como matéria-prima para formatação ideológica.

É possível fazer isto? Não é certamente fácil. Mas talvez se os bispos demonstrassem vontade firme de criticar as medidas e propostas condenáveis de qualquer partido, mesmo que isso implique criticá-los a todos, elogiando as medidas que verdadeiramente promovem o bem comum e os valores cristãos, ainda que isso implique elogiar medidas em todos os partidos, isso leve os próprios partidos a passar a tomar em consideração a possível reacção da Igreja – como força formadora de consciências – quando elaboram e anunciam os seus programas políticos.

Utópico? Talvez. Mas se não acreditarmos que há uma saída deste lamaçal, então só nos resta o desespero, e o desespero transformado em votos costuma dar muito mau resultado.  


* Há algum tempo que adoptei a prática de não entrar em diálogo com autores de comentários anónimos. Eu assumo tudo o que escrevo e digo, espero o mesmo de quem quer conversar comigo. 

Wednesday 13 December 2023

As raízes jesuítas da guerra contra a Igreja na Nicarágua

Robert W. Shaffern

Desde Agosto que o governo Sandinista declarou guerra à Igreja Católica no pequeno país centro-americano da Nicarágua. Bispos e padres têm sido detidos ou exilados. O Governo congelou as contas bancárias e pensões de padres. A Universidade da América Central (UAC), uma instituição católica, foi confiscada e acusada de servir de centro de treino para terroristas. O regime sandinista tem ignorado as repreensões de figuras da Igreja e de Governos de todo o mundo e parece determinado a erradicar a Igreja Católica do seu território. O presidente sandinista Daniel Ortega quer criar uma Nicarágua onde só cabem as opiniões do Estado.

Para sua grande vergonha, algumas figuras da Igreja Católica da Nicarágua contribuíram significativamente para esta catástrofe, cujas sementes têm estado a germinar desde a conclusão, em 1979, da guerra civil brutal e sangrenta que sacudiu o país durante uma década. Nesse ano os bolcheviques sandinistas expulsaram os últimos membros da dinastia ditadora Somoza do país. Muitos membros do clero católico apoiaram os sandinistas, especialmente membros da ordem jesuíta.

Em vésperas da II Guerra Mundial os jesuítas aumentaram a sua presença na América Central. Em 1937 a Sociedade de Jesus criou a vice-província da América Central, separando-a da região administrativa do México. O Padre Pedro Arrupe Gondra, superior geral da Sociedade de Jesus entre 1965 e 1983, elevou a vice-província a província plena em 1976, quando a guerra civil da Nicarágua estava no seu auge.

Na sua tentativa de aliviar o sofrimento das massas de pobres naquela região, e preocupados em evitar o surgimento de um regime comunista, os jesuítas que trabalharam na América Central durante as décadas de 1940 e 1950 promoveram a formação de partidos e movimentos democratas-cristãos semelhantes aos que foram criados na Europa depois da II Guerra Mundial. Uma grande contribuição para esta missão aconteceu em 1960, quando os jesuítas fundaram a Universidade da América Central. Ironicamente, foi a família Somoza que doou o terreno onde viria a ser construída a única universidade privada da Nicarágua.

Durante os anos 60 e 70, porém, os jesuítas da América Central foram-se aliando cada vez mais à extrema-esquerda, seguindo os passos de figuras oitocentistas como Abbé Sieyès e Talleyrand. Foram arautos e aliados da vitória dos comunistas sandinistas. Aliás, muitos jesuítas chegaram a desempenhar cargos importantes no regime sandinista, incluindo os irmãos Fernando e Ernesto Cardenal, Miguel D’Escoto e Edgar Parrales, que foram todos teólogos da libertação que apoiaram a revolução armada contra o regime Somoza.

Depois de 1979, todos eles ocuparam posições no governo. Fernando Cardenal foi ministro da Educação (que obviamente promovia propaganda do regime), Ernesto Cardenal foi ministro da Cultura (igualmente propagandística), e D’Escoto foi Ministro dos Negócios Estrangeiros.

Por sua parte, Arrupe apelou a uma espécie de ralliement na Nicarágua, parecida com a do Papa Leão XIII, quando este pediu aos católicos franceses, em 1892, para não rejeitarem os governos anticlericais da III República Francesa. Arrupe pediu aos jesuítas e a outros para dar o seu “generoso apoio” aos sandinistas. Porém, Arrupe tinha algumas reservas em relação aos comunistas, e dizia que estes também deviam ser criticados quando necessário.

