Saturday 31 December 2022

Morreu o Papa que surpreendeu o mundo

Este texto foi originalmente escrito como parte de um pacote a publicar na morte de Bento XVI, pela Renascença. De todos os que deixei, era o que sentia ser mais "meu". Poderá, ao longo dos próximos dias, ser publicado numa versão alterada. Publico-a aqui com autorização da Renascença, a quem agradeço.

Durante séculos os cristãos perseguiram e mataram judeus, culpando-os pela morte de Cristo. Uma frase em particular da Bíblia parecia justificar esta tese da culpa colectiva, o grito dos judeus quando Pôncio Pilates tenta livrar Jesus da crucificação: “Que o seu sangue caia sobre nós e sobre os nossos filhos”.

O Concílio Vaticano II foi enfático ao negar esta visão das coisas, mas a passagem bíblica permanece e continuava a ser usada por alguns para criar problemas e minar o diálogo entre católicos e o mundo hebraico.

Entra em cena Bento XVI, com esta passagem do II volume da sua trilogia sobre “Jesus de Nazaré”: “Mesmo que ‘todo o povo’, segundo Mateus, tivesse dito ‘que o seu sangue caia sobre nós e sobre os nossos filhos’, o cristão há de recordar que o sangue de Jesus fala uma linguagem diferente da do sangue de Abel: não pede vingança nem punição, mas é reconciliação.”

Bento XVI era, sobretudo, isto. Homem de uma inteligência brilhante e de grande perspicácia teológica, com uma fé apaixonada mas firmemente ancorada na razão. Os seus discursos e homilias tinham sempre uma grande carga de erudição mas conseguiam ainda assim manter uma simplicidade que os deixava abertos a todos, mesmo os que não se moviam com naturalidade nos meios da teologia e da filosofia.

Ao mesmo tempo, porem, o Papa alemão não era um homem mediático. Foi-se habituando, mas nunca se sentiu particularmente confortável com a atenção dos meios de comunicação social. O seu sorriso não era espontâneo, as suas intervenções não se prestavam facilmente à cultura do “soundbite” e a forma como defendia a cultura e civilização cristã, sempre com base na razão e na história e não em sentimentalismos ou saudosismos, valeram-lhe a inimizade dos media mais ideológicos.

Este último aspecto pode ser comprovado pela constante discrepância entre a cobertura mediática dos eventos do Papa e a realidade. Cada viagem de Bento XVI era precedida de augúrios de fracasso. A missa campal iria estar vazia, a população local sentia-se indiferente, os manifestantes seriam mais que os fiéis. Mas no fim, surpresa geral, dava-se o braço a torcer, porque o povo acorria a este Papa, enchia estádios e descampados e cantava o seu nome deixando-o com aquele sorriso envergonhado que o caracterizava. Mesmo os intelectuais, tanto em França como em Portugal, como os políticos, no Reino Unido e na Alemanha, aplaudiram-no longamente e com o respeito de quem reconhece que está diante de uma mente brilhante, de um professor.

“Este poder de ensinamento assusta muitos homens dentro e fora da Igreja. Perguntam-se se ela não ameaça a liberdade de consciência, se não é uma presunção oposta à liberdade de pensamento, mas não é assim. O poder conferido por Cristo a Pedro e aos seus sucessores é, em sentido absoluto, um mandato para servir. O poder de ensinar na Igreja implica um compromisso ao serviço da obediência à fé”, disse, no dia em que tomou posse da Basílica de São João de Latrão.

As viagens eram menos frequentes que as de João Paulo II, mas ainda assim significativas tendo em conta que Bento XVI tinha 78 quando foi eleito. Houve várias de grande importância, a primeira de todas enquanto Papa, à Jornada Mundial da Juventude em Colónia, em 2005; a viagem ao Reino Unido, primeira visita de Estado às ilhas britânicas de um Papa; a Jornada Mundial da Juventude em Madrid, onde debaixo de uma ferocíssima tempestade o Papa, tocado pela insistência de dois milhões de jovens que não o abandonavam, manteve-se firme dizendo aos presentes: “A vossa força é maior que a chuva”, enquanto os seus colaboradores o tentavam proteger com guarda-chuvas brancos; a ida a Cuba, uma das últimas, onde terá concluído que lhe começavam a faltar as forças para prosseguir com a missão que lhe tinha sido encarregada.

Mas a viagem a Portugal em 2010 distingue-se de todas por uma razão muito particular. O Papa chegou visivelmente cansado, alguns diriam até desanimado. Como sempre, previa-se o pior. Entre os católicos discutia-se a possibilidade de esperar o cortejo no caminho entre o aeroporto e Belém, muitos diziam que se devia abandonar a ideia porque a fraca participação popular ficaria mal na televisão. Mas em todo o percurso nunca faltou gente, bandeiras, estandartes de apoio para mostrar ao Papa que se devia sentir em casa entre os portugueses.

Depois de uma missa no Terreiro do Paço, perante centenas de milhares de pessoas, o Papa foi pernoitar à nunciatura. Os jovens, que tinham estado em grande destaque na missa campal, não o abandonaram e junto ao edifício cantaram e chamaram por ele até que veio à janela e, com um sorriso genuíno na cara, agradeceu a sua presença mas pediu que o deixassem dormir.

Foi em Portugal que Bento XVI beijou pela primeira vez um bebé em público e os vaticanistas que o acompanhavam por todo o mundo não hesitaram em dizer que depois de três dias cansativos viam partir um homem que parecia refrescado. Falar-se-ia então de um pontificado pré e pós visita a Portugal.

A injecção de energia que terá recebido era bem precisa. Na altura já havia rumores de que nem tudo ia bem no Vaticano, nomeadamente na cúria. Entre mal-estar e guerra civil, não faltavam adjectivos, mas poucos esperariam algo da dimensão do vatileaks, um escândalo que arrastou a reputação da Santa Sé pela lama e que abalou muito o Papa pelo envolvimento pessoal de um dos seus colaboradores mais próximos, o seu mordomo.

Se o vatileaks foi decisivo na sua decisão de resignar é especulação, mas contribuiu certamente para a perda da sua idoneidade física e espiritual, para usar os seus próprios termos.

Em retrospectiva, a escolha não deveria ter sido tão surpreendente assim. O Papa já tinha dito, no livro-entrevista conduzido por Peter Seewald, que aceitava a ideia de resignar se sentisse incapacidade de desempenhar a sua função. Foi recuperada também a fotografia que na altura tinha passado bastante despercebida, de Bento XVI a deixar o seu pálio, símbolo de autoridade, em cima do túmulo do Papa Celestino V, um dos poucos na história da Igreja a resignar por sentir que não era capaz.

Mas quando o Papa anunciou a sua decisão, num consistório quase insignificante e em latim, o mundo parou. Bento XVI era visto por muitos como o guardião inflexível da doutrina e da tradição e a tradição dizia que um Papa só abandona o seu posto quando é chamado pelo Criador. Afinal de contas, este era o mesmo homem que tinha dito: “O Papa não é um soberano absoluto cujo pensar e querer são leis. Pelo contrário: o ministério do Papa é a garantia da obediência a Cristo e à sua palavra. Ele não deve proclamar as próprias ideias, mas vincular-se constantemente a si e à Igreja à obediência da palavra de Deus perante todas as tentativas de adaptação, de adulteração e todo o tipo de oportunismo”.

