Monday 30 January 2023

Palcos polémicos em Portugal e nabice noticiosa na Nigéria

Fake News... 
Se há dias em que tenho de andar à procura de notícias para vos enviar, há outros em que nem sei por onde escolher!

Obviamente começamos pelo Palco da Polémica. Está tudo num alvoroço por causa dos 4,2 milhões que vai custar o palco da missa final da JMJ. Mas o alvoroço é inimigo da clareza. Neste post tentei congregar aquilo que já se sabe de certeza e aquilo que está por esclarecer, convidando todos a contribuir com explicações e factos, mais do que com opiniões infundadas.

Ontem um sacristão foi assassinado e um padre gravemente ferido num ataque a duas igrejas em Espanha, aparentemente por um muçulmano fanático.

Também ontem surgiu a notícia de que só em 2022 foram assassinados 145 padres na Nigéria. O único problema com esta notícia é não ser verdade. Leiam este meu artigo que explica como nasce uma “fake news”, muitas vezes mais por ignorância e falta de rigor jornalístico do que por má fé.

O Papa Francisco deu uma entrevista à Associated Press em que disse muita coisa interessante. Entre outras coisas, criticou as leis que criminalizam a homossexualidade, ressalvando que os actos homossexuais são pecado aos olhos da Igreja. Fui contactado pelo Observador para dar a minha opinião sobre o assunto, que podem ouvir aqui.

Esta semana, infelizmente, não temos episódio do Hospital de Campanha para vos trazer. Tínhamos uma entrevista interessante alinhavada, mas a convidada adoeceu e não conseguimos acertar agendas para gravar noutro dia. Esperamos voltar em breve. Entretanto, se ainda não ouviram, têm aqui o mais recente episódio sobre a morte e o legado de Bento XVI.

No ano lectivo de 2021/2022 só nas escolas públicas de Chicago, nos EUA, houve 600 denúncias de abuso sexual de menores. No mesmo espaço de tempo, para todo o país, na Igreja Católica houve 30 denúncias, das quais apenas seis foram consideradas credíveis. A conclusão? A Igreja tem aprendido com os erros e é hoje das instituições mais seguras para crianças. Há muito por fazer? Há, mas o progresso tem sido bom. Tudo isto está explicado no artigo do The Catholic Thing, por Stephen P. White.

E no dia 31 de Janeiro o Papa parte para a República Democrática do Congo e para o Sudão do Sul. Eis o que se pode esperar desta viagem.

Termino com dois desafios. Nos dias 10-12 de Fevereiro realiza-se o Segundo Congresso Nacional de Pueri Cantores. Toda a informação aqui.

Thursday 26 January 2023

Congresso Nacional de Pueri Cantores

Nos próximos dias 10 a 12 de Fevereiro, em Santarém, vai realizar-se o 2.º Congresso Nacional de Pueri Cantores, com a direção executiva e artística do David Paccetti Correia.

O evento, com o objetivo de congregar os coros e estimular o movimento de Pueri Cantores em Portugal, é promovido e organizado pela Federação Portuguesa de Pueri Cantores em parceria com o coro anfitrião, a Schola Cantorum da Catedral de Santarém.

Vão estar presentes Matthias Balzer, vice-presidente da Federação Internacional de Pueri Cantores e Josep Maria Torrents, presidente honorário da mesma federação. A Comissão de Honra do Congresso é liderada pelo bispo D. José Manuel Garcia Cordeiro, Presidente da Comissão Episcopal de Liturgia e Espiritualidade.

Com o lema Confiteor tibi, Pater (Bendito sejais, ó Pai), extraído da liturgia do dia, o programa Congresso desdobra-se em várias atividades participativas:


· 
Palestra O Canto como instrumento para enaltecer o culto (Christopher Bochmann)

·  Masterclass A técnica de direcção de um coro de igreja (Christopher Bochmann)

·  Cerimónia de Abertura

·  Visita com Música ao Museu Diocesano de Santarém

·  Oração pela Paz

·  Concerto de Esperança

·  Missa de Encerramento

·  Concerto de Gala (Christopher Bochmann)

A formação com o Maestro Christopher Bochmann é aberta a maestros, directores de coros e coralistas adultos, mediante inscrição por email ou por telefone 928143939.

 Federação Portuguesa de PueriCantores e a página do Facebook.




Wednesday 25 January 2023

O palco da JMJ: O que sabemos e o que está por explicar

Desde que o texto original foi publicado, fiz alguns acrescentos que estão a negrito. 

Adenda no dia 27/01
O D. Américo Aguiar deu ontem uma longa conferência de imprensa sobre este assunto. Para mim, o essencial que se tira dessa conferência de imprensa foi que a Igreja não tinha noção do preço desta obra em particular, que os organizadores da JMJ ficaram chocados com o valor e que da parte da Igreja fica o compromisso de ver se há alguma exigência da JMJ que esteja a encarecer a obra e que possa ser dispensada, descendo assim o preço. 
Veremos o que sai dessa análise, mas este parece-me um bom compromisso da Igreja e uma boa posição para assumir. 
E acho que isto mostra também que nós, católicos, não temos de sair sempre em defesa da instituição quando surgem casos destes, muito menos queixarmo-nos de que tudo não passa de um ataque à Igreja, defendendo-a cegamente. Ontem ficou visto que até aos bispos este valor chocou e que se vai fazer os possíveis para diminuir o valor. 
De resto, claro que o palco vai custar dinheiro, mas isso é em grande parte porque a Câmara quer - e se Deus quiser o tempo lhe dará razão - aproveitar a obra para valorizar o espaço e rentabilizá-la ao longo dos anos. 

Já todos ouvimos a notícia. O palco que vai acolher o Papa Francisco para a celebração da missa final da JMJ vai custar 4,2 milhões de euros, mais IVA.

Há várias coisas a sublinhar nesta questão, e algumas perguntas que me parecem estar por responder.