Infelizmente, um estudo feito pela UAC no final dos anos 90 encontrou pouco para criticar no Governo. Os jesuítas receberam os sandinistas de braços abertos.

João Paulo II de dedo em riste a 
repreeender Ernesto Cardenal
A resposta mais firme a estes jesuítas sandinistas veio do Papa João Paulo II, que os fez ver que segundo o cânone 285 do Direito Canónico, um padre não deve ocupar cargos políticos. Em 1985 os jesuítas expulsaram Fernando Cardenal, sob pressão do Vaticano, mas ainda assim ele manteve-se como Ministro da Educação e continuou a viver numa residência jesuíta em Manágua.

Os jesuítas reabilitaram-no em 1997, depois de ter repetido o noviciado. Tal como um moderno Georges Danton (que virou de apoiante para opositor do Reino de Terror francês), Cardenal acusou o movimento sandinista de corrupção, e renunciou a sua ligação ao mesmo em 1994.

À medida que o tempo foi passando, a brutalidade do regime de Ortega foi-se tornando cada vez mais evidente. Ortega perdeu a eleição de 2001, mas não se retirou da política. Pelo contrário, arregimentou os seus apoiantes e acabou por regressar à presidência. Apenas cinco anos mais tarde, com o apoio de alguns líderes católicos, foi reeleito presidente da Nicarágua. Desta vez, muitos padres foram significativamente menos acolhedores do que tinham sido em 1979, mas Ortega continuou a gozar de algum apoio. O jornal dos estudantes da UAC não o apoiou directamente, mas a linha editorial continuou a revelar simpatia para com os sandinistas.

Contudo, nem todo este apoio católico impressionou Ortega, que manipulou cinicamente os seus aliados na Igreja. Quando alguns líderes católicos manifestaram o seu desagrado com o facto de ele ter uma amante, decidiu casar. Claro que o casamento não foi realizado por arrependimento dele, ou da sua amante, mas apenas para conseguir mais apoio de católicos de esquerda. Estes foram na conversa.

No final dos anos 60 o filósofo italiano Augusto del Noce avisou que o catolicismo progressista estava num beco sem saída, porque na coligação entre os católicos e os esquerdistas o elemento progressista, que rejeita os ensinamentos básicos do catolicismo sobre a pessoa, predominaria. Sob pena de terem de abdicar dos seus objectivos utópicos no campo da política, economia e sociedade, os marxistas não tinham como não perseguir e suprimir a Igreja Católica. O marxismo rejeita totalmente as realidades transcendentais que o Cristianismo entende como sendo o fundamento de tudo o que existe, bem como a esperança última da raça humana.

O guião deste drama infeliz já tinha sido encenado na Revolução Francesa. O pai de todos os movimentos de esquerda da civilização ocidental, o jacobinismo, tentou erradicar o Catolicismo. Os jacobinos Robespierre, Danton, St. Just e outros, enviaram milhares de católicos para a guilhotina entre 1793 e 1794 por considerarem que a sua religião fomentava a superstição, a credulidade e a intolerância. Ser católico era – alegavam – rejeitar o patriotismo. Mais tarde movimentos semelhantes, como o bolchevismo, seguiram o mesmo caminho.

A Igreja na Nigarágua está apenas a colher o que os jesuítas e os teólogos da libertação semearam.


Robert W. Shaffern é professor de história medieval na Universidade de Scranton. Também lecciona cursos de civilizações antigas e bizantinas, bem como sobre o Renascimento Italiano e a Reforma. É autor de The Penitents’ Treasury: Indulgences in Latin Christendom, 1175-1375.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na sexta-feira, 8 de Dezembro de 2023)

© 2023 The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de reprodução contacte: info@frinstitute.org

The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing.

Monday 11 December 2023

Abusos. O artigo da JN e a falta que faz a centralização de dados

Foi hoje publicado um artigo do Jornal de Notícias sobre o número de padres provisoriamente afastados devido às listas da Comissão Independente, e os que já foram reintegrados. O artigo está aqui, mas é só para assinantes.

Infelizmente, também esta mais recente tentativa de sistematizar os dados sobre este assunto tem vários erros. Já lá irei, mas antes quero dizer que é exactamente por isto que faz falta um ponto onde se possam encontrar estes dados centralizados e tratados. Esse ponto pode, e deve, ser a Coordenação das Comissões Diocesanas, mas recordo que da última vez que esse organismo produziu uma sistematização de dados estava também cheio de erros, como expliquei aqui.