Não deixa de ser paradoxal que um dos homens da Igreja mais inteligentes e brilhantes dos últimos séculos seja recordado para sempre por aquele que foi um dos seus últimos gestos, o de desprendimento do poder. É uma memória que não lhe faz justiça, mas talvez isso não desagradasse a Joseph Ratzinger, que nunca se mostrou muito confortável debaixo dos holofotes e que preferiria, certamente, deixar os seus livros e textos falar à história por ele.

Morreu o Papa Bento XVI

Morreu hoje o Papa Bento XVI. 

Neste espaço irei colocando links para os principais textos, reportagens e notícias que surgirem sobre ele. 

Que o Senhor lhe dê eterno descanso. Obrigado por tudo nosso querido Papa, que foste apresentado como um feroz Rottweiler, mas revelaste-te um afável Pastor Alemão.

O funeral de Bento XVI já está marcado para o dia 5 de Janeiro. O seu testamento espiritual foi divulgado pela Santa Sé e pode ser lido aqui na íntegra












Wednesday 28 December 2022

Rezemos por Bento XVI

O Papa Francisco pede-nos que rezemos pelo Papa Bento XVI, que está gravemente doente. O que significa um pedido destes para um homem frágil, de 95 anos? Rezamos pela sua cura, porque nos faz impressão que morra, ou rezamos para que morra em paz? Rezemos para que se faça a vontade de Deus e não a nossa, neste caso e sempre. É um bom princípio.

Em todo o caso, este pedido pode ser lido como um simpático aviso por parte do Vaticano de que Bento XVI está muito próximo da morte. Já haverá certamente jornalistas a marcar viagens para Roma. Da minha parte, antecipo o envio deste mail por um dia, mas prometo que, se o Papa emérito de facto morrer nos próximos dias, estarei em cima do acontecimento para vos trazer as principais notícias e os melhores textos de obituário. Para já, fiquem com este texto que eu escrevi em Fevereiro de 2013, quando ele resignou.

Olhando para a realidade internacional, mais de uma centena de clérigos e freiras foram raptados, mortos ou detidos em contexto de perseguição ao longo de 2022. São números terríveis. Podem conhecê-los melhor aqui, num texto em inglês da minha autoria, ou numa versão portuguesa.

Estão abertas as inscrições para famílias que queiram acolher jovens nas JMJ. Toda a ajuda é pouca! Não fiquem de fora.

O artigo desta semana do The Catholic Thing fala dos dons do Espírito Santo e como se desenvolvem em nós de forma gradual, quase despercebida e discreta. Assim como um bebé divino que nasce no meio do mundo, para a sua salvação.

Se vos interessam questões de justiça económica e financeira, recomendo espreitarem este evento que se vai realizar em Janeiro. Uma abordagem diferente à noção de concertação social!

Actualizei também as mais recentes declarações dos líderes religiosos sobre a Ucrânia, com interessantes textos da Igreja Ortodoxa da Ucrânia, a que está, ou estava, ligada a Moscovo, a pedir liberdade religiosa e o fim do que dizem ser um clima de perseguição movida pelas autoridades. É um tema complexo, podem ler aqui a minha análise, e os textos completos aqui.

E para quem não leu, mas tem interesse, está aqui também a minha análise da polémica envolvendo o Pe Rupnik, que tem deixado muita gente perplexa e chocada.

Os Dons do Espírito Santo

A alegria do Natal brota da dádiva que Deus faz do seu Filho à humanidade. Mas o nascimento de Cristo é apenas a primeira fase de um acto de redenção que culmina na morte, ressurreição e ascensão de Cristo ao Céu, onde está à direita do Pai, e o envio do Espírito Santo, por quem “o amor de Deus é derramado nos nossos corações” (Romanos 5,5).

A palavra “graça” vem do latim “gratia”, que significa “presente”. O maior presente de Deus para nós é o Seu Filho, e esse é o presente que nunca se esgota. No Evangelho de João, depois de Jesus ter lavado os pés dos seus discípulos, diz-lhes que deve “partir”, mas que o faz “para seu bem”. Porque se não partir, “não virá o paráclito”. Mas se Ele for, diz-nos, “enviá-lo-ei a vós” (João 16,7). Já antes Jesus tinha identificado o Paráclito como “O Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome” (João 14,26).

Se Jesus não tivesse partido, continuaríamos a procurá-lo para fazer tudo por nós – “Jesus, cura estes doentes”, “Jesus, dá de comer a estes pobres”, “Jesus, cuida de nós” – quando na verdade devemos tornar-nos membros do Corpo de Cristo. Nós somos os olhos, os ouvidos e as mãos de Cristo agora. Nós curamos os doentes, alimentamos os pobres, espalhamos a boa nova do amor de Deus, tornamo-nos instrumentos da Graça de Deus.

Tornamo-nos alter Christus, “outros Cristos”, “filhos adoptivos” do Pai. “Pois todos os que são guiados pelo Espírito de Deus, esses são filhos de Deus” (Romanos 8,14) “E, porque vocês são filhos, Deus enviou o Espírito de seu Filho aos vossos corações” (Gálatas 4,6).

O Cristianismo entende que a vida moral é uma participação na vida trina de Deus – a comunhão eterna de amor que existe desde toda a eternidade. E no coração daquilo a que chamamos “graça” está o dom do Espírito de uma parte desse amor trino e eterno.

Temo, porém, que por vezes pensemos na “graça” como se fosse uma varinha mágica que nos transforma de um sapo num príncipe, ou como a aranha radioactiva que transformou o Peter Parker no Spiderman – como se quando a graça se infunde em nós passássemos a rebentar de sabedoria, os nossos olhos e ouvidos irradiassem luz e a impureza do pecado deixasse de nos tocar ou tentar.

Talvez seja assim para alguns, mas talvez não seja isso que devemos esperar. Há uma longa e sábia tradição na Igreja que diz que não devemos confundir a obra do Espírito Santo com certos sentimentos ou uma experiência em particular. A Graça de Deus trabalhar frequentemente de formas que não se vêem, nem se notem, tal como o dom que foi o Seu Filho passou em larga medida despercebido e longe da vista.

E se a obra da graça nas nossas vidas for tão despercebida e discreta como o aumento do amor nos nossos corações? Os casais crescem em amor. Mas se forem ver todos os dias provavelmente não notam uma diferença muito grande. Contudo, se simplesmente se dedicarem ao bem-estar e à felicidade um do outro, um dia acordarão e verificarão que o seu amor – o amor que os levou a dedicarem-se um ao outro – cresceu.

Às vezes os pais dizem que quando olham para os seus recém-nascidos apaixonam-se logo, e que isso muda as suas vidas. E porém, a mudança de vida que se segue – de autocentrado para altruísta e atento – costuma ocorrer ao longo de semanas e anos, e tende a envolver muito menos desse sentimento “fofinho” inicial. Mas o Espírito Santo está lá o tempo todo, mudando o coração, um bocadinho de cada vez, ao longo do tempo.

Outro erro comum é imaginarmos que a graça de Deus tem sempre resultados instantâneos, como um relâmpago de Zeus. Mas há uma boa razão para muitas das parábolas de Jesus sobre o Reino envolverem a plantação de sementes, e estações para crescimento.

Há vários anos uma das minha alunas perguntou ao filósofo Alisdair MacIntyre como poderia adquirir as virtudes, uma vez que não conhecia ninguém que as possuísse. MacIntyre sugeriu que ela devia alistar-se nos fuzileiros, ou então na frota pesqueira. A chave está em trabalhar com os outros numa situação em que a nossa segurança e bem-estar dependem de eles cumprirem bem com as suas funções, e em que a sua segurança e bem-estar dependem de nós cumprirmos bem as nossas funções. É uma resposta interessante, ainda que nem sempre praticável.