  • O palco vai ser pago pela Câmara Municipal de Lisboa. Não estou com isto a dizer que a Igreja não tem nada a ver com o assunto, claro que tem, mas não faz sentido, como já vi, comentar que o dinheiro fazia mesmo falta era às obras sociais da Igreja Católica, porque se a Câmara não gastasse esta soma aqui, certamente que não a iria doar. Ou seja, não é dinheiro que está a ser tirado da boca dos pobres, pelo menos não dos pobres de quem a Igreja cuida.
  • O evento vai custar muito dinheiro, incluindo muito dinheiro dos contribuintes. Mas espera-se que dê retorno. A vida é assim. Claro que isso não significa que não se deva pedir contas e responsabilizar as pessoas pelas decisões tomadas.
  • Em defesa da obra alguns estão a sublinhar que esta poderá ser aproveitada para eventos futuros. Convém esclarecer, porém, que tanto quanto me foi dado perceber, o que será aproveitado é a pala, e não o palco, ou pelo menos não o palco no formato que terá para a missa. Por isso importaria discriminar o valor da obra. Quanto custa o palco para a missa? E quanto custa a pala? E no meio disto tudo há outros custos? Comissões? Seria importante perceber isto em mais detalhe, porque se a Câmara insiste em gastar 3 milhões de euros numa pala que vai rentabilizar no futuro, isso é um problema da Câmara, mas se o grosso do custo tem a ver com as especificações dadas pela Igreja para o palco, por exemplo, isso já coloca o problema mais do lado da Igreja. Sem saber, não adianta estar a atirar opiniões para o ar. [Já existem algumas respostas a esta questão. Segundo a ECO, pouco mais de um milhão de euros serão gastos na pala, pelo que o restante será, presumo, para o palco. Também a Câmara explicou que o palco também vai ser aproveitado para o futuro, mas "muito redimensionado", ou seja, não se aproveita tudo o que lá está, mas aproveita-se alguma coisa].
  • A Câmara diz que a obra respeita as especificações mandadas pela Igreja. Isso é importante, mas carece de algumas explicações. As especificações eram para a obra toda, ou incluíam a pala, que tudo indica ser a parte mais dispendiosa? Seria possível fazer uma obra respeitando as mesmas especificações, mas mais barato?
  • Uma das especificações que imagino que tenha sido colocada pela Igreja tem a ver com a dimensão do palco. O palco tem de ser alto, para poder ser visto do recinto todo, mas tem de ter aquele tamanho? Ao que consta, o tamanho deve-se ao facto de terem de lá caber todos os bispos esperados. Confirma-se? E não podem os senhores bispos, ou a maior parte deles, ficar uns metros mais abaixo e assim o palco não ter de ser tão grande? É só uma ideia. [Segundo um comunicado feito quarta-feira pela fundação JMJ, o palco tem de suportar 2000 pessoas, mil das quais são bispos. Penso que é legítimo perguntar se seria mesmo necessário os mil bispos estarem no palco? É que certamente permitiria fazer uma obra de uma dimensão muito mais reduzida].
  • Não obstante tudo o que foi dito acima, 4,2 milhões de euros é uma autêntica barbaridade. Claro que eu, como 99% das pessoas que comentam este assunto, não sabia nada sobre palcos e preços de palcos até hoje. Por isso, antes de comentar falei com quem sabe. A opinião dessas pessoas é de que seria possível fazer melhor (no sentido de mais bonito) por muito, muito menos. Foi-me dito ainda que nem este arquitecto, que é funcionário da Câmara, seria o mais adequado para desenhar este tipo de obra, nem a Mota Engil é a empresa mais adequada para a construir. [A Câmara diz que consultou sete empresas e optou pela mais barata. Seria interessante saber quais as outras empresas e se foi consultada alguma empresa especializada em fabricar palcos.]
  • Há uma outra questão que carece de resposta. Num evento que beneficiou de quatro anos de planeamento, porque é que se esperou até tão tarde para avançar com o projecto e adjudicação da obra do palco? Talvez haja razões legítimas. Se calhar não se podia avançar sem ter uma vaga ideia do número de participantes, mas a verdade é que desde o início que se fala de cerca de um milhão. Isto devia ser explicado também, porque a pressa em concluir a obra e a falta de concurso público podem também ter contribuído para o alto preço

Não me parece que estas questões sejam de impossível resposta. A Câmara tem feito algum esforço para vir esclarecer, mas parece-me que há mais para se explicar. A Igreja tem estado em silêncio, o que é mais difícil de compreender, mas deve-se pôr a hipótese de a Igreja não ter dados à mão para vir prestar esclarecimentos, uma vez que o projecto é da Câmara e a despesa é da Câmara. Em todo o caso, politicamente, o silêncio está a tornar-se pesado e convém que alguém diga, rapidamente, alguma coisa em nome da organização da JMJ. [Entretanto surgiu o comunicado da fundação JMJ, acima mencionado e na quinta-feira o D. Américo fez uma longa conferência de imprensa sobre o assunto].

Fica o desafio para todos os que lêem este artigo para contribuírem para estes esclarecimentos, mas com opiniões fundados e factos, porque os achismos não acrescentam nada nesta fase.

Papa Francisco sobre a homossexualidade: pecado, mas não crime

O Papa Francisco deu uma entrevista à Associated Press em que foi questionado sobre as leis que criminalizam a homossexualidade. 

Respondeu que embora os actos homossexuais sejam pecado, não são crime nem devem ser tratados como tal. 

O Observador pediu-me para comentar estas declarações.

Como transformar 4 em 145 - Uma história de fake news

Fala-se muito em “fake news” hoje em dia, e na maior parte das vezes imaginamos notícias propositadamente deturpadas, enganosas ou simplesmente inventadas, para alcançar algum fim malévolo.

Mas na minha experiência a maior parte das “fake news” que existem devem-se a erros básicos, ignorância e falta de rigor jornalístico por parte de quem as escreve.

Hoje tive um exemplo perfeito disso mesmo.

Esta notícia publicada pela Aciprensa Africa, um respeitável órgão católico, explica que em 2022 foram assassinados 39 padres na Nigéria.

Todos sabemos que a Nigéria está a atravessar um período muito difícil em termos de conflitos inter-religiosos e perseguição dos cristãos, mas um dos meus trabalhos para a fundação Ajuda à Igreja que Sofre ao longo de 2022 foi precisamente de ir mantendo uma tabela com todos os casos de membros do clero ou freiras assassinados, raptados ou detidos em contexto de perseguição, ao longo do ano. E para a Nigéria o número total de assassinados que pudemos confirmar foi 4. Ou seja, menos 35 do que a notícia da Aciprensa. Aliás, 35 é bastante mais do que todos os padres católicos assassinados em 2022 no mundo inteiro! Estranho, no mínimo, mesmo que admitamos que tenha havido mais do que 4, e que tenha havido casos que nos passaram despercebidos.

A notícia da Aciprensa indica como fonte um relatório de um respeitado organismo nigeriano, o SB Morgen Intel. Clicando no link, contudo, percebemos que não existe um relatório, mas um infográfico, intitulado “gráfico da semana”, que pretende mostrar a perseguição sofrida por padres católicos na Nigéria em 2022.


Claramente o problema está aqui. O gráfico, como podem ver, fala em 39 “incidentes”, dos quais resultaram 145 vítimas. Repare-se que “casualties” não significa necessariamente mortes, mas vítimas, que podem ser mortos ou feridos.

Contudo, no canto superior direito existe de facto uma tabela mais pequena que diz indicar o número de “mortes por zona geopolítica” e a soma dessas “mortes” dá de facto 39.

Estou a aguardar uma explicação da SBM Intel, mas sinceramente acho que a explicação mais fácil para isto é de que alguém na organização reciclou um gráfico e se esqueceu de trocar a palavra “mortes” por “incidentes”. Um erro básico e até compreensível.

