Thursday 28 April 2022

Vias Sacras, polémicas e obsessões: Hospital de Campanha - Episódio 4

Neste episódio o Duarte, a Inês e eu falamos sobre a Via Sacra de Sexta-feira Santa em Roma, analisando algumas das meditações que este ano se centraram em diferentes tipos de vida familiar, com partilhas extraordinárias.

Mas a Via Sacra foi também alvo de alguma polémica, com os católicos ucranianos a manifestar o seu desagrado pela ideia de juntar uma família ucraniana e outra russa na 13ª Estação. Afinal de contas do que se queixam os ucranianos em relação a Roma e ao Papa Francisco? Têm razões para isso? Falámos bastante sobre o tema.

Por fim, olhámos para a obsessão do Governo e de certos partidos com a legalização da Eutanásia em Portugal.


Ouçam, partilhem, comentem connosco! Nós estamos muito contentes com este projecto e o feedback que temos tido até agora tem sido bastante positivo. 

Podem ouvir no Spotify ou no Google.

Wednesday 27 April 2022

A Resposta Alemã

Stephen P. White
A semana passada 70 bispos de vários países escreveram ao bispo Georg Bätzing, presidente da Conferência Episcopal Alemã, para expressar a sua crescente preocupação com o rumo do “Caminho Sinodal” alemão. (Entretanto outros bispos acrescentaram os seus nomes à carta.) Tratou-se da mais recente de uma série de intervenções a pedir aos alemães para pôr o pé no travão. A resposta do bispo Bätzing, publicada três dias mais tarde, não contribuiu muito para apaziguar essas preocupações.

Na verdade, o bispo Bätzing mostrou-se mais preocupado em descartar do que em confrontar as críticas. Disse-se mesmo “espantado” com as preocupações dos seus irmãos bispos em relação ao Caminho Sinodal, o que não deixa de ser estranho, tendo em conta que o mesmo género de preocupações tem sido expressado publicamente por outros, incluindo os bispos nórdicos, os bispos polacos (em mais do que uma ocasião) e até pelo próprio Papa Francisco.

Segundo Bätzing, o Caminho Sinodal “é precisamente orientado não por teorias sociológicas ou ideológicas, mas rumo às fontes centrais de conhecimento da fé: Escritura e Tradição, o Magistério e Teologia, bem como o sentido de fé dos fiéis e os sinais dos tempos, interpretados à luz do Evangelho”.

“Esta orientação básica”, continua o bispo Bätzing, “determina as considerações do Caminho Sinodal numa cuidadosa reflexão teológica. Logo, não é correcto dizer que existe um perigo de cisma a emanar da Igreja Católica na Alemanha”.

Claro que a preocupação manifestada pelas recentes intervenções episcopais não é de que o Caminho Sinodal tenha deixado de “reflectir” sobre a “Escritura e a Tradição, o Magistério e a Teologia”, mas que a visão germânica destas “fontes centrais” diverge de – e é mesmo incompatível com – o resto da Igreja. A confiança cega nas visões divergentes não diminui o perigo de cisma, muito pelo contrário.

É importante compreender o grau em que a crise dos abusos sexuais moldou o Caminho Sinodal alemão. O bispo Bätzing traça uma ligação clara entre a crise de abusos que abalou o seu país nos últimos anos e a necessidade de reformas significativas. “O Caminho Sinodal”, escreve Bätzing, “é a nossa tentativa, na Alemanha, de confrontar as causas sistemáticas da crise dos abusos e do seu encobrimento, que causou um sofrimento incomensurável a tanta gente na Igreja e através da Igreja.” É uma posição compreensível, e claramente partilhada por muitos na Alemanha”.

À luz desta realidade, algumas das reformas a ser consideradas ou propostas pelo Caminho Sinodal fazem sentido. Por exemplo, reformar o processo de nomeação dos bispos, a formação dos seminaristas e como são tratados os casos de abusos praticados por padres. Estes são assuntos evidentes, se bem que complexos, com os quais muitas igrejas se têm debatido, e continuarão a debater-se durante muitos anos. A Igreja nos Estados Unidos tem a Carta de Dallas há já duas décadas e continuamos a lidar com estas mesmas questões.

Por mais complicadas que sejam algumas destas questões, a criação de padrões de responsabilização, a reforma das nomeações episcopais ou a formação dos seminaristas são, de certa forma, a parte mais fácil. Mudar a cultura clericalista que instintivamente protege os seus é muito mais difícil. O abuso de poder não é um problema que se possa eliminar simplesmente passando o poder de um grupo (clero) para outro (leigos), como se os leigos fossem de alguma forma imunes à tentação de abusar da autoridade. Claro que a concepção da Igreja pela perspectiva do “poder” é, em si, um grave erro.