Na teologia crista, porém, para além das “virtudes adquiridas” temos a tradição das “virtudes infundidas”. Quando reconhecemos que não possuímos as virtudes, podemos rezar por elas. Eu posso não ter sido criado com coragem, sabedoria ou entendimento (e não fui), mas posso rezar por eles. Isso não significa que deva esperar acordar amanhã a rebentar de coragem, sabedoria e entendimento. Nem significa que já não precise de fazer a minha parte para crescer nas virtudes da coragem, sabedoria e entendimento.

A graça não viola a natureza, aperfeiçoa-a. Deus não opera esta mudança em nós sem a nossa colaboração. A graça não é magia; é o amor que ganha raízes e cresce ao longo do tempo, para transformar aqueles que, tal como a Virgem Maria, dizem “sim”.

Quando a graça opera em nós é possível que nem o sintamos ou reparemos. Pode parecer, à primeira vista, algo muito natural, como o parto de uma criança. Mas não será essa uma das lições do Natal? Que a graça pode entrar no mundo praticamente despercebida, em lugares e de formas que podemos não esperar e dar frutos de formas que excedem as nossas maiores esperanças?

Se decidirmos dedicar-nos ao bem-estar e à felicidade uns dos outros, a Graça de Deus já está a operar em nós. Se nos dedicarmos a isso, esse amor crescerá. Só precisamos de um pouco de fé.


Randall Smith é professor de teologia na Universidade de St. Thomas, Houston.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na terça-feira, 27 de Dezembro de 2022)

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Monday 26 December 2022

O caso do Padre Rupnik e a purificação do templo

O mais recente escândalo que está a abalar o mundo católico é a da acusação de assédio sexual de religiosas por parte do famoso jesuíta e artista Marko Rupnik. Podem ler tudo o que se sabe sobre este caso aqui, mas leiam também a minha reflexão em que explico que embora haja semelhanças importantes entre o abuso de menores e as relações entre adultos, há também algumas diferenças fundamentais. Se isto justifica a forma como o Vaticano lidou com este caso? Não chego tão longe. A Igreja tem avançado muito na forma de lidar com situações de abuso de menores e talvez seja altura de aplicar algumas dessas lições a outras áreas, como esta. Leiam e comentem, ou no blog ou respondendo para mim, caso tenham alguma coisa a acrescentar. Todos somos poucos para contribuir para estas reflexões.

Várias instituições católicas escreveram ao presidente Marcelo Rebelo de Sousa a pedir que ele vete a lei da eutanásia.

O ex-reitor do Santuário de Fátima critica a actual gestão daquele espaço, pedindo uma “purificação do templo”.

Nos últimos dois dias foram raptados mais dois padres na Nigéria. Uma praga sem fim naquele país.

As discussões sobre masculinidade estão na moda. Por um lado, os que insistem que qualquer característica masculina é “tóxica” e do outro os que consideram que um verdadeiro homem deve ser musculado, usar barba, fumar cachimbo e tratar a mulher com condescendência. Onde está o bom-senso? Felizmente ainda existe e o artigo desta semana do The Catholic Thing em português é um bom exemplo disso, com Stephen White a argumentar que se queremos homens que vivem a sua masculinidade de forma saudável não temos de fazer mais do que educá-los para a virtude. Leiam que vale mesmo a pena, e partilhem, sobretudo com homens e jovens pais.

O Mundial acabou, com o troféu a ir para o país do Papa e do jogador com uma tatuagem gigante de Jesus no braço. Fui acompanhando e sublinhando as dimensões religiosas do torneio no Twitter, podem ver aqui, ou aqui, caso não tenham conta no Twitter.

Esta semana, por estarmos em vésperas do Natal, não há Hospital de Campanha, mas se ainda não o fizeram ouçam o mais recente episódio, sobre como amar os mais frágeis da nossa sociedade.

Thursday 22 December 2022

Abusos de menores e de adultos: Diferenças e semelhanças

Um caso de abusos sexuais de mulheres adultas por parte de um sacerdote está a dar muito que falar no mundo católico. Em causa está o padre Marko Rupnik, um jesuíta esloveno. Rupnik é muito conhecido no mundo católico pela sua arte, tendo desenhado mosaicos e outras obras em algumas das mais importantes igrejas do mundo, incluindo a nova Basílica da Santíssima Trindade, em Fátima.

Há várias acusações graves contra Rupnik, nomeadamente de ter criado um ambiente de abuso de poder e manipulação numa ordem de freiras da qual era assistente religioso. Mais, a dada altura o padre jesuíta terá mantido uma relação sexual com uma das religiosas desse mosteiro, tendo posteriormente absolvido a mesma em confissão. Trata-se de um crime canónico de tal gravidade que o responsável incorre na pena de excomunhão, a qual só é levantada quando o culpado revela arrependimento, o que terá acontecido.

Mais do que uma simples coleção de falhas pessoais de um padre isolado, este caso tem levantado grandes críticas em relação à forma como foi tratado pelos jesuítas, em primeiro lugar, mas também pelo Vaticano. Apesar das várias acusações que foram feitas contra ele, e de estas serem do conhecimento dos seus superiores e do Dicastério para a Doutrina da Fé, Rupnik continuou a aparecer em público, a aceitar encomendas e a executar obras de arte sacra, a apresentar um vídeo semanal de análise das leituras de cada Domingo e até a pregar uma reflexão quaresmal para a Cúria romana.

Quando as alegações se começaram a tornar públicas, a informação foi sendo libertada a conta-gotas, tanto pelos jesuítas como pelo Vaticano, o que só levantava mais questões e criava maior confusão. Eventualmente a ordem religiosa do padre Rupnik acabou por admitir os factos todos – ou pelo menos assim parece – mas não sem antes sofrer grandes danos ao nível da sua própria credibilidade e transparência.

Numa altura em que tanto se exige transparência em relação à questão dos abusos de menores, logicamente muitos questionam porque é que o mesmo não se aplica a este caso, e porque é que a própria Santa Sé, que deve dar o exemplo e que tanto tem progredido nos últimos anos neste campo, não o fez.

A resposta mais evidente é de que não estamos perante um caso de abuso de menores, mas de relações entre adultos, ainda que, por ser assistente espiritual das religiosas, não se possa falar de uma relação desprovida de abuso de poder. É uma distinção importante? É, e já vamos ver porquê. Justifica a falta de transparência? A meu ver não, não justifica, e penso que com tudo o que já aprendemos sobre a crise de abusos é importante a Igreja, quer as locais, quer a Santa Sé, compreendam que muitas das lições que aprendemos com a crise dos abusos de menores podem e devem aplicar-se a outras áreas, incluindo esta.

Uma questão de corrupção

Vamos então tentar perceber quais são as grandes diferenças entre o abuso de menores e as relações consensuais, embora pecaminosas, entre adultos.

A primeira e mais evidente diferença é o mal causado às vítimas. Choca sempre mais, e bem, o abuso de uma criança, seja ele de natureza física, sexual ou psicológica. Os abusos abrem sempre feridas terríveis nas suas vítimas, feridas duradouras, mas o seu potencial destrutivo é ainda mais grave nas crianças. Isto não significa que não se deva ter também compaixão das vítimas adultas, e ajudá-las ao máximo, como é evidente.

Mas há outra grande diferença, que está na disposição e no estado de alma do próprio abusador. E penso que essa merece mais atenção do que costumamos dar.