No fundo isto é bastante simples: enquanto as dioceses continuarem a pensar que estes assuntos devem ser tratados unicamente a nível local, vamos ter este problema. Cada diocese trata os dados à sua maneira; uns comunicam, outros não e quando são pedidos números, mesmo pela Coordenação das Comissões Diocesanas, algumas enviam números errados.

A consequência é que os números errados entram no circuito, voltam a aparecer nas pesquisas, são reciclados por jornalistas sem tempo/paciência/capacidade para os verificar melhor e cria-se um ruído que é o oposto daquilo de que precisamos, num assunto que pede transparência.

Às dioceses, volto a pedir que levem a transparência a sério. Não é preciso publicar dados pessoais ou nomes, mas tenham, em local acessível, a informação essencial: Quantos processos têm a decorrer; Quantos padres estão envolvidos; Quais as medidas que foram aplicadas; Quais as sentenças dos processos canónicos; Quais as sanções para os que foram condenados. Quando houver uma novidade, como o arquivamento de um caso, façam um comunicado. Este não serve apenas para divulgar os factos, mas deixa também um registo para consulta futura. A ideia com que se fica é que o cuidado todo com a transparência na altura do relatório e das listas foi só para inglês ver, quando estava tudo de olhos voltados para a Igreja, e que agora tenta-se fazer tudo pela calada. Não caiam nesse erro.

Olhando para este artigo em particular, a dada altura a jornalista diz que de Lisboa, Porto, Braga e Guarda só o Porto é que respondeu às perguntas feitas pelo jornal. Como é que isto é possível? Eu sou jornalista e sei bem que muitas vezes as perguntas são feitas “para ontem” e que isso pode ser difícil. Não sei como foi neste caso em particular, mas não se pode aceitar que apenas uma em quatro dioceses tenha respondido em tempo útil a um pedido de imprensa sobre um tema desta importância.

Aos jornalistas, peço que verifiquem sempre os dados. Infelizmente, por vezes nem nos números oficiais se pode confiar sem confirmar. Eu tenho tido o cuidado de publicar neste blog todos os dados, com o maior rigor possível. Tanto quanto sei, esta é actualmente a melhor fonte de dados que existe sobre o problema dos abusos em Portugal. Usem-no. É para isso que serve. Mas não confiem apenas em dados reciclados de outras fontes, porque o mais natural é conterem erros também.

Os erros do JN

Vamos agora ao artigo do JN. Vou abordar os principais dados incluídos no artigo, e apontar os respectivos erros.

Padres afastados: O artigo diz que houve um total de 14 padres afastados cautelarmente por via das listas dadas às dioceses pela Comissão Independente. Este número está correcto, embora resulte da soma de dados errados, como veremos adiante.

Padres reintegrados: O artigo diz que um total de oito destes 14 padres foram, entretanto, reintegrados. Este número está correcto, embora resulte da soma de parcelas erradas. Por exemplo, o artigo diz que dois dos quatro padres de Lisboa foram reintegrados, quando na verdade foram três. Adiante veremos as dioceses caso a caso.

Padres ainda afastados: O artigo diz que seis padres continuam afastados. Mais uma vez, este número está correcto, embora resulte da soma de parcelas erradas, novamente o caso de Lisboa, onde um padre se mantém afastado, e não dois.

O artigo refere, a dada altura, que seis padres do Porto, Guarda e Lamego, que estavam afastados, foram reintegrados. Estes seriam três do Porto, um da Guarda e dois de Lamego. Contudo, nenhum padre de Lamego foi afastado. Os dois padres que estavam na lista da Comissão Independente foram sujeitados a uma investigação preliminar que concluiu pelo arquivamento dos seus processos, sem nunca terem sido afastados. O mesmo aconteceu a um padre que estava erradamente na lista de Bragança, mas que era de Lamego. Os dados relativos à Guarda estão correctos, e os dados relativos ao Porto também devem estar, uma vez que esta foi a única destas dioceses que respondeu ao JN. A Actualidade Religiosa ainda não tem confirmação independente disso, mas deverá ter em breve, mas por enquanto vou-me fiar no que diz a JN, pois parece-me credível que assim seja.

Em relação a Lisboa, como já vimos, o artigo diz que dos quatro que foram afastados, dois permanecem e dois foram reintegrados. Este número está errado. São três os que já foram reintegrados e um que se mantém afastado.

O artigo do JN diz ainda que em Évora, Braga e Angra os padres que foram afastados continuam nesse estado. Isto bate certo com os meus dados, representando um total de quatro padres, dois de Angra e um cada para Évora e Braga.