O problema é que, como se não bastasse alguns estarem a fazer eco dos supostos 39 mortos, já apareceram outros órgãos a expandir ainda mais o número. Assim, o Sahara Reporters conseguiu chegar a 145 padres mortos na Nigéria no espaço de um ano. É só 36 vezes o número real!

E obviamente esse número já foi replicado por incontáveis outros órgãos de informação, blogs, e posts nas redes sociais, por pessoas que não estranharam nem foram capazes de ir verificar.

Isto é fake news, como a conferência episcopal nigeriana já veio confirmar. E é assim que um erro, multiplicado várias vezes, acaba por desvalorizar um número que já por si nos devia chocar, que é a morte de quatro padres, em contexto violento, no espaço de apenas um ano, por tentarem ser fiéis à sua vocação.

Alhos, bugalhos e abusos

Em Agosto de 2018 o Procurador Geral da Pensilvânia, nos EUA, publicou um relatório sobre os abusos sexuais na Igreja na maior parte das dioceses daquele Estado. Não foi o primeiro relatório do género a ser publicado, e vários anos antes tinha sido publicado um relatório semelhante sobre a Arquidiocese de Philadelphia e a Diocese de Altoona-Johnstown, mas o relatório de 2018 foi divulgado apenas algumas semanas depois das revelações bombásticas sobre o ex-Cardeal Theodore McCarrick e o falhanço da Igreja em lidar com décadas de abusos por ele praticados.

Com detalhes de denuncias feitas por mais de 1.000 vítimas, sobre mais de 300 alegados abusadores em seis dioceses, o relatório da Pensilvânia lançou um camião cheio de combustível sobre um incêndio que já estava bem vivo. O resultado abalou a Igreja Católica nos Estados Unidos, provocando danos eclesiais e institucionais com as quais a Igreja terá de lidar, cá e a nível global, durante uma geração ou mais.

Alguns meses depois de ter saído este relatório, Peter Steinfels escreveu um artigo na revista Commonweal para colocar e responder a uma questão que a maioria das pessoas não estava sequer a contemplar. Os crimes descritos no relatório eram terríveis, os números assustadores. Mas a indignação gerada em 2018 tinha tanto a ver com encobrimento como com os crimes originais. Seria mesmo verdade, perguntou Steinfels, que enquanto “padres estavam a violar rapazes e raparigas, os homens de Deus responsáveis por eles não só não faziam nada, como escondiam tudo?”

A Igreja tinha mesmo passado décadas a investir a sua energia e esforços em esconder a verdade em vez de resolver o problema? A conclusão de Steinfels, cuidadosamente sustentada nas próprias conclusões do relatório, foi um claro “não”. Nas suas palavras:

No caso da Pensilvânia, quer se olhe para a forma como se lidaram com denúncias antigas ou para a prevenção de novos casos, a conclusão que surge de uma leitura cuidadosa e isenta do relatório é esta: A Carta de Dallas funcionou. Não funcionou na perfeição, e carece de melhorias regulares e constante atenção. Mas funcionou.

O fogo destrói, mas também pode purificar.

A crise de 2002 conduziu à Carta de Dallas, uma ferramenta imperfeita mas em larga medida eficiente que tornou as paróquias americanas muito mais seguras para crianças e permitiu responsabilizar centenas de abusadores. O novo escândalo de 2018 incentivou a Igreja – não só nos EUA, mas também em Roma – a fazer mudanças significativas na forma como lida com alegações de abusos, em particular as que dizem respeito a bispos e alto clero.

Ninguém deve supor que a conta – material e espiritual – da crise dos abusos já foi inteiramente paga. Nem de longe nem de perto. Nem devemos imaginar que o processo lento de purificação já terminou. Basta um olhar rápido pelas notícias (veja-se os recentes casos envolvendo o Pe Rupnik e D. Ximenes Belo) para se perceber que estamos ainda longe de onde gostaríamos de estar.

A forma como a Igreja lida com alegações de abusos sexuais clericais já progrediu muito, ainda que, duas décadas depois da Carta de Dallas, haja trabalho por fazer. Mas como podemos medir esse progresso? A Igreja está a progredir na protecção de menores em relação a quê? Melhorou muito na promoção da transparência em comparação com o quê?

Consideremos o seguinte.

No início deste ano o Gabinete do Inspector-Geral da Secretaria de Educação de Chicago publicou o seu próprio relatório, abrangendo o período entre 1 de Julho de 2021 e 30 de Junho de 2022. O relatório revela que houve mais de 600 denúncias de abusos praticados por adultos contra estudantes nas Escolas Públicas de Chicago só em 2021-2022. Destas, mais de metade foram consideradas fundamentadas e em 16 casos foram deduzidas acusações criminais.

Chicago é a terceira maior administração escolar dos Estados Unidos e é a única que tem uma unidade inteira de investigação dedicada a lidar com alegações de abusos sexuais nas escolas, uma iniciativa que começou em 2018. (Se é encorajador ou totalmente deprimente que exista sequer uma Unidade de Alegações Sexuais para escolas é uma questão de perspectiva.)

A comparação entre as dioceses católicas da Pensilvânia e as Escolas Públicas de Chicago não é propriamente uma questão de alhos e bugalhos, mas pode ajudar a compreender alguns dos avanços feitos pela Igreja neste país.

Ao longo do mesmo ano tratado pelo relatório da Inspecção-Geral de Chicago (2021) a Igreja Católica em todo o país recebeu 30 denúncias actuais de abusos envolvendo crianças, seis das quais foram consideradas credíveis. Das 3,103 denúncias históricas recebidas por dioceses católicas em 2021, apenas 38 diziam respeito a ofensas alegadamente cometidas depois do ano 2000. Nas escolas públicas de Chicago, repito, houve mais de 600 denúncias, das quais metade foram consideradas fundamentadas. Num só distrito escolar. Num só ano.

Para avaliar o progresso da Igreja em lidar com a crise de abusos é necessário fazer comparações razoáveis com outras instituições que também têm de lidar com a mesma praga de abusos. E isso significa ter expectativas razoáveis sobre a forma como medimos o progresso e o sucesso.

Se quer encontrar listas de professores ou pessoal educativo credivelmente acusados de abusos sexuais, procurará em vão. Não existem políticas de tolerância zero que permitam afastar funcionários escolares por denúncias que nunca são provados em tribunal. Também ninguém defende o casamento dos professores para travar a onda de abusos nas escolas, e o relatório da inspecção-geral de Chicago nunca refere a palavra “clericalismo”.

É claro que a Igreja tem outras responsabilidades morais, precisamente por ser aquilo que alega ser. A conduta dos padres e bispos católicos deve ser medido segundo a bitola do Evangelho, e não dos padrões impostos pela lei civil.