Um dos temas a que o Papa Francisco volta sempre é à corrupção. Para os nossos ouvidos, quando se fala em corrupção pensamos em troca de favores por dinheiro, enriquecimento ilícito, cunhas e favorecimento. Mas não é nesse sentido que o Papa usa o termo. Ele explica que existem pecados, que todos cometemos, mas a corrupção é mais do que um pecado, é uma doença, uma doença da alma, no sentido em que contamina toda a forma como agimos e pensamos.

Para usar um exemplo prático. Um homem que está a passar na rua e repara que alguém deixou cair a carteira e aproveita para a roubar, está a cometer um pecado, claro, mas é um grau diferente daquele que acorda decidido a ir roubar; justifica a si mesmo que pode e deve roubar, porque a satisfação da sua necessidade ou do seu desejo é a prioridade máxima; que desenvolve planos e esquemas para poder roubar e depois as executa. Esse, ainda que não consiga obter o proveito de um roubo, já pecou no coração e tem a alma corrompida porque está já consumido da vontade de pecar.

A ler, sobre o conceito de
corrupção segundo o Papa
Aplicando isto à realidade dos abusos sexuais, podemos ver que há diferenças entre o abuso sexual de um menor, ou uma pessoa vulnerável, e uma relação com um adulto. No segundo caso, para já, existe a possibilidade do consentimento da outra parte. Tomemos o caso de um padre que se sente muito atraído por uma mulher a quem está a dar direcção espiritual. Se do outro lado também existe atracção torna-se muito mais provável que o pecado seja consumado. Isto até pode acontecer espontaneamente. O padre pode nem estar a pensar no assunto, mas a outra pessoa vem procurar o contacto e o padre, perante essa possibilidade, sucumbe à tentação; ou duas pessoas encontram-se numa situação em que de repente reparam que têm possibilidade de ter uma relação e ambas cedem. Enfim, não adianta explorar todas as possibilidades.

Mas também pode acontecer o contrário. Pode acontecer que o padre sente atracção por alguém e procura manipular as circunstâncias para poder estar sozinho com ela, procura seduzir e despertar na outra pessoa a mesma vontade, etc., para poder satisfazer o seu desejo. Esta segunda situação seria já um caso de corrupção da alma, porque o padre já cometeu esse pecado no seu coração e agora está a tentar a toda a força cometê-lo de facto. Isto é tanto mais grave se o padre se aproveita do seu ministério, como director espiritual, por exemplo, e de algum ascendente que tenha sobre a outra pessoa, para fazer valer a sua vontade, podendo até manipulá-la ao ponto de a tentar convencer que o mal que ele procura praticar é na verdade um bem, ou que constitui a vontade de Deus.

A diferença quando lidamos com o abuso de crianças é de que não existe a possibilidade do primeiro cenário. Não pode haver consentimento, nem verdadeira compreensão do que está em causa por parte da criança ou do menor. E, por conseguinte, a situação de abuso nunca é a mera queda numa tentação espontânea.

A lógica dita, e a prática mostra, que os abusadores de menores são pessoas especialmente manipuladoras. A relação com as vítimas é cultivada, o abusador procura ganhar a confiança da vítima, mas também da sua família. As condições para estarem a sós e para se praticar os abusos são pensadas e depois executadas. Há uma predisposição necessária que agrava tudo o que se passa de seguida, e contamina muito, se não tudo, do resto da sua acção pastoral. Por isso é que para estes pecados em particular existe tolerância zero. Nenhum homem será apenas o somatório das suas falhas, e isso aplica-se também aos abusadores, mas isso não implica que se possa continuar no ministério sacerdotal.

Tudo isto configura um caso particularmente grave de corrupção da alma, o que tem ramificações importantes quando se trata de um padre ou outro agente pastoral. Os católicos compreendem e aceitam que os seus padres sejam sujeitos a tentações, que por vezes até nelas caiam. Não aceitam, nem devem aceitar, é que os seus padres sejam pessoas corruptas que no seu coração já cederam ao pecado e procuram de todas as formas manipular quem está em seu redor para o levar a cabo. Isto aplica-se a qualquer tipo de pecado, a questão é que com o abuso de menores aplica-se sempre.

Voltando ao caso do Pe. Rupnik, uma leitura benevolente do seu caso será de que os seus superiores, e os responsáveis do Vaticano, entenderam que com ele estavam perante situações de quedas pontuais, das quais estava devidamente arrependido e recomposto, e não de corrupção da alma, e por isso, depois de o corrigirem e de o castigarem de forma discreta, não tiveram problemas em permitir que ele prosseguisse com outras actividades pastorais, como o tal vídeo semanal e as muitas obras de arte que foi fazendo.

Foi um erro? Provavelmente, sim. A decidir que os seus crimes não justificavam a expulsão do estado sacerdotal, teria pelo menos feito sentido mantê-lo em funções mais discretas até se ter a certeza de que estava recuperado, que estava verdadeiramente arrependido. E se já estavam reunidas essas condições, deviam comunicá-las devidamente, logo que começaram a surgir as notícias, para evitar dar a entender que estavam a encobrir.

Por não o terem feito, e por terem respondido às revelações que entretanto foram surgindo de forma confusa e atabalhoada, tanto a Santa Sé como os Jesuítas sofreram graves danos reputacionais. Esperemos que aprendam com este caso, para evitar males parecidos ou mais graves no futuro. E esperemos que compreendam que as lições que temos aprendido com a crise dos abusos podem e devem ser adaptados a outras realidades também. Todos ficamos a ganhar com isso.

Wednesday 21 December 2022

A Paternidade e a “Masculinidade Sã”

Stephen P. White

Hoje em dia não há falta de conversas sobre homens e masculinidade. Toda a gente parece querer saber o que é que se passa com os homens. Desde os debates sobre o transgénero, ao movimento Me Too, passando por preocupações com a perspectivas económicas e matrimoniais de homens jovens (sobretudo de classe operária) e ainda as implicações políticas destas dificuldades, a nossa cultura está saturada com questões que se prendem com a masculinidade. Muitas perguntas, muito debate, mas relativamente poucas respostas.

Alguns tratam a masculinidade como uma mera construção, sem qualquer conteúdo essencial. O único propósito da masculinidade – um propósito que nada tem de essencial, mas que é apenas prático – é de assegurar poder ao serviço de uma classe opressora. Os fortes dominam os fracos, os desportistas dominam os totós no liceu. Os machões tratam mal e são condescendentes para com as mulheres. Estão a ver a ideia.

Depois temos aqueles que, muitas vezes em reação à visão acima descrita de toxicidade, apresentam a masculinidade como uma coleção de atributos físicos ou psicológicos: força física, assertividade, confiança, disciplina, liderança, estoicismo, domínio, competitividade, e por aí fora. Mas se seguirmos esta linha de pensamento, inevitavelmente percebemos que a soma das partes é menor que o todo. A masculinidade enquanto estilo de vida é tão desinteressante como a ideia de masculinidade como instrumento de repressão patriarcal.

Em justiça podemos dizer que nenhuma destas visões está inteiramente errada. É verdade que os homens se aproveitaram de certas forças e vantagens sociais para maltratar mulheres. E há certos atributos e qualidades que são e devem ser associadas à masculinidade, tal como existem certos comportamentos e qualidades que são decididamente não-masculinas.

Agora, tal como a maioria dos homens que conheço (pelo menos aqueles que considero serem bons exemplos daquilo que é ser homem), eu não passo muito tempo a preocupar-me com o que significa ser masculino, ou com a masculinidade. A verdade é que, de modo geral, considero estas discussões sobre masculinidade bastante entediantes e exageradas.