Por fim, o artigo refere que em Viana do Castelo um padre foi dispensado pela Santa Sé. Presume-se que isso signifique dispensado do estado clerical. Contudo, não se compreende a referência a este caso, uma vez que o padre em questão não constava da lista da Comissão Independente, pelo que é confuso ser mencionado no artigo, pois a inferência que o leitor retira é de que se trata do único elemento da lista da Comissão Independente que estava vivo na altura, e que era já idoso, não estando, portanto no activo, mas não tendo sido afastado.

Assim, olhando para os dados apresentados no artigo do JN, os padres que foram afastados por estarem nas listas da Comissão Independente seriam: Porto – 3; Guarda – 1; Lamego – 2; Lisboa – 4; Évora – 1; Braga – 1; Angra – 2; Viana do Castelo – 1.

Somando, obtemos 15, o que não bate certo com o número de 14 referido no artigo. Mais, como já vimos, os dados relativos a Viana do Castelo e a Lamego estão errados, o que deixa apenas 12.

Os dois padres que faltam, para a soma estar correcta, são um de Viseu, que já se encontrava afastado quando saiu a lista dessa diocese, mas que constava da mesma, e um de Vila Real, sobre o qual existiu alguma confusão, pois tratava-se de um padre originalmente de Setúbal e apesar de ter sido de imediato afastado do ministério, demorou algum tempo até que Roma interviesse para determinar em que diocese o seu processo deveria ser tratado canonicamente.

Como estão a ver, isto não é fácil. São muitos dados, muitas variáveis, mas é possível ter números rigorosos. Aqui na Actualidade Religiosa continuarei a fazer o que estiver ao meu alcance para apresentar sempre os dados mais fiáveis.


Veja também: 

Cronologia dos casos de abusos sexuais na Igreja em Portugal

O que sabemos das listas dos abusadores compostas pela Comissão Independente

Abusos em Portugal – O que já sabemos, o que falta saber

Thursday 7 December 2023

Votos na Baviera e Colonatos na Terra Santa

Não votarás na extrema-direita - Marx
A semana passada escrevi um texto sobre a retirada do apartamento e do estipêndio ao Cardeal Raymond Burke, que gerou alguma conversa. O texto original está aqui, e ainda está a valer, mas entretanto o The Pillar diz que soube que o cardeal foi informado por escrito de que teria de começar a pagar uma renda ao valor do mercado pelo seu apartamento, ou sair até final de Fevereiro de 2024. Segundo o site, a carta nada dizia sobre o estipêndio, mas parece que o cardeal já começou a procurar outra residência porque quer permanecer em Roma.

Ao longo dos últimos anos temos assistido a alguma tensão no campo da religião e da política, com as diferentes Igrejas e religiões a reagir à subida da direita populista em vários países. Recentemente vimos a eleição na Argentina de um homem que considera que o Papa Francisco é comunista, e agora temos os bispos da Baviera, o coração do catolicismo alemão, a declarar que um católico não pode, em consciência, votar no partido Alternativa para a Alemanha, de extrema-direita. É sem dúvida um assunto que ainda vai dar muito que falar, possivelmente até aqui em Portugal.

Continua em força a ofensiva israelita em Gaza. A minha amiga Catarina Santos, da Renascença, traz-nos esta bela reportagem sobre a vida dentro de um colonato judeu nas Cisjordânia que vale a pena verem. Isto enquanto o Papa continua a apelar, incansavelmente, pela paz, apesar do cansaço físico causado pela doença.

Já todos sabemos que os novos padres tendem a ser mais conservadores que a geração anterior. Isto preocupa uns e anima outros, mas um novo estudo aprofundado feito nos Estados Unidos demonstra que a realidade é mais complexa do que parece. No mais recente artigo do The Catholic Thing em português, Stephen P. White explica que os dados mostram uma nova geração de padres mais conservador em termos teológicos que a geração dos anos 60 e 70, sim, mas também mais moderado em termos políticos do que a geração imediatamente anterior e, o que é também importante, etnicamente mais diverso do que qualquer outra geração de padres desde antes do Concílio Vaticano II. É verdade que são dados relativos aos EUA, mas eu acredito que pode haver aqui paralelos importantes, e interessantes, com Portugal. Leiam que vale bem a pena e partilhem as vossas opiniões.

Estamos no Advento, um excelente tempo para aprofundar a oração. Rezemos pela paz no Médio Oriente, rezemos pelos padres, novos e velhos, e se tiverem um minuto rezem por mim e pela minha mulher, que fazemos amanhã 18 anos de casados. Tem sido cada ano melhor que o outro, e os que virão serão melhores ainda, com a Graça de Deus!

