Stephen P. White |
A basílica que conhecemos hoje, com a sua majestosa
cúpula – a basílica de Bramante e de Miguel Ângelo e Bernini – começou a ser
edificada em 1506 e foi consagrada em 1626. Ou seja, a Basílica de São Pedro
que conhecemos hoje só existe há um terço do tempo que a sua antecessora.
Como se não bastasse a demolição de um dos mais sagrados
santuários da cristandade, o mármore usado para a fachada da nova basílica veio
de um local próximo e barato, a pedreira preferida dos romanos: o Coliseu. Os
romanos da idade média, e até bem mais tarde, nunca tiveram problemas em
reutilizar pedras de antigos edifícios e monumentos.
Retirar mármore do Coliseu pode-nos parecer hoje um acto
de vandalismo histórico e cultural, mas fazê-lo para construir algo tão
grandioso como a Basílica de São Pedro é certamente louvável quando comparado
com os outros usos que os romanos contemporâneos davam às toneladas de mármore
do Coliseu, que costumavam esmagar e queimar para fazer cal viva.
Que cultura é esta que tem a audácia de usar o Coliseu (e
não apenas o Coliseu, mas a maioria dos antigos edifícios romanos) como
pedreira? Que cultura tem a temeridade de demolir um dos edifícios mais
veneráveis do mundo, a antiga Basílica de São Pedro, mas tem também a confiança,
capacidade e visão para construir algo tão magnífico como a basílica actual?
Lembro-me de ficar a pensar nesta incongruência há uns
anos, quando estava em Roma. Por um lado, não podemos se não lamentar a
aparente indiferença para com a preservação de monumentos que agora
consideramos de significado histórico e cultural insubstituível. Porém, esta
mesma disposição para pilhar o passado produziu alguns dos maiores feitos de
arte e arquitectura em toda a civilização ocidental.
Hoje jamais nos passaria pela cabeça arrancar nacos do
Coliseu para construir uma nova igreja. Mas também não parecemos capazes de
construir nada que tenha o significado e a beleza duradouras da Basílica de São
Pedro. Podemos tentar manter e restaurar um edifício antigo, mas é difícil
imaginar simplesmente demoli-lo, quanto mais de imaginar a nossa cultura a
construir um substituto que possa rivalizar com o original, ou exceder a sua beleza
intemporal e a sua magnificência original.
Naquele dia em Roma dei por mim a pensar se não existirá
alguma ligação causal entre a disposição de uma cultura para largar o passado –
deixar que esse passado esvaneça na memória, ou ser mesmo esquecido – e a
capacidade para o tipo de criatividade e confiança necessárias para construir
algo tão novo e tão magnífico como a actual Basílica de São Pedro.
O nosso mundo tem uma grande dificuldade em desligar-se
do passado. Os museus que construímos para albergar coisas belas, mas também
curiosas ou apenas antigas, são uma invenção relativamente recente. Os mundos
antigos e medievais não tinham nada como museus, pelo menos no sentido que lhes
atribuímos hoje. Sim, havia colecções de arte e de escultura, e por aí fora,
mas a preservação em larga escala até dos mais pequenos artefactos do passado é
um fenómeno distintivamente moderno.
Não pensem que estou a subvalorizar o passado. A memória
é uma parte fundamental da existência humana, de certa forma, é a melhor parte.
Agarramo-nos àquilo que amamos e estimamos, e conhecemos muito bem a dor da
perda. O desejo de explorar o passado e aprender dele é perfeitamente saudável.
E o anseio por preservar e sustentar o que é bom surge naturalmente, tal como o
esquecimento – pelo menos daquilo que é verdadeiramente importante – é a morte
de qualquer sociedade ou civilização.
Ainda assim, não consigo se não pensar que uma
preocupação pouco natural com a preservação – a exagerada fixação pelas coisas
boas deste mundo – anda de mão dada com uma imaginação diminuta daquilo que
ainda está por vir. O horizonte da nossa experiência abre-se diante de nós e fecha
atrás.
“O que foi, o que será; o que foi feito, o que será
feito. Nada há de novo debaixo do sol!”. Assim fala Qohélet.
Entretanto, estamos todos presos algures no meio. A
transitoriedade deste mundo, de nós mesmos e de tudo o que podemos construir e
estimar, permanece como um facto teimoso da existência humana. Isso, pelo
menos, não se pode atribuir aos males próprios da modernidade.
O esquecimento é, também, parte da providência divina. O
esquecimento pode também ser libertador, tal como quando a misericórdia apaga o
arrependimento. Talvez a nossa cultura, na qual tudo é catalogado e armazenado
para sempre “na nuvem”, e que parece nunca se esquecer de nada excepto aquilo
que é importante, tivesse a ganhar com o esquecimento de algumas coisas, ou com
a contemplação de algumas novas.
O Advento é um bom tempo para reflectir sobre tudo isto.
Durante o Advento a Igreja recorda-nos do fim de todas as coisas enquanto se
prepara para a celebração da única coisa genuína e radicalmente nova que
aconteceu em toda a história da criação. Que alegria em poder contemplar aquela
criança na manjedoura! É o suficiente para nos abandonarmos nas mãos de Deus e
esquecer tudo o resto.
Stephen P. White é investigador em Estudos Católicos no
Centro de Ética e de Política Pública em Washington.
(Publicado em The Catholic Thing no Domingo, 17 de Dezembro de 2023)
© 2023
The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de
reprodução contacte: info@frinstitute.org
The Catholic Thing é um fórum de opinião católica
inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus
autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com
o consentimento de The Catholic Thing.
No comments:
Post a Comment