Na sua carta de 2019 à Igreja alemã, o Papa Francisco alertou para uma espécie de pelagianismo que espera “salvar” a Igreja através de reformas estruturais e organizacionais: 

Seguindo este caminho, a Igreja poderia eliminar tensões da sua vida, estar “em ordem e em sintonia”, mas isso significaria apenas que com o passar do tempo a Igreja adormeceria e o coração do nosso povo ficaria amestrado e mirrado até que a força vital e evangélica que o Espírito nos quer conceder se silenciasse. Este seria o grande pecado da mundanidade e do espírito antievangélico mundano. Teríamos uma Igreja boa, bem-organizada e até “modernizada”, mas sem alma e sem a novidade do Evangelho. Viveríamos num cristianismo vaporoso, sem sabor evangélico.

O Papa Francisco tem feito declarações semelhantes no passado a bispos americanos. As reformas organizacionais são importantes, mas a conversão – e mesmo a evangelização – são mais essenciais.


Por mais que se fale na necessidade de uma reforma sem medos, na sequência da crise de abusos, as propostas mais controversas que nos chegam do Caminho Sinodal alemão não têm qualquer relação evidente com esta crise de abusos. Na verdade, muitas das recomendações que saíram da última sessão do Caminho Sinodal são idênticas ao cardápio de assuntos que os católicos progressistas têm estado a propor há décadas: acabar com o celibato, ordenar mulheres, abandonar os ensinamentos da Igreja sobre a natureza da sexualidade e dos actos humanos (isto é, deixar de parte as proibições “antiquadas” da Igreja sobre a contracepção e os actos homossexuais).

Uma Igreja que perdeu a fé nos seus próprios ensinamentos não pode anunciar o Evangelho de forma credível. E a solução não passa por escolher ensinamentos mais socialmente aceitáveis. A fé na Alemanha não será ressuscitada por uma Igreja que vê nos seus próprios ensinamentos obstáculos a ultrapassar, em vez de uma Boa Nova a proclamar.

E esse é outro ponto que o Papa Francisco levantou com os bispos alemães. “A Igreja começa por se evangelizar a si mesma. Sendo uma comunidade de crentes, uma comunidade de esperança partilhada e vivida, uma comunidade de amor fraterno, precisa de ouvir recorrentemente aquilo em que deve acreditar, as razões para a sua esperança, o novo mandamento do amor”.

Uma Igreja sinodal é uma Igreja que escuta. Ouvimos isto vezes sem conta. Só podemos esperar que a Igreja alemã aprenda a “ouvir recorrentemente aquilo em que deve acreditar”, especialmente numa altura em que o número de bispos a sugerir cautela continua a aumentar.


Stephen P. White é investigador em Estudos Católicos no Centro de Ética e de Política Pública em Washington.

(Publicado em The Catholic Thing no sábado, 23 de Abrilo de 2022)

© 2022 The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de reprodução contacte: info@frinstitute.org

The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing 


Thursday 21 April 2022

Francisco sobre Ucrânia e Ucrânia sobre Francisco, Aleluia, Aleluia!

É justo pôr em causa a posição de Francisco sobre a guerra na Ucrânia? O facto de ele não se ter referido diretamente à Rússia, nem a Putin, significa que não condena a invasão? Porque é que nos últimos dias ele tem sido criticado por alguns líderes católicos da Ucrânia? E o que é que tudo isto tem a ver com as duas senhoras que seguram na cruz nesta foto?

São questões importantes, que analiso aqui, da forma mais simples possível, e que vos aconselho a ler.

Espero que tenham tido todos uma Santa Páscoa! Não se esqueçam que na Ucrânia ainda estão nas vésperas da Sexta-feira Santa. E não é uma metáfora… Estão mesmo. Em todo o caso, este ano, como é sua tradição, o The Catholic Thing publicou no Domingo de Páscoa um texto de uma grande figura católica. Tinham saudades de ler coisas de João Paulo II? Também eu. Esta sua bênção Urbi et Orbi de Domingo de Páscoa de 2001 é uma beleza.

Se ainda não ouviu o podcast Hospital de Campanha da semana passada, aproveite para o fazer agora. Eu e a Inês Dias da Silva conversámos com uma voluntária que esteve na linha da frente no acolhimento a refugiados na Polónia e falámos das virtudes, mas também das fraquezas, deste esforço colectivo.

Depois de vários dias sem o poder fazer, voltei a juntar uma batelada de textos ao post onde tenho recolhido declarações de líderes religiosos sobre a guerra na Ucrânia. Nomeadamente do Papa Francisco, de Sviatoslav Shevchuk, do metropolita Epifânio e uma interessantíssima entrevista dada pelo grão-mufti da Ucrânia, em que explica porque razão grande parte do mundo árabe está no bolso de Moscovo.

A posição de Francisco sobre a Ucrânia, e a posição da Ucrânia sobre Francisco

Nos últimos dias têm surgido alguns sinais de desagrado da parte de figuras religiosas ucranianas, nomeadamente da Igreja Católica, em relação ao Papa Francisco e ao Vaticano.

Há duas grandes razões para esse desagrado:

   1. O facto de Francisco continuar a insistir em manter os planos para se encontrar com o Patriarca Cirilo, de Moscovo, apesar de este teimar em manter a ligação a Vladimir Putin, de falar da guerra na Ucrânia como se tratasse de uma guerra santa e benzer as forças armadas que partem para a Ucrânia para matar ucranianos e ocupar o seu país.