Acontece, porém, que no mês passado fui convidado para ir falar a um grupo de estudantes universitários – na maioria jovens homens – sobre o tema de “masculinidade sã”. Por isso fiz uma pausa no meu já longo hábito de não pensar sobre “masculinidade sã”, para pensar que sabedoria poderia oferecer a estes rapazes. Surgiram-me três pontos.

Primeiro: tanto quanto consigo perceber, depois de pensar muito no assunto, a masculinidade sã não é mais do que aquilo que acontece quando o homem leva uma vida virtuosa. Apenas isso. Um homem virtuoso, pelo facto de o ser, vive a sua masculinidade de forma saudável. Está mesmo na raiz da palavra “virtude”, do latim “virtus”, que se refere às qualidades próprias de um “vir”, um homem.

Isto pode parecer demasiado simplista, ou até circular, mas não é. Reparem que o contrário nem sempre é verdade. Nem toda a gente que tem como objectivo viver uma “masculinidade sã” viverá de forma virtuosa. Se queremos cultivar uma masculinidade saudável temos de ensinar as virtudes aos homens, e a coisa irá ao sítio. Mas se dissermos aos homens que têm de exibir uma “masculinidade sã” e depois não os instruirmos nas verdadeiras virtudes, estamos a preparar o terreno para a confusão e o falhanço.

Falível e mortal, mas um
pálido reflexo do amor de Deus
Segundo: A paternidade faz o homem. Não existe qualquer conceito de masculinidade que valha alguma coisa que não tenha a paternidade como principal referência. Claro que nem todos os homens vivem a sua paternidade de uma forma biológica. Mas todos os homens, sem excepção, são feitos para a paternidade. Eu conheço padres celibatários que são excelentes pais. Conheço homens casados mas que não têm filhos, ou que os adoptaram, que são excelentes pais. Não é por acaso que São José é o padroeiro dos pais.

Seja qual for a força moral ou física que um homem tem, ela existe para que ele melhor possa servir aqueles que lhe são encarregados. A prova mais clara disto está precisamente na excepção: nada é menos “de homem”, nada é mais absolutamente antitético à paternidade, do que um homem que se aproveita ou abusa de mulheres e crianças.

Terceiro: A paternidade é uma condição terminal. Como todas as verdadeiras vocações, a paternidade encontra o seu cumprimento pleno na dádiva da vida própria em serviço aos outros. Um pai ama incondicionalmente, mesmo sabendo que ele irá diminuir na medida em que os seus filhos aumentam e crescem. Mas a paternidade é sobre mais do que apenas sacrifício próprio.

A maioria de nós aprende sobre a paternidade, em primeiro lugar, com os nossos pais. Como filhos aprendemos que os nossos pais são invencíveis, omniscientes, omnipotentes, fantásticos, todo-amorosos. (Nem podia ser de outra maneira, tendo em conta a forma como a mãe olha para ele). Mas à medida que crescemos vamos percebendo que isso não é bem assim, os nossos pais são – esperamos – muito bons homens, mas não deixam de ser apenas homens. Falíveis, com falhas, mortais.

Depois, como homens (e aqui dirijo-me aos homens), tornamo-nos pais e a nossa visão da paternidade volta a mudar. Se o meu pai não era perfeito, eu certamente também não sou! Mas os meus filhos não sabem isso. Ainda.

E é então que começamos a perceber. Aquela primeira imagem infantil da paternidade – invencível, omnisciente, omnipotente, fantástico, todo-amoroso – essa é que é a verdadeira paternidade. Eu posso ser apenas um pobre reflexo disso, mas isso não invalida que seja real. Existe mesmo um Pai assim. Eu já conheci esse amor. Mais incrível ainda, apesar de todas as minhas fraquezas, imperfeições e egoísmo, Ele permitiu-me um vislumbre de como é amar como Ele ama. E permitiu-me, chamou-me, a exibir um vislumbre desse amor aos meus próprios filhos. É um banho de humildade, e não pouco assustador.

É isso que significa dizer que a paternidade é uma condição terminal. A paternidade não é apenas “até à morte”. Tem um objectivo, dirige-se a algo. Aponta para Alguém que não sou eu. É uma oportunidade imerecida para participar no amor de Deus Pai. A possibilidade de ser, para outro, um vidro através do qual podem, ainda que de forma obscura, vê-lo a Ele. Sim, é um banho de humildade, não pouco assustador, e incomensuravelmente maravilhoso.


Stephen P. White é investigador em Estudos Católicos no Centro de Ética e de Política Pública em Washington.

(Publicado em The Catholic Thing na Quinta-feira, 15 de Dezembro de 2022)

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The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing



Friday 16 December 2022

Neste Natal pode ajudar a Ucrânia. E o Líbano, e a Síria, e os reclusos e os cristãos da Terra Santa...

Jesus vai estar na final do Mundial
Aproximamo-nos do Natal, tempo de reconciliação e de perdão, e é precisamente isso que o Papa pede aos líderes mundiais numa carta em que sugere que dêem indultos a presos. A maioria dos meus leitores poderá não ter essa possibilidade, mas podem ajudar os reclusos na mesma, comprando presentes de Natal do projecto Reshape.

O Papa pede que este ano os cristãos pensem menos no consumismo, e ajudem mais a Ucrânia. Podem e devem fazê-lo, e já agora podem ajudar a Síria e o Líbano também, que bem precisam e são o projecto-alvo da fundação Ajuda à Igreja que Sofre para este Advento. E por fim, podem ir ao Chiado, à loja onde o Nicolas Ghobar está a vender artigos de artesanato feito pelos cristãos da Terra Santa, para apoiar as comunidades de lá. Eu já lá fui, e conto voltar. Estes também precisam muito da nossa ajuda, não os abandonemos! A loja fica na lateral da Basílica dos Mártires.

Há muita perseguição aos cristãos no mundo, mas a Europa não é excepção. Foram documentados 500 casos de crimes contra cristãos por cá em 2022.

Tive o privilégio de participar em dois episódios do programa “E Deus Criou o Mundo”, da Antena 1. No primeiro conversámos sobre superstições, astrologia e futebol, mas também sobre como o amor cristão não conduz à uma estéril “paz interior”, mas leva as pessoas a identificar-se com o sofrimento e as necessidades dos mais frágeis.

Já no mais recente episódio falou-se da tradição católica de abstinência de carne às sextas-feiras, e de como isso pode ser benéfico para o planeta, mas também sobre as noções de impureza ritual, e de como o Cristianismo é muito diferente do Judaísmo a esse respeito. Podem ouvir aqui.

No artigo desta semana do The Catholic Thing, Randall Smith deixa um recado para todos os guerreiros de teclado que pensam que estão a fazer guerra religiosa na internet. Parem! “Dizer casualmente no Twitter que alguém é herege é o equivalente adulto de uma criança chamar otária a outra – especialmente quando a pessoa que assim é lançada para as trevas exteriores como “herege” é um católico fiel. Para mim, isso é tomar o nome da Igreja em vão. Estas pessoas estão a confundir os seus pensamentos e disposições com o ensinamento da Igreja.”

Já leram o meu artigo sobre a posição do Papa em relação à Guerra Justa, e o que se passa na Ucrânia? Está aqui. E não percam o episódio da semana passada do Hospital de Campanha, que está aqui.

Wednesday 14 December 2022

Não Tomarás o Nome da Igreja em Vão

Nunca achei convincente a ideia de que o mandamento contra o uso do nome de Deus em vão fosse sobre praguejar. Não estou a defender a prática, só não acho que Deus gastaria um de apenas dez mandamentos para classificar um “por amor de Deus” proferido num momento de irritação, como pecado mortal. Deus não me parece ser assim tão sensível.