Wednesday 6 December 2023

Esperança numa nova geração de padres

No passado mês de Outubro o The Catholic Project, que eu dirijo na Universidade Católica da América, publicou os primeiros resultados da maior sondagem sobre padres católicos americanos em mais de 50 anos, o Estudo Nacional de Padres Católicos (ENPC). O primeiro relatório olhava para várias questões, incluindo se os padres estão ou não a ser bem-sucedidos (estão) e como é que a crise dos abusos, e a resposta da Igreja a essa crise, têm afectado os níveis de confiança entre padres e bispos (tem, sim, de forma negativa).

Em Novembro a nossa equipa publicou um segundo relatório, demonstrando algumas perspectivas adicionais da ENPC, olhando mais de perto para a polarização intergeracional entre o presbiterado.

Os padres mais velhos tendem a descrever-se mais como teologicamente “progressistas” e politicamente “liberais” enquanto os mais novos tendem a descrever-se como sendo teologicamente “ortodoxos” e politicamente “conservadores”.

O resultado em si não é especialmente surpreendente. Temos visto sinais a apontar nesta direcção há décadas, e estudos recentes sobre padres americanos têm demonstrado uma tendência conservadora semelhante entre jovens padres. É de notar que recentemente tanto o Papa Francisco como o Cardeal Christophe Pierre indicaram que Roma está inquieta com aquilo que considera ser uma tendência conservadora entre o clero americano mais novo.

Resumindo, o nosso estudo demonstra com provas concretas aquilo que já todos sabiam: os padres jovens americanos tendem a ser mais conservadores que os seus pares mais velhos. Mas há mais. Parece que a narrativa de que o presbiterado americano está a ser tomado de assalto por jovens conservadores não é tão simples como possa parecer à primeira vista.

Em primeiro lugar, mais do que um dilúvio triunfante de vocações conservadoras, o que os nossos dados demonstram é um colapso quase total de vocações sacerdotais entre homens que se consideram teologicamente progressistas ou politicamente liberais. Mais, esse colapso não é repentino ou recente, mas parece ser constante e contínuo, radicando nas coortes que foram ordenadas logo a seguir ao Concílio Vaticano II. Se eu fosse bispo, ou director vocacional, quereria muito poder compreender melhor este colapso.

Uma possível explicação pode ser encontrada numa homilia feita pelo já falecido Cardeal Francis George. Um quarto de século mais tarde, as suas palavras mantêm uma relevância surpreendente:

O Catolicismo Liberal é um projecto cansado. Essencialmente uma crítica, uma crítica até necessária em dada altura da nossa história, tornou-se agora parasítica de uma substância que já não existe. Revelou-se incapaz de passar a fé na sua integridade, e por isso desadequada para fomentar a entrega alegre que é pedida no casamento cristão, na vida consagrada e no sacerdócio ordenado. Já não vivifica.

Note-se que o Cardeal George disse “cansado” e não “morto”. Justamente, pode-se dizer que os anos recentes demonstraram que as notícias da morte do catolicismo liberal têm sido muito exageradas. Não obstante, se o cansaço do catolicismo liberal explica, pelo menos em parte, a quebra de vocações de certas alas na Igreja, o aviso que o Cardeal George faz sobre certo tipo de “Catolicismo conservador” é igualmente pertinente. “A resposta, porém, não se encontra num tupo de catolicismo conservador obcecado com práticas particulares e tão sectária na sua mundivisão que não pode servir de sinal de unidade para todos os povos em Cristo”.

Jesuítas americanos ordenados em 2023

Aqui, o nosso estudo revela um desvio significativo (e, penso eu, encorajador) da narrativa comum do colapso liberal e avanço conservador entre o clero. Enquanto que os padres mais novos têm muito mais tendência para se verem como politicamente conservadores do que os seus pares mais velhos, a coorte mais nova de padres americanos é também a que tem mais probabilidade de se descrever como politicamente moderada. Se a política fosse uma força motriz significativa por detrás das vocações sacerdotais “conservadoras”, então esperar-se-ia que os dados fossem bastante diferentes.

Junte-se a isto o facto de a coorte mais nova de padres ser também a mais diversa, étnica e racialmente, de todas as que sondámos e aquilo que emerge é um retrato de jovens padres americanos que contradiz muitos estereótipos persistentes. Os jovens padres americanos são mais teologicamente ortodoxos, politicamente moderados e etnicamente diversos do que qualquer coorte de padres desde antes do Concílio Vaticano II.