2.   O facto de o Vaticano ter planeado colocar duas famílias – uma russa e uma ucraniana – a carregar juntas a cruz na décima terceira estação da Via Sacra na Sexta-feira Santa.

Acresce que alguns lamentam o facto de Francisco nunca ter referido pelo nome Vladimir Putin, nem a Rússia, nas suas condenações da guerra.

Alguns destes protestos são compreensíveis, outros nem tanto. Mas o que não é aceitável é concluir que Francisco tem uma posição dúbia sobre esta guerra, nem sobre quem é culpado pela tragédia que se está a desenrolar na Ucrânia.

Aqui no blog tenho juntado todas as declarações dos principais líderes religiosos relevantes sobre esta guerra, desde o seu início. Pelas minhas contas, para além do líder da Igreja Greco-Católica da Ucrânia, que divulga todos os dias uma mensagem de vídeo sobre a situação, e do líder da Igreja Ortodoxa Autocéfala da Ucrânia, o Papa Francisco é o que mais se tem expressado sobre o conflito. Eu conto 17 pronunciamentos públicos, para além de quatro gestos significativos: a ida em pessoa à embaixada da Rússia na Santa Sé, o telefonema a Zelensky, o telefonema ao líder da Igreja Greco-Católica e a conversa por videoconferência com o Patriarca de Moscovo.

Mas mais importante que a quantidade é mesmo o conteúdo das declarações do Papa.

·       Francisco começou logo por dizer, no dia 6 de Março, que esta é uma guerra, desmentindo assim linha oficial de Moscovo de que se trata de uma “operação militar especial”.

·      Antes, a 27 de Fevereiro, quarto dia da guerra, referiu-se ao “povo sofredor da Ucrânia” e disse estar de “coração partido” com o que se está a passar.

·   No já referido dia 6 anunciou ainda o envio de dois cardeais para a Ucrânia, em sua representação.

·       No dia 13 de Março pediu que se pusesse fim ao “massacre” de Mariupol e referiu a “barbárie” da matança de crianças. Nesse mesmo dia publicou uma oração especial pelo fim da guerra na Ucrânia em que identifica Cristo com os bebés que nascem debaixo de bombas em Kiev e com as crianças que morrem nos braços das suas mães em Kharkiv, pedindo a Deus que “trave a mão de Caim”, que aqui é claramente identificado com a Rússia.

·     No dia 15 de Março classificou o ataque à Ucrânia como um “abuso perverso do poder e dos interesses partidários”.

·     No dia 20 de Março referiu-se à guerra como uma “agressão violenta contra a Ucrânia” e um “massacre sem sentido”, falando de matanças e atrocidades. Disse ainda que a guerra é desumana e foi mais longe, apelidando-a de “sacrilégio”, no que pode ser entendido com uma resposta aos que a consideraram uma guerra santa.

·     No dia 2 de Abril, em Malta, disse: “Mais uma vez alguma potência, tristemente apanhada em reivindicações anacrónicas de interesse nacional, está a provocar e fomentar conflito”. No mesmo discurso classificou a pretensão russa de invadir a Ucrânia de “infantil” e disse que “essa criancice, infelizmente, não desapareceu. Reemergiu com força nas seduções da autocracia, novas formas de imperialismo, agressividade em larga escala”.

·      No dia 3 de Abril, ainda em Malta, falou na “guerra injusta e selvagem” na Ucrânia e mais tarde, nesse mesmo dia, voltou a dizer que esta guerra, em particular, é um “sacrilégio”.

·     No dia 6 de Abril referiu-se ao massacre em Bucha, um massacre que os russos dizem que nunca aconteceu, e exibiu publicamente uma bandeira da Ucrânia vinda precisamente dessa cidade.

·     No dia 10 de Abril referiu-se aos “odiosos massacres e cruéis atrocidades levadas a cabo contra civis indefesos”.

·      No sermão de Domingo de Ramos, também no dia 10 de Abril, disse que na guerra Cristo volta a ser crucificado.

·      No dia 13 de Abril disse que esta guerra “é um ultraje contra Deus, uma traição blasfema da Ceia do Senhor, uma preferência pelo falso Deus deste mundo”.

·      E finalmente, na bênção Urbi et Orbi, no dia 17 de Abril, Domingo de Páscoa, disse guardar no coração as muitas vítimas ucranianas, descrevendo-as em detalhe.

A tudo isto acresce o envio dos dois cardeais à Ucrânia, e tudo o que eles têm dito e feito para expressar o horror perante a tragédia e a solidariedade para com a Ucrânia, com o cardeal Krajewski a dizer que tal como Cristo, a Ucrânia ressuscitará.

Portanto não, o Papa não se referiu diretamente a Putin, nem invocou o nome da Rússia, mas é preciso uma enorme dose de má vontade para interpretar as suas muitas palavras e gestos desde que esta guerra começou como qualquer coisa que não seja uma duríssima condenação da Rússia e do regime russo, como responsáveis por esta guerra e tudo o que ela espoletou.

Arrumada esta questão, analisemos então as principais queixas dos ucranianos em relação a Francisco.