E “Deus” nem sequer é o seu nome. As Escrituras dizem-nos que Ele “tem um nome acima de todos os nomes”, que em algumas situações pode ser traduzido pelo “sagrado tetragrama” – tão sagrado que as quatro letras YHWH, que podem significar “Eu sou quem sou”, ou “Estou convosco”, não deviam ser pronunciados. Em seu lugar, os leitores judeus dizem “Adonai”, que em português traduzimos por “SENHOR”. Por isso, por mais que me irrite ter de cantar músicas melosas sobre “Javé” na missa, porque sei que isso ofende os nossos irmãos judeus, esse também não é o seu nome.

O mandamento de não usar o nome do Senhor em vão tem a ver com as proibições da idolatria, logo no primeiro mandamento. Isto é, não ter qualquer deus diante do SENHOR, ou produzir imagens. Na idolatria, o crente forma um “deus” à sua imagem – os guerreiros adoram o deus da guerra, os caçadores o deus da caça – enquanto que na realidade nós é que somos formados à imagem de Deus.

Quando Moisés desce do Monte Sinai com as duas tábuas, contendo os Dez Mandamentos, descobre que os Israelitas fizeram um bezerro de ouro. Porquê um bezerro de ouro? Eram um povo de pastoreio, caminhando pelo deserto, e queriam manadas maiores. Por isso fizeram uma imagem à luz do seu próprio desejo. Cada acto de idolatria é um acto de auto-idolatria. Fazemos o “deus” que nós queremos. E os resultados são desastrosos. Se queremos ser formados à imagem de Deus – o Deus da justiça e do amor – devemos começar por seguir os mandamentos escritos nessas duas tábuas.

Então porque é que é importante não tomarmos o nome do SENHOR em vão? Acima de tudo, porque chamar uma divindade pelo nome era a forma tradicional de “conjurar” um deus, um espírito ou um demónio. Não se conjura o SENHOR. Ele não vem para fazer a nossa vontade, ainda que lhe ofereçamos um monte de sacrifícios. É perigoso pensar nele dessa forma – como se a nossa relação fosse um quid pro quo, “uma mão lava a outra”. Todos os dons que nós damos a Deus são dons que Deus nos deu a nós, incluindo o “dom” das nossas virtudes. A graça de Deus – aquilo a que os católicos chamam graça preveniente – torna possível todos os nossos actos de amor abnegado. “Nós amamos”, diz-nos o Evangelho de João, “porque Deus nos amou primeiro”.

Por isso, se há uma coisa que não queremos fazer é imaginar que podemos “invocar” o SENHOR para fazer as nossas vontadinhas ou esmagar os nossos inimigos. Deus fará sempre a coisa certa de acordo com a sua divina providência, independentemente daquilo que lhe peçamos. Nesta linha, dizer “Deus te amaldiçoe” não é apenas absurdo – não fazemos ideia do que Deus fará ou não fará – é mesmo um erro grave. Estamos a confundir a vontade de Deus com a nossa.

Um dia estava a rezar em silêncio numa capela quando ouvi um jovem rapaz a dizer a uma rapariga: “Eu sei que Deus quer que fiquemos juntos”. Mas ele não sabia isso. Estava apenas a usar o nome de Deus para a manipular. E esse é um pecado terrível. Da mesma forma, quando um pregador diz que “Deus jamais condenaria x”, apesar de as Escrituras revelarem claramente o contrário, é culpado de “tomar o nome do SENHOR em vão”.

O Antigo Testamento faz repetidos avisos tanto contra a idolatria como contra a falsa profecia. São pecados de primeira ordem. E são estes os pecados que são condenados no mandamento de “não tomar o nome do Senhor em vão”.

Talvez, então, devêssemos ter um mandamento relacionado com este: “Não tomarás o nome da tua Igreja em vão”. As pessoas estão sempre a dizer coisas em nome da Igreja que são simplesmente falsas, absurdas ou nefastas. Metade das vezes que as pessoas afirmam que “a Igreja ensina x”, isso não é verdade. E nem me ponham a falar da quantidade de vezes que as pessoas insistem que “o Direito Canónico diz que…”, quando não diz.

E depois temos o estranho hábito de as pessoas assumirem para si a autoridade apostólica para proclamar os outros “hereges”. Um herege não é apenas alguém com quem discordamos, nem se pode classificar como herege alguém que não concorda com uma declaração papal com vários séculos e fora de contexto que por acaso encontrámos na internet.

Quando me perguntam se alguém é herege eu respondo sempre que não me cabe a mim fazer esse tipo de juízos. Não sou um bispo com autoridade apostólica. Posso dizer que esta ou aquela posição me parecem “preocupantes” ou que não aparentam estar de acordo com a tradição e o ensinamento do magistério da Igreja, tanto quanto consigo avaliar – se tiver lido correctamente todos os documentos relevantes e compreendido correctamente o que o autor ou orador quer dizer.  

Mas dizer casualmente no Twitter que alguém é herege é o equivalente adulto de uma criança chamar otária a outra – especialmente quando a pessoa que assim é lançada para as trevas exteriores como “herege” é um católico fiel. Para mim, isso é tomar o nome da Igreja em vão. Estas pessoas estão a confundir os seus pensamentos e disposições com o ensinamento da Igreja. E isso, bom, é herético.  

A palavra “heresia” vem de um termo grego que significa “escolher”. Tal como a idolatria implica formar Deus à nossa imagem, para se encaixar nas nossas vontades e desejos, também a heresia é formar uma Igreja que se encaixa nas nossas preferências e disposições. Quer se escolha do lado direito ou esquerdo da ementa, continuam a ser as nossas escolhas. Seja como for, está mal – seja-se um católico “conservador” com uma variedade de cursos de teologia, ou um bispo alemão de topo.


Randall Smith é professor de teologia na Universidade de St. Thomas, Houston.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na terça-feira, 13 de Dezembro de 2022)

© 2022 The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de reprodução contacte: info@frinstitute.org

The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing.

Monday 12 December 2022

Amar Jesus nos marginalizados, a caminho do Natal

Espero que tenham tido um óptimo feriado. Para mim o 8 de Dezembro é especial, porque faz 17 anos que comecei a construir a maior e mais bela obra da minha vida. O dia em que me casei. Pude voltar ao local onde tudo começou, agora com os meus filhos, e ver a Igreja de Santa Isabel, em Lisboa, já com as obras de restauro praticamente concluídas. Se tiverem possibilidade visitem, porque está absolutamente espetacular!

Nas notícias, temos esta semana um novo episódio do Hospital de Campanha. Neste episódio conversamos com Luís Abrantes, que trabalha no Vale de Acór, e nos ajuda a compreender como é possível ver Jesus nos marginalizados, nas feridas da sociedade, naqueles que o mundo acha que são descartáveis. É uma excelente maneira de entrar no espírito de Natal, o verdadeiro espírito de Natal, que celebra e encontra a dignidade na fragilidade.

Todos sabemos o que é uma Conferência Episcopal. Mas para que serve uma Conferência Episcopal? E, mais importante, para que é que o Papa Francisco acha que servem as conferências episcopais? Um artigo interessante a ler no The Catholic Thing desta semana.

E por falar em dignidade, voltamos ao tempo em que essa palavra aparece travestida. Tal como “compaixão”. Eu acredito na boa-vontade de muitos dos que nos tentam convencer que a eutanásia pode ser um acto de bondade. Mas é preciso mostrar que estão enganados e que nada há de digno numa morte higienizada, encomendada e receitada. Não tenho sobre isso nenhum texto novo, mas tenho uns quantos antigos que não perderam actualidade. Comecem por este, depois é só seguir os outros links.