Se estivéssemos à procura de padres que pudessem evitar o “cansaço do catolicismo liberal” e ao mesmo tempo evitar formas de conservadorismo “obsessivo” e “sectário” – se estivéssemos com esperança de encontrar padres que fossem “sinal de unidade de todos os povos em Cristo” – então provavelmente procuraríamos uma geração de padres que, pelo menos no papel, fosse muito semelhante à geração de padres mais novos que temos hoje nos Estados Unidos.

Mas o sacerdócio, como todas as vocações, não se desenrola no papel. Tem de ser vivido por entre todas as armadilhas do mundo. Contudo, o Cardeal George também tinha algo a dizer sobre isso na sua homilia:

A resposta é, simplesmente, o Catolicismo, em toda a sua plenitude e profundidade, uma fé capaz de se distinguir de qualquer cultura e de se envolver com todas, transformando-as, uma fé alegre em todos os dons que Cristo nos quer dar e aberta a todo o mundo que ele morreu para salvar. A fé católica molda uma Igreja com muito espaço para diferentes abordagens pastorais, para discussão e debate, para iniciativas tão variadas como os povos que Deus ama. Mas, mais profundamente, uma Igreja capaz de distinguir entre aquilo que encaixa na tradição que a une a Cristo e o que é uma falsa partida ou uma tese distorcida, uma Igreja unida aqui e agora, porque é sempre una com a Igreja pelos séculos e com os santos no Céu.

O Cardeal Francis George viu claramente o que significa ser fiel, mas também unido em tempos de conflito e divisão. Os nossos jovens padres – bem como o resto de nós todos – devem ter em conta a sabedoria das suas palavras.


Stephen P. White é investigador em Estudos Católicos no Centro de Ética e de Política Pública em Washington.

(Publicado em The Catholic Thing na Quinta-feira, 30 de Novembro de 2023)

© 2023 The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de reprodução contacte: info@frinstitute.org

The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing

Friday 1 December 2023

Castigos, pastéis e ex-soviéticos a pagar o preço do ateísmo

O Papa Francisco está doente, tendo por isso cancelado a viagem que estava planeada para o Dubai. Felizmente isso não o impediu de receber esta quinta-feira, em Roma, uma delegação de organizadores da JMJ de Lisboa. Devido à sua doença, o discurso do Papa foi lido por outro, mas Francisco teve forças para falar de improviso e até brincou com os presentes, dizendo que tem saudades dos pastéis.

E Francisco não vai estar no COP28, mas continua a ser uma inspiração para os ambientalistas.

Esta semana começou a circular a notícia de que o Papa Francisco vai castigar o Cardeal Burke, retirando-lhe o apartamento e o estipêndio em Roma. Quem é o cardeal Burke? Porque é que vai ser castigado? E esse castigo faz sentido? A história está bem contada? Os factos e a minha análise estão aqui.

O Tribunal de Justiça da União Europeia decretou na terça-feira que os governos nacionais podem impor um ambiente de trabalho “neutro” do ponto de vista religioso, exigindo aos seus funcionários a não utilização de símbolos de fé, como crucifixos, quipás ou véus islâmicos. Mais uma machadada na liberdade religiosa na Europa, explicada neste texto que eu escrevi há mais de dez anos.

A Rússia foi um dos países em destaque no recente “Meeting Lisboa” do movimento Comunhão e Libertação. Durante esse evento conversei com Elena Zhemkova, da Associação Memorial, que se dedica a recolher testemunhos de vítimas do sistema soviético. Nesta entrevista ela explica que os países da ex-URSS continuam a pagar o preço pela guerra contra a fé. Falei também com Marta Dell’Asta, que trabalha para uma organização italiana que promove o cristianismo na Rússia. Falou sobre o estado da Igreja Ortodoxa Russa na actualidade, e sobre se a conversão da Rússia, prometida em Fátima, já se realizou ou não.

Uma excelente notícia chega do Mali, onde o padre Hans-Joachim, raptado há mais de um ano, foi libertado.

Em Agosto aconteceu um dos piores episódios de perseguição aos cristãos na história recente do Paquistão. Para o cardeal Sebastian Shaw, porém, este evento marcou um ponto de viragem positiva nas relações inter-religiosas no país.

Continua a decorrer o ciclo de conversas “E Deus em Nós”, na Capela do Rato, em Lisboa. A mais recente foi com a artista Ilda David, que conta como na Escola das Belas Artes olhavam-na com estranheza porque incluía anjos nas suas gravuras.