A insistência do Papa em encontrar-se com Cirilo é de facto complicada de compreender. Cirilo é a figura religiosa que saiu mais desacreditada em todo este conflito. Incapaz de sair debaixo da asa de Vladimir Putin, incapaz de perceber que esta estratégia é um enorme tiro no pé naquilo que ele considera serem os seus principais objectivos estratégicos, nomeadamente manter os ortodoxos ucranianos debaixo da autoridade de Moscovo e, também, de se afirmar como o principal líder na comunhão ortodoxa, remetendo o Patriarca de Constantinopla para segundo lugar, se tanto.

Depois deste terrível fiasco, muito dificilmente Cirilo será levado a sério pelo mundo, incluindo o mundo religioso. Nesse sentido, um encontro com o Papa é tudo o que ele pode desejar para tentar projectar alguma credibilidade. Com tudo o que se tem passado, porque é que o Papa insiste em dar-lhe esta “borla”?

Não posso fingir saber o que se passa na Santa Sé nem no coração do Papa, mas posso especular que o Papa sabe que por mais que Cirilo esteja na lama, neste momento, não deixa de ser o líder da maior Igreja Ortodoxa do mundo, e que o diálogo ecuménico com o mundo ortodoxo nunca irá a lado nenhum sem a Rússia a bordo. Se as outras igrejas ortodoxas estão dispostas a entrar no mesmo barco que Cirilo ou não, é outra questão, interna, mas o Vaticano não pode simplesmente cortar os laços.

Por outro lado, Cirilo sabe que o Papa poderia perfeitamente não fazer isto, sacudir as mãos dele, como muitos fizeram, e por isso é possível que ele se revele agradecido a Francisco pelo gesto de o manter à tona de água, e que isso dê frutos ecuménicos no futuro.

Finalmente, por mais tentador que seja analisar tudo isto pela perspectiva do poder, devemos lembrar-nos que a lógica do Cristianismo não é a do poder e que o Papa sabe isso.

Chegamos assim ao segundo ponto que causou atrito nos últimos dias. A decisão do Vaticano de ter duas famílias, uma russa e outra ucraniana a escrever em conjunto uma das meditações da Via Sacra caiu muito mal na Ucrânia. E não foi só entre ortodoxos, mesmo o Arcebispo-maior Sviatoslav Shevchuk, da Igreja Greco-Católica da Ucrânia, condenou a iniciativa, sugerindo que ela passava a imagem de que o sofrimento dos dois povos era equivalente.

Perante a pressão, o Vaticano cedeu e mudou a meditação, que foi substituída apenas por um apelo à oração silenciosa pela paz, enquanto duas jovens mulheres, uma russa e uma ucraniana, seguravam na cruz.

Mesmo essa versão mais “light” não foi aceite pelos ucranianos, e pela primeira vez em anos os meios de comunicação católicos do país não transmitiram a cerimónia em directo.

Esta reacção dos ucranianos apenas se compreende no contexto da enorme injustiça a que estão a ser sujeitados. Mas compreender não é dar-lhes razão. Pelo contrário, diria que imagens de russos e ucranianos lado-a-lado, a condenar a guerra, são exactamente o que faz falta neste momento. Houvesse mais!

É importante não confundir o regime de Putin com o povo russo e é importante não esquecer que quando esta guerra acabar há dois países enormes e dois povos numerosos e antigos que precisarão de encontrar forma de sarar as feridas e viver em conjunto. Qualquer gesto nesse sentido parece-me ser de louvar em vez de criticar.

Infelizmente estas críticas ucranianas não são novas. Na recente conferência em que participei, organizada pela Capela do Rato, o padre da Igreja Ortodoxa Moldava, que está ligada a Moscovo, disse que tinha tentado ir com padres da Igreja Ortodoxa Russa em Portugal prestar apoio aos refugiados ucranianos que chegaram a Cascais, mas foram impedidos de o fazer por ordem da Embaixada da Ucrânia em Portugal. Convém esclarecer que o padre Petru tem falado abertamente contra a guerra e até – de forma corajosa – contra a liderança da Igreja Ortodoxa Russa, e ainda que os três padres russos em Portugal neste momento são signatários da Carta dos Padres Russos pela Paz, que é dos documentos mais bonitos que já li – do ponto de vista cristão – contra esta guerra. Mantê-los longe de refugiados porque são da “confissão errada” foi uma decisão cruel e injusta.

Esta insistência em ver a realidade de uma perspectiva nacional/étnica é, infelizmente, uma das fraquezas inerentes ao Cristianismo oriental. Mas Roma, por mais que simpatize com a Ucrânia e esteja convencida da razão da sua causa, não pode partilhar dessa visão reduzida.

Wednesday 20 April 2022

Ressurgiu a Vida do Género Humano

João Paulo II
1. “Na ressurreição de Cristo, ressurgiu a vida do género humano”

Que o anúncio pascal chegue a todos os povos da terra

e toda a pessoa de boa vontade se sinta protagonista

neste dia que o Senhor fez,

dia da sua Páscoa,

no qual a Igreja, com sentimentos de júbilo,

proclama que o Senhor ressuscitou verdadeiramente.