O Papa Francisco escreveu uma carta ao povo ucraniano. A carta é bonita, mas aparentemente não diz nada em especial de novo. Olhando mais de perto, contudo, encontramos uma frase que mostra o que acontece quando volumes e volumes de teoria esbatem de frente com a realidade. Leiam aqui como o Papa reconhece implicitamente, nesta carta, que existem guerras justas e que a batalha que os ucranianos travam encaixa nessa definição.

Como sabem, gosto especialmente de realçar o cruzamento entre o futebol e a religião, sem, claro, sacralizar o desporto. O meu mais recente artigo para o World Mission é precisamente sobre esse fenómeno. Cliquem aqui, nem que seja para ver a belíssima fotografia que escolheram para acompanhar o texto.

Friday 9 December 2022

Hospital de Campanha - Ver Jesus nos Viciados: Luís Abrantes

Takeesha. Foto: Chris Arnade
Estou cada vez mais convencido de que uma das chaves do Cristianismo está na capacidade de ver o outro com os olhos de Deus, de o ver na sua dignidade plena, apesar do estado de desgraça a que possa ter chegado.

Os toxicodependentes, os alcoólicos e outros viciados são dos mais claros exemplos do "descartável" deste mundo, para usar um termo do Papa Francisco. O Luís Abrantes é um daqueles privilegiados que os consegue ver com amor e descortinar toda a dignidade que eles têm, por mais escondida que possa estar. Neste episódio do Hospital de Campanha ele fala do seu trabalho no Vale de Acor, uma instituição católica que acolhe e trata de pessoas com vícios, e ajuda-nos a preparar os corações para o Natal, a época por excelência de ver e reconhecer a dignidade do pequeno, indefeso e excluído. 

A pessoa da fotografia, como devem calcular, não é o Luís Abrantes. É a Takeesha, de quem falo no episódio, e sobre a qual podem saber mais aqui.  

Wednesday 7 December 2022

O Papa e a Guerra Justa. Volumes de teoria e uma frase de realidade

O Papa tem falado frequentemente de guerra desde que foi eleito. Por exemplo, tem tido a clarividência para dizer – e bem – que estamos a viver uma “Terceira Guerra Mundial às prestações”, apesar de na Europa central e ocidental estarmos no maior período de paz da nossa história.

Tem também insistido na necessidade da paz e apelado ao fim de múltiplos conflitos em todo o mundo, incluindo os que já foram esquecidos pelo resto dos líderes mundiais.

Mas o Papa tem sido também criticado por estar a pôr em causa a tradição cristã da Teoria da Guerra Justa. Na encíclica “Fratelli Tutti”, Francisco diz o seguinte:

Nas últimas décadas, todas as guerras pretenderam ter uma ‘justificação’. O Catecismo da Igreja Católica fala da possibilidade duma legítima defesa por meio da força militar, o que supõe demonstrar a existência de algumas ‘condições rigorosas de legitimidade moral’. Mas cai-se facilmente numa interpretação demasiado larga deste possível direito. Assim, pretende-se indevidamente justificar inclusive ataques ‘preventivos’ ou ações bélicas que dificilmente não acarretem ‘males e desordens mais graves do que o mal a eliminar’. A questão é que, a partir do desenvolvimento das armas nucleares, químicas e biológicas e das enormes e crescentes possibilidades que oferecem as novas tecnologias, conferiu-se à guerra um poder destrutivo incontrolável, que atinge muitos civis inocentes. É verdade que ‘nunca a humanidade teve tanto poder sobre si mesma, e nada garante que o utilizará bem’. Assim, já não podemos pensar na guerra como solução, porque provavelmente os riscos sempre serão superiores à hipotética utilidade que se lhe atribua. Perante esta realidade, hoje é muito difícil sustentar os critérios racionais amadurecidos noutros séculos para falar de uma possível ‘guerra justa’. Nunca mais a guerra!

Segundo a tradição cristã os critérios para que uma guerra seja considerada justa são as seguintes:

  • Deve haver a certeza de uma ameaça duradora e grave por parte da entidade à qual se vai declarar guerra
  • Todos os outros meios para pôr fim ao conflito devem ter sido esgotados
  • Deve existir uma perspectiva séria de sucesso
  • O uso da força armada não deve produzir um mal maior do que aquele que pretende eliminar

A forma mais simples de entender o argumento do Papa Francisco é de que na era das armas nucleares estas condições nunca se cumprem, porque o risco de causar um mal maior do que aquele que se pretende evitar estão sempre presentes.

Francisco tem sido muito criticado por esta posição. Parece-me justa e equilibrada esta apreciação do jesuíta Francisco Sassetti da Mota, numa recensão que aparece nas páginas finais da edição de Novembro da revista Brotéria, a uma obra que reúne textos soltos do Papa sobre a temática da guerra:

É discutível que tudo o que o Papa Francisco afirma seja tecnicamente rigoroso. (…) o enamoramento por uma linguagem radicalmente pacifista é ingénuo, pouco fundado na tradição cristã e em muitos casos perigoso para o inocente oprimido. Mas essa falta de rigor em alguns pontos não pode condenar o que o Papa Francisco tem para dizer de mais fundamental: a violência perturba a ordem desejada por Deus.

Tem-se pensado muito nesta problemática desde que começou a guerra na Ucrânia. Em primeiro lugar, quantos de nós, quando a guerra começou, acreditavam que a Ucrânia tinha sérias perspectivas de sucesso no campo de batalha? Desse ponto de vista, devíamos ter defendido a rendição imediata. Uma das frases mais significativas desta década foi “não preciso de boleia, preciso de munições”, e com isso começou a desenhar-se o fantástico desempenho das forças armadas ucranianas que estão cada vez mais próximas de libertar o seu território todo.  

O Papa tem sido incansável a falar da guerra na Ucrânia, criticando sem margens para dúvidas a invasão russa. Tem sido por vezes criticado por recordar que do lado russo também há sofrimento, por exemplo, ou por apelar a negociações quando os russos não revelam qualquer intenção de devolver à Ucrânia a soberania sobre os territórios ocupados. Mas permaneceu sempre a dúvida. O Papa acredita que os ucranianos devem estar a fazer valer a sua posição pelo uso da força? Dito de forma mais simples: O ucraniano que parte para combater os russos nos territórios ocupados está a fazer bem, ou mal?

Depois de textos suficientes para encher um volume sobre a guerra e a paz, o Papa disse finalmente uma frase que parece dar-nos a resposta que procuramos. Na carta escrita ao povo ucraniano, por ocasião dos nove meses da guerra, Francisco diz: “Penso em vós, jovens, que, para defender corajosamente a vossa pátria, tivestes de pegar em armas em vez dos sonhos que nutríeis para o futuro”.

Reparem na escolha da palavra, nada acidental. “Tivestes”. Não “optastes”, não “quisestes”, mas “tivestes”. E mais, esse pegar em armas não é uma mera fatalidade, é um acto de coragem. 

É numa situação como a guerra da Ucrânia que toda a teoria sobre guerra, paz, justiça e injustiça cai por terra e temos de nos confrontar com a realidade. Uma nação poderosa, liderada por um tirano, invadiu uma terra estrangeira, sob falso pretexto, procurando subjugá-la, eliminar a cultura dos seus habitantes, espalhando terror, tragédia e morte. Perante isto não há teorias bonitas sobre espadas convertidas em arados, não há cálculos frios sobre se a defesa tem probabilidades de sucesso ou não, e daí ser ou não lícita. O que há é uma obrigação moral de defender o inocente, de travar o assassino, de fazer frente à injustiça.