Deus existe? Podemos ter a certeza? Mas será que a certeza é necessária? Randall Smith lança estas e outras questões essenciais no artigo desta semana do The Catholic Thing, onde desmascara o “erro de Descartes”.

Thursday 30 November 2023

O caso do castigo ao Cardeal Burke

Tem circulado esta semana a informação de que o Papa Francisco pretende castigar o Cardeal Raymond Leo Burke, retirando-lhe o apartamento onde vive no Vaticano, e o seu estipêndio. A razão por detrás do castigo será o facto de o Cardeal Burke ser um instigador de desunião na Igreja.

Existem diferentes versões do que se terá passado, que analisarei adiante. Mas antes de mais convém explicar quem é o Cardeal Burke.

O homem das Dubia

Raymond Burke é um cardeal americano. Especialista em Direito Canónico, serviu durante muitos anos na Signatura Apostolica, o tribunal canónico da Santa Sé, tendo chegado a ser prefeito da mesma. Conhecido por ser conservador, cedo no pontificado de Francisco se começou a perceber que ele não estaria alinhado com o estilo e, em larga medida, o conteúdo do mesmo.

O primeiro grande choque do cardeal com o Papa foi depois da publicação do Amoris Laetitia, em que Burke, juntamente com outros três cardeais – dois dos quais já morreram – endereçaram ao Papa uma série de perguntas, pedindo respostas na forma de “Sim” ou “Não”, conhecidas como “Dubia”. A questão das dúbia tornou-se uma autêntica novela, com o Papa a recusar responder e os cardeais a divulgar publicamente as questões que tinham feito, e o facto de terem ficado sem resposta.

Burke também se opôs ao Sínodo sobre a sinodalidade, que se realizou em Outubro, tendo participado num evento paralelo, organizado por opositores ao Papa Francisco, em Roma, chamado “A Torre de Babel Sinodal”.

Mais recentemente Burke voltou a enviar umas dubia ao Papa, acompanhado agora de outros quatro cardeais, incluindo Brandmüller, sobrevivente da primeira volta. Desta vez o Papa respondeu, em texto corrido, mas descontentes, os cardeais reformularam as perguntas e exigiram do Papa respostas na forma de “Sim” ou “Não”, publicando o pedido. O Vaticano publicou então as primeiras respostas, ignorando o segundo apelo.

O castigo

Depois de tudo isto, emergiu recentemente que o Papa Francisco teria dito, numa reunião com os líderes dos dicastérios em Roma, que pretendia aplicar um castigo a Burke, retirando-lhe o apartamento e o salário.

Nas versões que circulam em sites tradicionalistas, o Papa é citado como tendo dito “Burke é meu inimigo, por isso vou retirar-lhe o apartamento e o estipêndio”. Segundo as fontes mais credíveis que eu tenho conseguido consultar, esta versão é falsa. O termo “inimigo” nunca foi usado. Isto é importante, porque o termo transmite a ideia de uma vingança, ou uma birra. Contudo, as medidas serão verdade, de facto, confirmado pelo próprio Papa a um dos seus mais fiéis defensores, Austen Ivereigh. O Papa, aparentemente, não queria que as medidas fossem tornadas públicas, mas alguém presente na reunião divulgou a informação.

Esta medida era necessária?

Estabelecidos os factos, vale a pena ponderar a questão. Será que a medida do Papa era necessária?

Ivereigh, sem grandes surpresas, argumenta que sim, dizendo que o Papa até já tinha demonstrado muita paciência com um cardeal que, contrariamente aos votos que faz quando é elevado ao cargo, estaria a opor-se ao seu ministério.

O voto a que Ivereigh se refere é este: “Prometo e juro permanecer, a partir de agora e para sempre enquanto tiver vida, fiel a Cristo e ao seu Evangelho, constantemente obediente à Santa Apostólica Igreja Romana. A são Pedro na pessoa do Sumo Pontífice e aos seus sucessores canonicamente eleitos.”

Segundo Ivereigh, ao propor um magistério alternativo, questionando e pondo em causa as decisões e medidas de Francisco, Burke estaria a violar esse voto.

O sistema político britânico tem um conceito muito engraçado. Quem manda no país é o “Governo de Sua Majestade” e aos seus adversários, no Parlamento, chama-se “a lealíssima oposição de Sua Majestade”. Faz falta em todo o lado, e também na Igreja, o conceito de uma oposição leal, a ideia de que é possível ser leal a alguém, e ao seu cargo, discordando, todavia, do seu rumo e até dando voz a essa discordância. Discordância não equivale a traição ou a deslealdade.