A Igreja não merece nenhum prémio por ser melhor a prevenir e a relatar o abuso sexual de crianças do que o sistema de escolas públicas. Mas deve ser vista – e ver-se – como um modelo para todos os que querem combater a epidemia de abusos sexuais, que afecta toda a sociedade.


Stephen P. White é investigador em Estudos Católicos no Centro de Ética e de Política Pública em Washington.

(Publicado em The Catholic Thing na Quinta-feira, 12 de Janeiro de 2023)

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Friday 20 January 2023

Igreja "portuguesa" destruída na Birmânia e os telhados de vidro dos pecadores

Uma das coisas que mais amo sobre Portugal é o legado humano que os portugueses deixaram em várias partes do mundo. Nos mais recônditos lugares da Ásia, por exemplo, existem comunidades centenárias que se sentem e dizem portuguesas. É o caso dos Bayingyi, na Birmânia, que recentemente viram os soldados da ditadura militar destruir-lhes uma igreja centenária. Porque é que o Governo português não se manifesta contra estes abusos? Também não sei…

Recordo que o episódio do Hospital de Campanha da semana passada foi sobre o Papa Bento XVI. A conversa com o editor Henrique Mota, que conheceu pessoalmente o Papa alemão, foi daquelas que fluiu tão bem, e foi tão interessante, que praticamente nem foi preciso editar no final. Se já ouviram, espero que tenham gostado, se não, ouçam!

As pessoas envelhecem e morrem, é a lei da natureza, e o clero não é excepção. Mas não é todas as semanas que assistimos à morte de dois religiosos centenários. É o caso do Pe. João de Brito, de Lisboa, que morreu aos 100 anos depois de uma vida de notáveis contribuições para a Igreja em Portugal e da irmã André, de França, que aos 118 anos era a mulher mais velha do mundo.

Que tipo de enterro tiveram estas duas figuras? Não faço ideia. Mas suponho que tenha sido um enterro tradicional cristão. Sou capaz de garantir que não optaram pela “compostagem humana”, uma nova moda que ganha terreno entre pessoas que se acham muito sofisticadas, mas que não percebem o horror de tratar o corpo humano como lixo. David G. Bonagura explica porquê no artigo desta semana do The Catholic Thing em português.

A guerra na Ucrânia fez mais vítimas inocentes quando a Rússia lançou mísseis contra um bloco de apartamentos. O líder da Igreja Greco-Católica da Ucrânia pede ao mundo que não deixe passar em branco o “massacre de Dnipro”.

Lembram-se do documento que Roma emitiu há vários anos a explicar porque é que homens homossexuais não deviam ser admitidos ao sacerdócio? Um dos principais autores desse documento acaba de ser suspenso do sacerdócio precisamente por ter abusado de jovens rapazes. Isto levanta, naturalmente, várias perguntas. Neste texto eu faço as perguntas e… não dou qualquer resposta. Mas convido-vos a meditar nelas como eu farei.

Thursday 19 January 2023

O caso Tony Anatrella. Perguntas para meditar...

Pe. Tony Anatrella

Há vários anos, em 2005, saiu um documento de Roma a explicar que pessoas com tendências homossexuais “profundamente radicadas” não devem ser aceites como candidatos para a ordenação sacerdotal. Causou alguma polémica, mas dentro da Igreja penso que muitos viram-no como uma medida necessária para acabar com uma certa subcultura gay entre o clero, sobretudo na Europa Ocidental, que estava a causar grandes problemas.

Em 2016 a instrução foi reafirmada num novo documento. Lembro-me que na altura falei com responsáveis dos seminários de Lisboa que defenderam o documento e que até já estavam, anteriormente, a rejeitar candidatos com atracções homossexuais.

Ao mesmo tempo iam-se conhecendo histórias de homens já ordenados que, sendo homossexuais, não deixavam por isso de ser bons padres, nem levavam vidas devassas, abraçando o celibato.

Julgo que, no fundo, cabia, e cabe, aos formadores nos seminários ajuizar bem entre aqueles que são capazes de controlar os seus impulsos sexuais – seja qual for a orientação – e os que se deixam controlar por eles. Mas isso é tema para outro texto.

A razão deste texto é que há alguns anos surgiram indicações de que um dos padres que contribuiu de forma mais importante para as orientações de 2005 era suspeito de ter abusado de jovens do mesmo sexo, ainda por cima utilizando para o efeito a sua prática clínica de psiquiatra.

Esta semana essas suspeitas foram confirmadas pela decisão de afastar o Pe. Tony Anatrella, que agora tem 81 anos, de qualquer ministério sacerdotal, remetendo-o para uma vida de oração e penitência. Uma revelação como estas leva-nos obviamente a questionar muita coisa e torna-se difícil defender um documento sobre um assunto desta natureza que tenha tido mão de um homem assim.

Cada vez mais, à medida que vão surgindo estes casos, teremos de nos questionar se os pecados dos homens envolvidos, ainda que sejam pecados desta gravidade (e notem que não estamos a falar apenas de homossexualidade, ou sequer de ephebofilia – a atracção por jovens rapazes pós-pubescentes – mas de aproveitamento de uma posição de confiança e de autoridade para manipular e abusar de pessoas vulneráveis) põem em causa todo o resto da sua obra de vida.

É certo que ninguém é a soma dos seus pecados, e isso inclui pedófilos e abusadores, mas haverá pecados que são tão graves que mancham por associação o resto do que fazemos? Uma boa homilia, um bom retiro que nos ajuda, uma obra social levada a cabo, deixam de ter valor porque descobrimos mais tarde que o padre envolvido afinal tinha uma vida escondida? Lembro-me bem do choque que senti quando vi as primeiras revelações sobre Jean Vanier, que sinceramente considerava um santo.

No caso do Pe. Rupnik, de que falei recentemente, as suas obras de arte – que são sem dúvida muito belas – devem ser retiradas das igrejas porque descobrimos os requintes de malvadez dos abusos que ele praticava sobre freiras que supostamente deveria estar a dirigir espiritualmente?

E agora, no caso do Pe. Anatrella, o documento sobre o acesso ao sacerdócio, que com certeza não foi obra de apenas um homem, deve ser totalmente descartado porque descobrimos que nem ele estava em linha com o que estava a recomendar?

Lembram-se do caso McCarrick? Ele foi o principal autor e promotor da Carta de Dallas, que tem revolucionado a forma como a Igreja americana lida com a questão dos abusos sexuais. No entanto, veio-se a descobrir coisas do pior sobre ele também. Devemos descartar a Carta de Dallas?

Eu não tenho as respostas para estas perguntas. Tenho algumas ideias, mas não são bandeiras pelas quais estou disposto a lutar ainda. Acho é que devemos todos – nós que levamos a Igreja a sério e a amamos – pensar a fundo sobre estas questões porque a verdade é que nenhum de nós está a salvo de descobrir que aquele que tanto nos inspirou no passado, ou mesmo agora, afinal tinha telhados de vidro.