Esteve bem o Papa em reconhecer a força desta realidade e de perceber quando escreve aos ucranianos – que tanto tem apoiado, e por quem tanto tem rezado – que eles precisam tanto de lições de guerra justa como precisam de boleias.


Leia também: 

Declarações de líderes religiosos relevantes sobre a guerra na Ucrânia

E se a Rússia perder esta guerra? O que vem depois da ressaca

A posição de Francisco sobre a Ucrânia, e a posição da Ucrânia sobre Francisco

Todos pela Ucrânia, mas até quando?

Dimensões religiosas da Crise na Ucrânia

Igrejas Ortodoxas na Ucrânia - Em que ficamos?


O Problema das Conferências Episcopais

Stephen P. White
Em Novembro passado, como acontece todos os anos, decorreu o encontro plenário da Conferência Episcopal dos Estados Unidos (USCCB), em Baltimore. Tal como fazem de três em três anos, os bispos elegeram um novo presidente, desta vez foi o Arcebispo Timothy Broglio, das Forças Armadas, que substitui o Arcebispo José Gómez, de Los Angeles.

A eleição levou a uma onda de histerismo de alguns dos suspeitos do costume nos media católicos, que acusaram os bispos de estarem a “repudiar” o Papa Francisco, ou de estarem a optar por um “Catolicismo pós-episcopal”. Os argumentos em si não merecem ser rebatidos neste espaço.

O que vale a pena fazer é discutir a importância desproporcional que se tem atribuído nos últimos anos a estas eleições, bem como à própria conferência episcopal.

A principal função da conferência episcopal é ajudar os bispos no seu ministério. Muito, se não mesmo a maior parte do trabalho da USCCB é feito por funcionários, que são na maioria leigos. O que significa que o papel principal do presidente é sobretudo administrativo, e não pastoral, embora seja verdade que o presidente pode moldar (mas não ditar) o trabalho e as prioridades da conferência, e que representa a Igreja americana em Roma.

Mas a USCCB não é, certamente, a sede da Igreja Católica nos Estados Unidos. Nem sequer é o órgão que governa o Catolicismo americano (embora os bispos, no seu conjunto, tenham alguma capacidade para criar leis particulares). O presidente da conferência episcopal não é um patriarca dos Estados Unidos, nem o pastor-mor da Igreja americana.

Nada disto significa que a conferência, ou a sua liderança, não são importantes. São. Mas a sua importância é sobretudo a de assistência aos bispos. Eles existem para ajudar os bispos no seu ministério, e não para os substituir.

Desde o início do seu pontificado o Papa Francisco tem enfatizado e elevado, de várias formas, o papel das conferências episcopais nacionais e regionais. E não sem razão.

Em primeiro lugar, e mais importante, o Concílio Vaticano II, em particular no Lumen Gentium e no Christus Dominus, dá especial atenção ao ministério dos bispos e ao princípio da colegialidade. Os bispos não são gerentes de sucursais na estrutura empresarial do catolicismo, nem são apenas delegados da autoridade papal. Os bispos possuem autoridade legítima própria.

Esta autoridade tem a sua expressão máxima quando agem de forma colegial, sempre cum Petro et sub Petro (com e sob Pedro). Daí a imensa importância dada aos concílios ecuménicos. Este entendimento da autoridade episcopal tem raízes que remontam a muito antes do Vaticano II, recuando até aos primeiros séculos da Igreja.

No Evangelii Gaudium o Papa Francisco escreveu que a visão do Concílio Vaticano II para as conferências episcopais ainda não foi plenamente cumprida, uma vez que “este desejo não se realizou plenamente, porque ainda não foi suficientemente explicitado um estatuto das conferências episcopais que as considere como sujeitos de atribuições concretas, incluindo alguma autêntica autoridade doutrinal”. O resultado, segundo Francisco tem sido uma excessiva centralização e uma dependência indevida de Roma. “Uma centralização excessiva, em vez de ajudar, complica a vida da Igreja e a sua dinâmica missionária.”

Arcebispo Timothy Broglio
Uma boa parte do seu entusiasmo por fortalecer a autoridade das conferências episcopais deriva, certamente, da longa experiência do Papa Francisco enquanto presidente da Conferência Episcopal da Argentina e, mais especificamente, a sua experiência no encontro da Conferência Episcopal da América Latina (CELAM), em Aparecida, em 2007.

Esta afinidade por uma “descentralização saudável”, como o Papa Francisco por vezes lhe chama, molda a sua compreensão da sinodalidade, incluindo, aparentemente, a sua disposição para dar grande margem de manobra a experiências erráticas de eclesiologia, prática pastoral e disciplina sacramental como a que está a ocorrer agora na Alemanha.

Mas apesar de toda esta ênfase na descentralização, este pontificado também foi marcado por alguns gestos invulgarmente duros de centralização. A implementação da Traditiones Custodes, por exemplo, limitou substancialmente a capacidade dos bispos individuais de regulamentar questões litúrgicas nas suas próprias dioceses (em especial no que diz respeito à Missa Tradicional), chegando ao ponto de ditar que missas podem ou não ser publicadas nos boletins paroquiais.

O Papa Francisco também promulgou muito mais legislação do que qualquer um dos seus antecessores. Essa legislação, por sua vez, tem sido implementada e aplicada de forma algo irregular e inconsistente (um exemplo são as regras do Vos estis lux mundi sobre como lidar com casos de abusos sexuais). Frequentemente o estilo de governação do Papa tem tido o efeito contrário ao pretendido, centralizando a autoridade em Roma, diminuindo a autoridade individual dos bispos e tornando a pessoa do Papa (e não a lei, nem o ensinamento magisterial) o ponto de referência principal da vida católica.

O que nos traz a uma recente entrevista que o Papa concedeu à América, a revista dos jesuítas dos Estados Unidos, em que Francisco fez umas declarações refrescantemente simples e clarificadoras sobre a importância da autoridade pastoral dos bispos em relação às conferências episcopais:

Acho que é enganador falar da relação entre os católicos e a conferência episcopal. A conferência episcopal não é o pastor, o pastor é o bispo. Por isso corremos o risco de diminuir a autoridade do bispo quando olhamos apenas para a conferência episcopal. A conferência episcopal existe para juntar os bispos, para estes poderem trabalhar juntos, discutir assuntos, fazer planos pastorais. Mas cada bispo é um pastor. Não dissolvamos o poder do bispo, reduzindo-o ao poder da conferência episcopal. Porque a esse nível as tendências concorrem, umas mais à direita, outras mais à esquerda, mais aqui, mais ali, e seja como for a conferência episcopal não tem uma responsabilidade de pele e osso, como o bispo tem com o seu povo, um pastor com o seu povo.

As palavras do Papa podem ser lidas como uma correcção de todos os que consideram as conferências episcopais, e não os próprios bispos, como a principal fonte de autoridade episcopal na Igreja. Se a “descentralização saudável” que o Papa deseja vai produzir unidade em vez de divisão crónica, terá de depender menos da liderança desta ou daquela conferência episcopal do que daquele bispo – o bispo de Roma – que é verdadeiramente o primeiro de entre os seus irmãos.


Stephen P. White é investigador em Estudos Católicos no Centro de Ética e de Política Pública em Washington.

(Publicado em The Catholic Thing na Quinta-feira, 1 de Dezembro de 2022)

© 2022 The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de reprodução contacte: info@frinstitute.org

The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing

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