Será que isto se aplica sempre? Evidentemente não. Há dois casos na história deste pontificado que o ilustram perfeitamente. Um é o Arcebispo Viganò. Quando Viganò começou a criticar o Papa e o seu magistério, Francisco causou alguma surpresa ao recusar castigá-lo, aplicar medidas canónicas contra ele, ou sequer responder. Mas o tempo veio a dar-lhe razão, uma vez que Viganò, deixado a falar sozinho, acabou por se remeter para o espaço das teorias da conspiração e da loucura total. Mais recentemente tivemos também o caso do Bispo Joseph Strickland, que é muito claramente um homem insensato e desequilibrado, que também disparatava contra Francisco, e ainda por cima, ao que tudo indica, geria pessimamente a sua diocese. Aqui Francisco agiu – talvez tarde de mais – pedindo ao bispo que apresentasse a sua resignação, e quando não o fez, retirou-o de funções.

Burke está neste campeonato? Não acredito. Eu tive o privilégio de estar com o Cardeal Burke uma vez, em Roma, durante um curso que fiz na Universidade de Santa Croce para jornalistas. Digo privilégio, porque é sempre um privilégio estar com pessoas simpáticas e boas e Burke deixou-nos a todos com a impressão de ser uma pessoa boa, muito simpática e paciente. Isso quer dizer que eu concordo com tudo o que ele diz ou faz? Longe disso. Acho que ele está muito enganado no que diz respeito ao pontificado de Francisco, mas acho, e essa é para mim a chave, que ele é movido de intenções sinceras e que a oposição que faz é uma oposição leal, que talvez tenha sido insensato numa ou noutra ocasião, sobretudo deixando-se colar ou ser usado por forças mais radicais, mas sem nunca entrar ele mesmo em maledicência contra o Papa.

J. D. Flynn, um dos meus editores no The Pillar, dos EUA, escreveu o seguinte numa análise a esta questão: “Embora ele se pronuncie de forma aberta sobre questões eclesiásticas, como ele as entende, Burke não tem feitio para falar publicamente sobre uma desfeita pessoal – aliás, estive na sua companhia várias vezes ao longo dos últimos anos e nunca o ouvi falar mal do Papa pessoalmente, ou da sua decisão de o retirar das posições de liderança que desempenhava. Na verdade, já vi Burke ficar visivelmente desconfortável na presença de católicos que insultavam pessoalmente Francisco, em vez de criticar apenas a sua abordagem teológica ou estilo de liderança”.

Por tudo isto, acho sinceramente que o Papa teria feito melhor em não tomar a medida que tomou, ou que se prepara para tomar. Se a presença de Burke em Roma o deixa desconfortável então acredito que poderia ter pedido ao cardeal americano para regressar ao seu país, o que não seria escândalo ou surpresa, uma vez que Burke já fez 75 anos e por isso está na idade da reforma, e ainda por cima tem família e um santuário do qual é reitor nos Estados Unidos, portanto teria o que fazer e com quem estar.

É verdade que Burke é fonte de desunião? Eu diria antes que é verdade que a Igreja está desunida – não há como o negar – e que Burke é uma das figuras dessa desunião, mas ainda assim é das figuras com quem se pode dialogar de forma fraternal. Castigá-lo, de uma forma que facilmente pode ser interpretada – bem ou mal – como vingativa, não só não resolve a questão da desunião, como a agrava, pois transforma-o em vítima e permite aos opositores pintar Francisco como um homem vingativo que prega a misericórdia, mas não a pratica.

Uma questão acessória

Há uma outra questão que aparece associada a esta: Faz sentido um cardeal sem cargos que exijam a sua presença permanente na Santa Sé continuar a viver no Vaticano, num apartamento luxuoso subsidiado e com ordenado de mais de cinco mil euros por mês?

Numa altura em que tanto se critica o clericalismo, carreirismo e despesas em Roma, penso que a resposta é evidente. Acredito que seja bom para alguém que está há anos a viver em Roma poder continuar a fazê-lo depois da reforma, mas do ponto de vista de política económica do Vaticano não faz sentido nenhum.

Agora, isso aplica-se a Burke e a tantos outros que estarão nessa posição. Usar este argumento agora, especificamente para Burke, é mesquinho, até porque não foi essa a razão invocada pelo Papa para as medidas que tomou.

Se queremos discutir o que fazer a cardeais reformados, que o façamos, mas não misturemos as coisas, pois ninguém ganha com isso.

Partilhar