Wednesday 18 January 2023

A Compostagem Humana Mete Nojo

David G. Bonagura

Sem grandes alaridos, no final de 2022 a governadora de Nova Iorque, Kathy Hochul, promulgou uma lei autorizando a “redução orgânica natural”, conhecida popularmente como “compostagem humana”. Nova Iorque junta-se assim a outros cinco dos estados mais progressistas do país que já legalizaram a prática. A compostagem humana consiste em aquecer e rodar regularmente um cadáver humano dentro de um contentor cheio de material orgânico. Depois de seis a oito semanas todo o corpo se transforma em solo. Os ossos são depois colocados num incinerador (o eufemismo usado é “cremulador”), e queimado para formar mais solo, que é acrescentado àquilo que era o resto do corpo e lançado a um jardim, floresta, ou outro paraíso hortícola.

É uma nova versão da profecia bíblica: “Lembra-te que és pó, e ao pó tornarás. E tornarás”.

Os argumentos a favor da compostagem humana, recentemente articulados no New York Times, são utilitários, emocionais e filosóficos. Custa menos do que um enterro tradicional e, embora seja mais cara do que a cremação, a incineração de ossos resultantes da compostagem é menos prejudicial para o ambiente. Satisfaz a ligação emocional à terra, que inclui tanto o desejo de regressar a ela como de entrar em comunhão com os outros mortos que ela agora contém. Por fim, representa um novo ritual de morte que tem significado para alguns pelo que, no espírito de relativismo moral, devemos respeitar as escolhas de cada um.

Esta lógica radica num dualismo filosófico que defende a separação radical entre a alma e o corpo. Segundo este princípio, o corpo é acidental, e não essencial, à existência humana. Logo, o corpo pode ser tratado como um mero instrumento: os seus processos naturais podem ser interrompidos, os seus membros saudáveis mutilados para ir ao encontro de uma ideia distorcida, ou pode ser descartado depois da morte, uma vez que a sua ligação à pessoa nunca teve real valor.

A compostagem humana corrói a dignidade da pessoa. Tenho uma compostagem no meu jardim, é para lá que mandamos o nosso lixo orgânico: cascas de banana, sacos de chá, borras de café, cascas de ovo, fruta incomestível e restos de legumes, abóboras podres, depois do Halloween.

O corpo humano não é um pedaço de lixo, é o modo essencial da nossa existência – somos almas incorporadas. A alma não tem qualquer vida, auto-compreensão ou experiências fora do corpo. A pessoa é mais do que o seu corpo, mas não pode viver nem ser conhecido sem ser no seu corpo.

Mesmo fora dos círculos cristãos as pessoas civilizadas acreditam que cada pessoa possui uma dignidade inerente que ninguém pode violar. Por causa da união essencial entre alma e corpo, respeitar essa dignidade implica respeitar também o corpo humano. Não podemos, por exemplo, causar danos físicos a alguém e dizer que estamos a respeitar a sua alma ao mesmo tempo. Por isso condenamos, e bem, o racismo e o sexismo, pois estes atacam a pessoa, devido a aparência do seu corpo. Ao menorizar o corpo, estes preconceitos desumanizam.

Ao reduzir o corpo humano a uma matéria informe, a compostagem humana também é uma forma de desumanização. Se os corpos são dignos de respeito em vida, também o são na morte. É por isso que ao longo de milénios tantas culturas, de tantas religiões diferentes, desenvolveram a prática de sepultar os seus mortos: faze-lo é um acto de homenagem a uma pessoa que em tempos foi filho, filha, irmão, irmã, esposo, pai, amigo ou vizinho de alguém – e deve ser homenageado como tal até na morte.

Contrariamente às aparências, a compostagem humana não acelera um processo natural. Sim, os corpos decompõem-se com o tempo, mas como se a própria natureza nos tivesse a dar uma lição de dignidade humana, aos ossos isso não acontece. Eles permanecem juntos, fixos na terra, como marcadores de um ser intacto, único, a recordação de uma pessoa que outrora viveu. Consideramos os cemitérios terra sagrada porque eles contêm algo especial. Permitimos aos mortos descansar em paz como testemunho ao facto de que eram pessoas que mereciam respeito em vida, e merecem ainda na morte.

Claro que do ponto de vista cristão o argumento para preservar o corpo na morte é ainda mais forte. No Natal celebramos o Deus que se fez homem, um evento que atribuiu à carne humana uma nobreza divina. O corpo humano é de tal forma abençoado por Deus, e de tal forma essencial à existência humana, que a morte traz apenas uma separação temporária da alma e do corpo. No final dos tempos Deus ressuscitará os nossos corpos decaídos da terra e transformá-los-á em corpos espirituais – tal como o de Cristo – com que serão reunidas as nossas almas. Proclamamos essa crença todos os domingos na recitação do Credo: “Espero a ressurreição dos mortos e a vida do mundo que há de vir”.

Quando o Papa Francisco lamenta a nossa “cultura do descarte” contemporânea, que desrespeita os pobres e os marginalizados, implora-nos que recordemos que “Ninguém é descartável!”. A este uso figurativo do termo devemos acrescentar agora, infelizmente, o sentido literal: nenhum ser humano, em vida ou na morte, deve ser descartado como lixo para apodrecer num monte de compostagem.

Não há apelos ao consentimento ou amor pela terra que justifiquem tratar o corpo humano como lixo, transformando-o em terra para embelezar os nossos jardins. A edificação da terra não se pode fazer à custa da dignidade humana, que se decompõe ao mesmo ritmo que o corpo, caso aceitemos tolerar a compostagem como apenas mais uma “escolha de vida”.


David G. Bonagura, Jr. leciona no Seminário de São José, em Nova Iorque. É autor de Steadfast in Faith: Catholicism and the Challenges of Secularism, que será lançado no próximo inverno pela Cluny Media.

(Publicado pela primeira vez na quarta-feira, 11 de Janeiro de 2023 no The Catholic Thing)

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Sunday 15 January 2023

War in Ukraine - Words of relevant religious leaders


In this article I will try to collect the statements and words of relevant relgious leaders regarding the current war in Ukraine. Please feel free to submit any statements you cannot find on here in the comments section, with links please. Any highlights in bold are my own, and intended to point out key passages. Over these two months the list has become very long, and unfortunately Blogger does not provide tools to make it more user-friendly. All statements are published in order of date, with the most recent at the top.

Neste artigo vou juntar as palavras e declarações de líderes religiosos relevantes sobre a actual guerra na Ucrânia. Agradeço que submetam quaisquer declarações em falta nos comentários, com links, por favor. Quaisquer destaques nos textos são da minha responsabilidade, com o objectivo de sublinhar pontos chave. Todos os comentários de líderes internacionais serão postados em inglês. Para compreender melhor as dimensões religiosas deste conflito, leiam este artigo. Ao longo destes dois meses esta lista tornou-se muito extensa e infelizmente o Blogger não tem ferramentas que tornem a pesquisa mais fácil. Todas as declarações estão por ordem de data, a começar pelas mais recentes.