Este grito, saído do coração dos discípulos

no primeiro dia depois do sábado,

atravessou os séculos e agora,

neste preciso momento da história,

volta a alentar as esperanças da humanidade

com a certeza imutável da ressurreição de Cristo

Redentor do homem.

2. “Na ressurreição de Cristo, ressurgiu a vida do género humano”.

O espanto incrédulo dos apóstolos e das mulheres,

que tinham ido ao sepulcro ao nascer do sol,

hoje torna-se experiência comum de todo o Povo de Deus.

Enquanto o novo milénio dá os primeiros passos,

desejamos confiar às jovens gerações

a certeza fundamental da nossa existência:

Cristo ressuscitou e n'Ele ressurge a vida do género humano.

“Cristo ontem, Cristo hoje

Cristo sempre, meu Salvador”.

Volta à memória este cântico de fé,

que tantas vezes, ao longo da recente caminhada jubilar,

repetimos, aclamando Aquele

que é “o Alfa e o Ómega, o Primeiro e o Último,

o Princípio e o Fim” (Ap 22, 13).

A Ele permanece fiel a Igreja peregrina

“entre as perseguições do mundo e as consolações de Deus” (S. Agostinho).

Levanta o olhar para Ele e não teme.

Caminha fixando o seu rosto,

e repete aos homens do nosso tempo

que Ele, o Ressuscitado,

é “o mesmo ontem, hoje e sempre” (Heb 13, 8).

3. Naquela dramática Sexta-feira da Paixão,

que viu o Filho do Homem

feito “obediente até à morte

e morte de cruz” (Fil 2, 8),

encerrava-se a existência terrena do Redentor.

Já morto, foi Ele depositado à pressa no sepulcro,

ao ocaso do sol. Ocaso singular aquele!

Aquela hora obscurecida pelas trevas ameaçadoras

marcava o fim do “primeiro acto” da obra da criação,

transtornada pelo pecado.

Parecia o êxito da morte, o triunfo do mal.

Mas não, na hora do gélido silêncio do túmulo,

era levado ao seu pleno cumprimento o desígnio salvífico,

tinha início a “nova criação”.

Feito obediente por amor até ao sacrifício extremo,

Jesus Cristo é agora “exaltado” por Deus

que “Lhe deu um nome que está acima de todo o nome” (Fil 2, 9).

Por este nome, retoma esperança toda a existência humana.

Por este nome, o ser humano

é arrebatado ao poder do pecado e da morte

e devolvido à Vida e ao Amor.

4. Neste dia, o céu e a terra cantam

“o nome” inefável e sublime do Crucificado que ressuscitou,

d'Aquele que realizou o prodígio mais desconcertante da história.

Tudo parece como antes, mas na realidade já nada é como antes.

Ele, Vida que não morre, redimiu

e reabriu à esperança toda a existência humana.

“Passou o que era velho,

eis que tudo se fez novo” (2 Cor 5, 17).

Todo projecto e desígnio do ser humano,

desta nobre e frágil criatura,

tem hoje um “nome” novo em Cristo ressuscitado dos mortos,

porque, n'Ele, “ressurgiu a vida do género humano”.

Realiza-se plenamente, nesta nova criação,

a palavra do Génesis: “E Deus disse:

‘Façamos o homem à nossa imagem,

à nossa semelhança’” (Gen 1, 26).

Na Páscoa, Cristo,

novo Adão que Se tornou “espírito vivificante” (1 Cor 15, 45),

resgata o velho Adão da derrota da morte.

5. Homens e mulheres do terceiro milénio,

a todos se destina o dom pascal da luz,

que põe em fuga as trevas do medo e da tristeza;

a todos se destina o dom da paz de Cristo ressuscitado,

que quebra as cadeias da violência e do ódio.

Redescobri hoje, com alegria e admiração,

que o mundo deixou de ser escravo de acontecimentos inelutáveis.

Este nosso mundo pode mudar:

a paz é possível mesmo em lugares onde há demasiado tempo

se combate e morre, como na Terra Santa e Jerusalém;

é possível nos Balcãs, já não condenados

a uma aflitiva incerteza com o risco

de tornar vã qualquer proposta de acordo.


E tu, África, terra martirizada

por conflitos sempre na espreita,

levanta esperançada a cabeça

confiando na força de Cristo ressuscitado.

Graças à ajuda d'Ele, também tu, Ásia,

berço de seculares tradições espirituais,

podes vencer o desafio da tolerância e da solidariedade.

E tu, América Latina, depósito de jovens promessas,

só em Cristo encontrarás capacidade e coragem

para um desenvolvimento respeitador de todo o ser humano.

Vós, homens e mulheres dos vários Continentes,

extraí do seu túmulo, já vazio para sempre,

o vigor necessário para derrotar

as forças do mal e da morte,

e colocar toda a pesquisa e avanço técnico e social

ao serviço dum futuro melhor para todos.

6. “Na ressurreição de Cristo, ressurgiu a vida do género humano”.