Friday 13 January 2023

O legado de Bento XVI e os avisos do Cardeal Pell

A Igreja despediu-se a semana passada de Bento XVI, num belíssimo funeral presidido por Francisco. Será este o novo normal do Vaticano, a que nos devemos habituar? A resignação vai tornar-se regular? Falámos de tudo isto para o novo episódio do podcast Hospital de Campanha, com Henrique Mota, o fundador da Princípia Editora, provavelmente o homem que mais obras de Bento XVI publicou em língua portuguesa. Henrique Mota também privou algumas vezes com o antigo Papa e neste episódio recordamos a sua personalidade e alguns aspectos da sua teologia que mais nos marcaram.

Não deixem de ler os dois artigos de homenagem a Bento XVI do The Catholic Thing da semana passada, de Robert Royal e de David Warren. O desta semana também é sobre Ratzinger, nomeadamente sobre o seu importantíssimo legado teológico.

Entretanto fomos apanhados de surpresa pela morte de outro homem importante na Igreja, o cardeal australiano George Pell. O cardeal ficou conhecido por ter sido acusado e condenado a pena efectiva de prisão por abusos sexuais, mas depois foi ilibado pelo Supremo. Neste artigo explico que esse episódio da sua vida deve servir de alerta para nós em Portugal, que estamos prestes a receber o relatório da Comissão Independente. O relatório vai provocar muita discussão e muita indignação, mas é bom que não leve a um estado de histerismo, como aconteceu noutros países, e que conduz a injustiças.

Por falar em injustiças, o bispo Rolando Alvarez, de Matagalpa, na Nicarágua, vai mesmo permanecer em prisão preventiva e ser julgado por atentar contra a integridade da nação.

Convido-vos ainda a ler o meu mais recente artigo para a revista World Mission, dos Combonianos na Asia, que por ocasião do Natal recorda-nos que os refugiados do nosso tempo são para nós, ou devem ser, ícones da Sagrada Família.

Podem ainda ler a minha análise das mais recentes declarações do Patriarca Cirilo, de Moscovo, sobre o conflito na Ucrânia, nas quais se mostra particularmente preocupado com a divisão da Igreja, e não tanto com o bombardeamento de alvos civis por parte das forças russas. As declarações completas dele, e de outros, aqui.

Thursday 12 January 2023

Hospital de Campanha - Recordar Bento XVI em conversa com Henrique Mota

Entrámos em 2023 com a notícia da morte do Papa Emérito Bento XVI e o seu funeral celebrado pelo Papa Francisco. Para melhor entender o seu pontificado único, e que tanto nos provocou, convidámos o Henrique Mota, fundador da Editora Principia, que tanto pela sua experiência passada com Bento XVI  como pela edição de tantas das suas publicações nos trouxe histórias e episódios e uma visão próxima desta personalidade que tanto nos marcou.

Pedimos desculpa pelo estático que se ouve ao princípio, mas é só no primeiro minuto do som, depois passa! 

 

Wednesday 11 January 2023

Cardeal Pell, abusos e o perigo do histerismo

Morreu ontem o cardeal australiano George Pell.

O cardeal foi um homem muito importante para a Igreja, sobretudo ao longo da última década. Foi o escolhido pelo Papa Francisco para ajudar a pôr ordem nas finanças do Vaticano, tendo enfrentado forte resistência, e a dada altura viu-se acusado de ter cometido abusos sexuais sobre dois menores na Austrália.

Mesmo os mais avessos às teorias da conspiração, como eu, têm suspeitas de que possa haver uma ligação entre estes dois factos, sobretudo depois de se ter sabido que houve transferências de valores avultados da Santa Sé para a Austrália, ordenadas pelo Cardeal Becciu, um dos seus principais rivais na Curia romana, e que ainda estão por explicar.

Pell foi condenado em primeira e em segunda instância por ter abusado de dois acólitos depois de uma celebração na Catedral de Sidnei, quando era lá arcebispo. Cumpriu pena de prisão efectiva, até que a sua condenação foi revertida pelo Supremo Tribunal australiano, e saiu em liberdade.

Não há palavras para descrever a imensa injustiça que sofreu este homem, mas há aqui uma lição que é importante também para nós em Portugal.

Na altura em que Pell foi acusado e julgado a Austrália estava a acabar de atravessar um longo processo de revelação e investigação de crimes de abuso e de encobrimento por parte da Igreja Católica. Houve um inquérito levado a cabo por uma Comissão Real independente, que chegou a recomendar que fosse levantado o segredo de confissão.

Tudo isto para dizer que o ambiente na Austrália estava no ponto de histerismo para que mesmo num caso em que muito evidentemente não havia qualquer prova de culpa, um homem do estatuto de George Pell acabasse por ser condenado à prisão.

Portugal está neste momento a atravessar o mesmo processo que a Austrália e tantos outros países já atravessaram. Temos tido uma onda de revelações – não um tsunami, mas uma onda – e estamos a aguardar a publicação de um relatório da Comissão Independente, que certamente trará ainda mais casos a público. Gerar-se-á – e bem – uma onda de indignação por estes crimes e por quaisquer eventuais casos de encobrimento que se comprovem.

O que não podemos permitir é que essa indignação chegue ao ponto do histerismo, pois é nesse estado que se cometem injustiças.

O combate aos abusos sexuais, seja dentro seja fora da Igreja, deve ser implacável, mas deve ter sempre como bitola a justiça e a verdade.

Será demais pedir que em Portugal reine a serenidade sobre este assunto nos próximos meses, mas que nunca se caia na injustiça e na mentira, pois isso não beneficia ninguém.

O Legado de Bento XVI: Teologia Ancorada no Logos

Roland Millare
No tempo dos Padres da Igreja não existia qualquer incompatibilidade entre servir a Igreja como intelectual e o chamamento à santidade. O monge do deserto Evgário (c. 346-399) exorta-nos a recordar que “aquele que é teólogo reza”. Durante um bom período, ser santo e ser intelectual era a norma para homens e mulheres como São Tomás de Aquino, São Boaventura, Santa Teresa Benedita da Cruz e São João Paulo II.

Através da sua obra escrita, e pelo testemunho da sua vida, Bento XVI mostrou como devemos praticar a exortação do teólogo suíço Hans Urs von Balthasar, de começar e terminar a teologia “de joelhos”. Por outras palavras, a vocação académica e o chamamento à santidade nunca devem ser mutuamente exclusivos.

Nas suas reflexões sobre a história e o desenvolvimento da teologia na história da Igreja, Bento XVI distingue cuidadosamente entre dois métodos teológicos: o escolástico e o monástico.

A teologia monástica, naturalmente representada por monges (tipicamente abades), dedica-se sobretudo a inspirar e encorajar os desígnios amorosos de Deus, enquanto que a teologia escolástica interessa-se por demonstrar a relação próxima entre a fé e a razão. Os teólogos escolásticos interessam-se em apresentar explanações sistemáticas da razoabilidade da fé e da unidade da revelação divina.

Agora e sempre, espera-se que o Cristianismo possa dar ao mundo razões da sua esperança (1 Pedro 3,15). Todos os crentes devem poder dar uma razão, ou apologia, da sua esperança a quem a pedir neste mundo. A teologia monástica ou a teologia escolástica do período medieval não são capazes, por si, de penetrar os corações empedernidos dos homens e das mulheres dos tempos modernos.

O teólogo no mundo moderno deve beber profundamente da sabedoria de ambos os métodos no estudo, oração, fé e contemplação. Se o teólogo quiser tornar o logos razoável então deve estar profundamente enraizado numa vida alimentada regularmente pelo Logos Encarnado, através da leitura orante das Escrituras, oração mental consistente e a celebração da liturgia.

No que toca à verdade temos dois caminhos distintos: a verdade (logos) que recebemos ou a que construímos para nós mesmos. No decurso do seu trabalho, Ratzinger sublinhou a perspectiva de Giambattista Vico (1668-1774), que distingue entre uma verdade que é exclusivamente produzida (verum quia factum) e uma verdade que nos antecede (verum est ens). Posto assim, esta escolha levou Ratzinger a tomar como sua a tese de Romano Guardini: a primazia do logos sobre o ethos.

A ameaça que nos coloca na pós-modernidade é que a sociedade optou pela escolha de ver a verdade apenas como o produto dos nossos próprios esforços. A verdade torna-se assim sujeita ao capricho individual autónomo, ou à vontade da turba. O juiz Anthony Kennedy, tornou-se o porta-voz desta mentalidade na sua sentença do caso Planned Parenthood v. Casey (1992): “No cerne da liberdade está o direito de cada um definir o seu próprio conceito de existência, de sentido, do universo, e do mistério da vida humana”.

Assim o logos torna-se subordinado ao ethos através do liberalismo e todas as formas de filosofia materialista.

A linha actual na comunicação social tem sido de que a maior contribuição do Pontificado de Bento XVI foi a sua resignação. Mas a história poderá bem demonstrar que ele lembrou a Igreja de como podemos interagir efectivamente com o mundo moderno – em particular o Estado moderno – com a constante mensagem de que a razão, o direito natural, o logos, são capazes, com o assentimento da fé, de alcançar muito mais do que a concepção limitada de razão do homem moderno. Como escreveu James V. Schall, S.J., Bento XVI colocou as fundações para uma teologia da política, ou política filosófica, verdadeiramente cristãs.

Nos seus discursos na Universidade de Ratisbona, no Bundestag alemão, em Westminster Hall, no Reino Unido, e no grande discurso que foi impedido de dar na Universidade La Sapienza, em Roma, Bento XVI explicou a quem estivesse disposto a escutar e a ler cuidadosamente que a sociedade apenas pode florescer com o livre exercício, em conjunto, da fé e da razão.

Bento XVI descreveu a sua própria teologia como “inacabada” ou “fragmentária”, porém, à medida que formos descobrindo os tesouros que se encontram nos seus livros, artigos, homilias e discursos, encontrarmos a rica teologia que está ancorada na Palavra de Deus como nos foi revelada na Escritura e na Tradição, interpretada fielmente pelos Padres da Igreja, em especial por Santo Agostinho.

Embora várias partes da sua sinfonia teológica estejam por terminar, ele desenvolveu os contornos de um método teológico que volta a enfatizar a unidade entre a fé e a razão, Oriente e Ocidente, Escritura e Tradição, antigos e modernos, e muito mais. Desenvolveu uma teologia completamente aberta que entra em diálogos frutíferos com outros.

Bento XVI também deixa à Igreja uma nova teologia missionária que tem o potencial de alcançar a humanidade moderna através tanto da fé como da razão. A descrição da teologia monástica que o próprio faz, resume bem a sua abordagem à teologia:

Fé e razão, em recíproco diálogo, vibram de alegria quando ambas estão animadas pela busca da união íntima com Deus. Quando o amor vivifica a dimensão orante da teologia, o conhecimento, adquirido pela razão, alarga-se. A verdade é procurada com humildade, acolhida com estupefacção e gratidão:  numa palavra, o conhecimento cresce unicamente no amor pela verdade. O amor torna-se inteligência e a teologia, autêntica sabedoria do coração, que orienta e ampara a fé e a vida dos crentes.

Já não temos de “esperar por um São Bento novo e, sem dúvida, muito diferente”, para citar Alasdair MacIntyre, porque Bento XVI foi beber à fonte da Palavra de Deus e à celebração da Sagrada Liturgia para colocar a teologia no caminho definitivo da renovação e da santidade: a face de Jesus Cristo – o eterno Logos.


Roland Millare, STD é Vice-Presidente de Currículo e Director de Programas para Iniciativas do Clero para a Fundação São João Paulo II, em Houston. É doutorado em Sagrada Liturgia pela Universidade Litúrgica, na Universidade St. Mary of the Lake, em Mundalein. É ainda professor assistente de teologia de candidatos ao diaconato na Universidade de St. Thomas, em Houston e na Diocese de Fort Worth. É autor de A Living Sacrifice: Liturgy and Eschatology in Joseph Ratzinger (Emmaus Academic, 2022).

(Publicado pela primeira vez no Sábado, 7 de Janeiro de 2023 em The Catholic Thing)

© 2023 The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de reprodução contacte: info@frinstitute.org

The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing

Wednesday 4 January 2023

Multidões no adeus a Bento XVI

É paradigmático. O Papa que passou o seu pontificado inteiro a surpreender os mais cépticos com a sua popularidade está a fazer o mesmo na morte. As autoridades em Roma esperavam cerca de 30 mil pessoas por dia no velório de Bento XVI, mas os números têm sido mais ou menos o dobro.

O enterro do Papa Bento XVI é amanhã e quem quiser pode acompanhar na SIC Notícias, onde eu estarei, em estúdio, a comentar.

Logo no dia em que o Papa morreu publiquei um post em que coloquei links para os principais artigos, reportagens, etc., sobre Bento XVI. Deixei de o actualizar nos últimos dias, pois a informação já é excessiva, mas convido-vos a ler este meu texto em que elogio a sua capacidade teológica, recordando um episódio que foi de grande importância também nas relações da Igreja com o mundo judaico.

Esta semana o The Catholic Thing publicou uma série de textos de homenagem a Bento XVI, por isso em vez de um artigo mais longo, hoje publiquei no blog dois desses pequenos textos, traduzidos para português. Um é do criador do site, Robert Royal, o outro do comentador David Warren. Ambos valem a pena.  