Desde que o vosso túmulo, ó Cristo, foi encontrado vazio

e Cefas, os discípulos, as mulheres,

e “mais de quinhentos irmãos” (1 Cor 15, 6)

Vos viram ressuscitado,

começou o tempo em que a criação inteira

canta o vosso nome ”que está acima de todo o nome”

e espera o vosso regresso definitivo, na glória.

Neste tempo, entre a Páscoa

e a chegada do vosso Reino sem fim,

tempo que se assemelha às dores de um parto (cf. Rom 8, 22),

amparai-nos no compromisso de construir um mundo mais humano,

onde as chagas do sofrimento humano se vão cicatrizando,

graças ao bálsamo do vosso Amor que venceu a morte.

Vítima pascal oferecida pela salvação do mundo,

fazei que não desfaleçamos neste nosso compromisso,

mesmo quando o cansaço tornar pesados os nossos passos.

Vós, ó Rei vitorioso, concedei-nos a nós e ao mundo

a salvação eterna!


O Papa João Paulo II nasceu no dia 18 de Maio de 1920 em Wadowice, na Polónia, e foi eleito Papa no dia 16 de Outubro de 1978. Foi declarado Santo pelo Papa Francisco no dia 27 de Abril, 2014

Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing no Domingo, 17 de Abril de 2022)

© 2022 The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de reprodução contacte: info@frinstitute.org

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Thursday 14 April 2022

Ir à Polónia buscar refugiados. Compaixão, aventureirismo ou loucura?

Todos devemos conhecer pessoas que ao longo das últimas semanas se puseram à estrada para ir buscar refugiados à Polónia, ou outros países na fronteira com a Ucrânia.

Por um lado, esta onda massiva de solidariedade que assolou o nosso país, e outros, é o exemplo acabado do que o Papa Francisco queria dizer quando referiu que a Igreja deve ser um Hospital de Campanha. E é também um acto profundamente evangélico, pois em cada uma daquelas mulheres e crianças perdidas, desesperadas, sem nada, estava Cristo.

Mas quer isso dizer que os métodos estão acima da crítica? Faz sentido ir de carrinha de nove lugares buscar refugiados? E o que dizer da aparente falta de coordenação central dos Governos, e da União Europeia, neste processo todo? E as terríveis histórias de tráfico humano que vamos conhecendo?

Mais que motivo para uma excelente conversa com Inês Tinoco de Faria, que com um grupo de colegas de trabalho montou uma operação de resgate de refugiados que é um exemplo de boa organização, generosidade e sensatez.

É isso que vos oferecemos neste terceiro episódio do Hospital de Campanha. Ouçam, partilhem, comentem! E obrigado pelo vosso apoio.

Caso não tenham ouvido ainda, aqui têm o primeiro e o segundo episódios.

Wednesday 13 April 2022

De regresso do país dos cedros e preocupações sinodais

Nossa Senhora do Líbano,
em Harrissa
Estou de regresso a Portugal, depois de vários dias no Líbano, a conhecer projectos da fundação Ajuda à Igreja que Sofre naquele país. Foi uma experiência fantástica, mas pesada, que espero poder partilhar convosco em breve. Entretanto pode ficar aqui com uma boa ideia, através da entrevista que Catarina Bettencourt Martins, directora da AIS em Portugal e que também esteve presente, deu à Renascença.

Ontem a Comissão Independente que investiga os casos de abusos na Igreja em Portugal apresentou alguns números. São já 290 denúncias e 16 casos enviados para o Ministério Público. A cronologia que mantenho no blog foi devidamente actualizada.

Hoje é dia de novo artigo do The Catholic Thing. Devemos estar preocupados com o “Caminho Sinodal” na Alemanha? Dezenas de bispos no mundo pensam que sim, e assinaram uma carta aberta ao episcopado alemão, precisamente nesse sentido. O artigo da semana passada é de teor mais pessoal, com Stephen White a explicar porque é que a morte prematura do seu pai, em plena Quaresma, tornou esta época ainda mais especial para ele. A ler, sobretudo em vésperas do tríduo pascal!

Continuo a acrescentar, a um ritmo quase diário, excertos de discursos e homilias a esta lista de declarações de líderes religiosos sobre a guerra na Ucrânia. Recentemente coloquei excertos de uma longa carta de um padre da Igreja Ortodoxa da Ucrânia leal a Moscovo, que critica ferozmente a sua própria hierarquia. Vale mesmo a pena ir ver!

Também pode ver aqui a conferência “Para um Ecumenismo de Paz”, da Capela do Rato, em que participei no dia 30 de março, na companhia de figuras muito interessantes, incluindo um padre ucraniano, um moldavo e Paulo Portas.

Amanhã é dia de novo episódio do podcast “Hospital de Campanha”. Se ainda não ouviu o segundo, não perca a oportunidade. A próxima conversa é sobre a resposta dos portugueses à crise dos refugiados ucranianos, e é muito interessante!

70 Bispos Alertam para “Caminho Sinodal” Alemão

Francis X. Maier

Em tempos de desassossego e confusão, tentativas bem-intencionadas de descentralizar uma comunidade ou uma organização podem ter consequências indesejadas. A Igreja não é imune a este facto, e isso é algo que os católicos na Alemanha parecem determinados a comprovar.