Há mundo para lá de Roma, e infelizmente as tragédias também não param. Em Moçambique, novo ataque em Cabo Delgado, desta vez a um par de aldeias cristãs.

E a guerra na Ucrânia também continua, tal como o meu acompanhamento das principais declarações dos líderes religiosos relevantes. Os quatro principais foram actualizados ao longo dos últimos dias, com particular destaque para o Patriarca de Moscovo, Cirilo, e para o primaz da Igreja Greco-Católica da Ucrânia, Sviatoslav Shevchuk.

Benedictus qui venit in nomine Domini

Já esperávamos, devido à sua avançada idade e ao facto de o Vaticano ter avisado para a deterioração do seu estado de saúde, que Bento XVI estava perto de entrar para a eternidade. Mas, como sempre acontece quando alguém morre – ainda para mais um amado mestre, um académico, pastor e Papa – quando esse dia chega de facto não deixa de ser um choque, e tudo muda.

Joseph Ratzinger contribuiu de tal forma para a Igreja e para o mundo que o seu nome e legado entrarão agora na grande herança cultural da fé Católica, como matéria permanente para reflexão sobre numerosas coisas, tanto humanas como divinas.

Houve grandes momentos públicos na sua vida que deixaram marcas grandes nas recentes décadas. Por exemplo, foi acusado por alguns de ter sido um progressista durante o Concílio Vaticano II, mas de ter “passado para o lado negro” durante as manifestações estudantis de 1960. Mas uma análise rigorosa dos factos (veja-se, por exemplo, o livro “Bento XVI: Uma Vida”, de Peter Seewald), mostra que essa ideia é simplesmente errada.

O pensamento de Ratzinger movia-se de forma calma, silenciosa, consistente e a uma profundidade que não era afectada nas suas bases pelos tumultos sociais. A sua grande consistência, só por si, é um ponto de referência que deixa grandes saudades.

Os seus alunos mais radicais respeitavam-no – e elogiavam-no – por isso, ainda que tenha vindo a reconhecer os limites do “diálogo” com certo tipo de radicais no meio académico, na Igreja e no mundo em geral. Tratou-se de um discernimento que o serviu bem quando, enquanto bispo e prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, teve de confrontar dissidentes, movimentos como a teologia da libertação e aquilo a que mais tarde veio a chamar o “Concílio dos Média”, que era bem diferente daquele que ele e o jovem Karol Wojtyla tinham ajudado a formar.

Para mim houve um encontro pessoal que resumiu grande parte da sua vida e pensamento. Foi-me pedido que escrevesse a história da Guarda Suíça por ocasião do seu 500º aniversário e ofereci-lhe um exemplar de “The Pope’s Army”, no dia 6 de Maio de 2006. Estávamos rodeados de uma multidão, mas pegou no livro e, tratando-o com o carinho de um verdadeiro bibliófilo, começou a folheá-lo, olhando com atenção para diferentes capítulos, e disse: “Isto é maravilhoso, agora posso ler sobre estes guardas que me protegem”.

A propósito, embora ainda haja muito por esclarecer sobre a sua resignação, os Guardas Suíços disseram-me na altura que, entre outras coisas, ele estava fisicamente exausto a um ponto que era doloroso ver.

Sempre me pareceu que a escolha do nome Bento – um entre dezasseis com o mesmo nome – era um símbolo de muitas coisas em que ele acreditava na sua vida. Benedictus, “abençoado” certamente, por ter nascido quem nasceu, e onde nasceu, e ao longo de uma longa vida. Benedictus, no sentido da continuidade com Bento XV, que quase um século mais cedo lidou com a Primeira Guerra Mundial e com os seus efeitos por todo o mundo. Mas, finalmente, Benedictus porque ainda que fosse Papa – e apesar de tanta sabedoria – era um mero cristão, numa longa linha que remonta ao próprio Cristo.


Robert Royal é editor de The Catholic Thing e presidente do Faith and Reason Institute em Washington D.C. O seu mais recente livro é A Deeper Vision: The Catholic Intellectual Tradition in the Twentieth Century, da Ignatius Press. The God That Did Not Fail: How Religion Built and Sustains the West está também disponível pela Encounter Books.

(Publicado pela primeira vez na Sexta-feira, 2 de Janeiro de 2023 em The Catholic Thing)

© 2023 The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de reprodução contacte: info@frinstitute.org

The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing

Joseph Aloysius Ratzinger

David Warren
Bento XVI estava ainda a “sustentar a Igreja”, nas palavras do seu sucessor, quando chegou notícia de Roma de que estava a morrer. Este frágil e idoso príncipe, encarregado por Deus de fortalecer os fiéis e conduzi-los, terminou agora a sua vida de oração silenciosa na Terra. Nós, que eramos fortalecidos por ele, estamos, por momentos, perdidos; reconduzidos para Cristo, crucificado e ressuscitado. A sabedoria e o conhecimento de Ratzinger juntam-se agora às recordações dos Papas ao longo dos séculos; ele edificou sobre o esplendor do ensinamento católico. A sua voz suave vem somar-se a esse acumulado.

Deixou um registo incomparável de escritos, em muitos volumes de raciocínio sólido e inspiração santa e paciente. Ele foi o Papa encarregado de dar continuidade à missão de São João Paulo II, confirmando o melhor do Concílio Vaticano II, enquanto encerrava os seus efeitos mais conturbados. As suas inovações litúrgicas brilhantes mostravam como isto podia ser feito, e a Igreja há de regressar a elas. Mas tinha um desafio impossível, que humano algum conseguiria cumprir através de um acto de legislação eclesiástica. Contudo, apontou o caminho e mostrou qual a atitude necessária para ser bem-sucedido.

O Papa Bento enfrentou de caras, até ao limite das suas capacidades, a corrupção na Igreja que tinha surgido com a modernidade. Mais uma vez, não venceu todas as batalhas, mas encheu de esperança os bem-intencionados.

Eu adorava o humor gentil e seco com que ele comunicou as suas limitações e possibilidades. Fazia parte da mesma graciosidade com que aceitava as qualidades humanas de quem o rodeava. “Quando faço uma declaração e não recebo críticas, tenho de examinar a minha consciência”, disse, certa vez, com ironia mas a falar a sério. Era este o grande e fiável assessor de João Paulo II, que estava bem preparado para lhe suceder, ainda que à custa da vida de reforma monástica pela qual obviamente ansiava.

Eu amava-o na minha penitência, sabendo que a sua bondade era ilimitada; que as suas ambições eram para a Igreja, e não para si.


David Warren é o ex-director da revista Idler e é cronista no Ottowa Citizen. Tem uma larga experiência no próximo e extreme oriente. O seu blog pessoal chama-se Essays in Idelness.

(Publicado pela primeira vez na Sexta-feira, 2 de Janeiro de 2023 em The Catholic Thing)

© 2023 The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de reprodução contacte: info@frinstitute.org

The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing

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