Em declarações feitas à revista “Stern”, em finais de Março, o cardeal Reinhard Marx, de Munique, pareceu incentivar alterações ao ensinamento da Igreja em relação à homossexualidade. Reconhecendo que já abençoou casais homossexuais, Marx notou que “o catecismo não está escrito na pedra” acrescentando que “há anos que me sinto mais livre para dizer aquilo que penso, e quero modernizar o ensinamento da Igreja”.

Os comentários de Marx não nos devem surpreender. Estão em linha com o trabalho desenvolvido, até à data, pelo “Caminho Sinodal” alemão, um processo de consulta plurianual em curso na Alemanha. Embora não sejam vinculativos para os líderes da Igreja alemã, os documentos do Caminho Sinodal já expressaram apoio ao celibato opcional para os padres, para bênçãos para uniões homossexuais, revisão do ensinamento da Igreja sobre homossexualidade e ordenação de mulheres, e um papel maior para os leigos na nomeação de bispos.

Especialmente numa altura em que se está a preparar um “sínodo sobre a sinodalidade”, para 2023, o teor do Caminho Sinodal Alemão tem implicações profundamente perturbadoras e, para alguns, cismáticas. No dia 9 de Março os bispos dos países nórdicos expressaram a sua preocupação com o percurso alemão. Isto seguiu-se a uma carta pública divulgada em finais de Fevereiro pelo presidente da Conferência Episcopal polaca. Agora, numa carta de 11 de Abril tornada pública na passada segunda-feira e divulgada pela Catholic News Agency, mais de 70 bispos, incluindo quatro cardeais, dos Estados Unidos, Canadá e África, juntam as suas vozes ao coro de preocupações.

Na sua “Carta Aberta Fraterna aos Nossos Irmãos Bispos na Alemanha”, os signatários notam que “enquanto irmãos bispos, as nossas preocupações incluem, mas não se limitam ao seguinte”:

1. Ao não escutar o Espírito Santo e o Evangelho, as acções do Caminho Sinodal minam a credibilidade da autoridade da Igreja, incluindo a do Papa Francisco; da antropologia cristã e moralidade sexual; e a fiabilidade das Escrituras.

2. Embora incluam ideias e vocabulário religioso, os documentos do Caminho Sinodal Alemão parecem ser inspirados, em grande medida, não pela Escritura e pela Tradição – que de acordo com o Concílio Vaticano II são “um único depósito da Palavra de Deus” – mas antes por análises sociológicas e ideologias políticas contemporâneas, incluindo de género. Eles vêem a Igreja e a sua missão da perspectiva do mundo, e não pela lente das verdades reveladas na Escritura e pela autoridade da Tradição da Igreja.

3. O conteúdo do Caminho Sinodal também parece reinterpretar, e por isso diminuir, o sentido da liberdade cristã. Para o cristão a liberdade está no conhecimento, na vontade e na capacidade desimpedida de fazer o bem. A liberdade não é “autonomia”. A verdadeira liberdade está, como ensina a Igreja, ligada à verdade e ordenada à bondade e, no final de contas, à beatitude. A consciência não cria a verdade, nem é uma questão de preferência pessoal ou autoafirmação. Uma consciência cristã bem formada mantem-se submissa à verdade sobre a natureza humana e às normas que orientam uma vivência recta, revelada por Deus e ensinada pela Igreja de Cristo. Jesus é a verdade, que nos liberta. (Jo. 8)

4. A alegria do Evangelho – que como o Papa Francisco tantas vezes sublinha é uma parte essencial da vida cristã – parece estar totalmente ausente das discussões e dos textos do Caminho Sinodal, uma falha gritante num esforço que procura a renovação pessoal e eclesial.

Cardeal Marx
5. Em quase todo o seu processo, o Caminho Sinodal é o trabalho de peritos e de comissões: cheia de burocracia, obsessivamente crítica e introspectiva. Assim reflecte uma manifestação alargada de esclerose eclesial e, ironicamente, é marcada por um tom antievangélico. Nos seus efeitos, o Caminho Sinodal revela maior submissão e obediência ao mundo e às ideologias que a Jesus Cristo enquanto Senhor e Salvador.

6. O enfoque do Caminho Sinodal no “poder” dentro da Igreja sugere um espírito absolutamente contrário à verdadeira natureza da vida cristã. No final de contas, a Igreja não é apenas uma “instituição”, mas uma comunidade orgânica; não é igualitária, mas familiar, complementar e hierárquica – um povo consolidado no amor por Jesus Cristo e uns pelos outros, em seu nome. Este encontro com Jesus, como visto no Evangelho e nas vidas dos santos ao longo da história, muda corações e mentes, cura, afasta-nos de uma vida de pecado e infelicidade e revela o poder do Evangelho.

7. O pior problema do Caminho Sinodal alemão, e o mais preocupantemente imediato, é terrivelmente irónico. Através do seu exemplo destrutivo, poderá levar alguns bispos e muitos leigos fiéis, a desconfiar da própria ideia de “sinodalidade”, dificultando assim ainda mais a conversa necessária da Igreja sobre o cumprimento da missão de converter e santificar o mundo.

Num tempo de confusão, a última coisa de que a nossa comunidade de fé precisa é de mais do mesmo. Enquanto discernem a vontade do Senhor para a Igreja na Alemanha, asseguramos-vos das nossas orações por vós.

Embora reconhecendo que “muitos dos que estão envolvidos no Caminho Sinodal são sem dúvida pessoas de carácter excelente”, os bispos signatários notam que “a história do Cristianismo está recheada de esforços bem-intencionados que perderam a âncora da Palavra de Deus, num encontro fiel com Jesus Cristo” e numa “verdadeira escuta do Espírito Santo”. Entre esses esforços podemos incluir até a Reforma, que começou quase precisamente há 500 anos… na Alemanha.

O cerne da carta de 11 de Abril está aqui: “A urgência da nossa carta conjunta está enraizada em Romanos 12 e sobretudo na cautela deixada por Paulo: Não se conformem com o mundo. E a sua seriedade deriva da confusão que o Caminho Sinodal já causou e continua a causar, e o perigo de um cisma na vida da Igreja que inevitavelmente resultará”.

Como outros avisaram antes de nós: O que acontece na Alemanha não se fica pela Alemanha. A história já nos ensinou essa lição uma vez.


Francis X. Maier é conselheiro e assistente especial do arcebispo Charles Chaput há 23 anos. Antes serviu como Chefe de Redação do National Catholic Register, entre 1978-93 e secretário para as comunidades da Arquidiocese de Denver entre 1993-96.

Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na terça-feira, 12 de Abril de 2022)

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Tuesday 12 April 2022

Conferência "Para um Ecumenismo da Paz"

 No passado dia 30 de Março tive a honra de participar na conferência "Para um Ecumenismo da Paz", organizado pela Capela do Rato, em Lisboa. Foi online, e a gravação pode ser vista aqui.

Wednesday 6 April 2022

Esperança e Morte

A semana passada marcou o quinto aniversário da morte do meu pai. Tinha apenas 60 anos quando morreu. Morreu durante a Quaresma, o que nunca deixará de me parecer adequado. A Quaresma é uma boa altura para nos recordarmos, por mais doloroso que seja, de como a vida é fugaz. Também é uma boa altura para contemplar a forma como a fragilidade humana é transformada pelos eventos gloriosos para os quais este tempo quaresmal nos prepara.

Para um filho que perdeu o pai é fácil desejar que as coisas não fossem como são. É tentador deter-nos nas inumeráveis possibilidades do que poderia ter sido – netos que ficaram por conhecer, músicas por cantar, alegrias por partilhar. Mas deixarmo-nos levar por essa tristeza – e admito que há uma certa doçura em fazê-lo – apenas disfarça a belíssima gratuidade da vida, por mais breve que seja. O facto de tudo não ser como eu gostaria é um pequeníssimo preço a pagar por ter existido de todo.

A Quaresma é um tempo de preparação, de olhar para o futuro. De certa forma a Quaresma é-me mais cara desde que o meu pai morreu. A esperança da Páscoa é a esperança do que há de vir, a esperança da restauração, da ressurreição. Mas a esperança não é só para o futuro. A esperança muda o espectro de como podemos sofrer, daquilo pelo qual estamos dispostos a sofrer. A esperança permite-nos, como São Paulo, contar tudo o que seja o aqui e agora como perda. A esperança liberta-nos. 

Há um episódio da grande série da HBO sobre a II Guerra Mundial, “Band of Brothers”, sobre o qual penso com frequência e que ilustra esta questão. O cabo Albert Blithe salta de paraquedas para a Normandia na véspera do Dia-D. No caos que se segue, separa-se do seu pelotão. Mas em vez de partir em busca dos seus camaradas, Blithe esconde-se numa valeta, por baixo de uma sebe, com medo. Tal é o pânico, que sofre de “cegueira histérica”. Ou seja, teve tanto medo que ficou literalmente sem ver.

Blithe acaba por recuperar a visão e reagrupa-se com os seus camaradas, mas está assombrado por o que considera ser a sua cobardia – um sentimento reforçado pelos actos de bravura que testemunha à sua volta. Certa noite, na linha da frente, Blithe encontra o Tenente Speirs, um homem com uma reputação de brutalidade sanguinária. Blithe decide confessar a sua cobardia a Speirs e a resposta que este lhe dá, sobre o medo face à morte, ficou na minha memória.

Speirs: Sabes porque é que te escondeste nessa valeta, Blithe?

Blithe: Estava com medo…

Speirs: Todos temos medo. Tu escondeste-te naquela valeta porque achas que ainda há esperança. Mas, Blithe, a única esperança que tens está em aceitar o facto de já estares morto. E quanto mais depressa o aceitares, mais depressa conseguirás agir como um soldado deve agir, sem misericórdia, sem compaixão, sem remorsos. Toda a guerra depende disso.

Esta visão de Speirs é obscura e pagã. Mas se a sua visão é pagã também possui um certo realismo. A falsa esperança da autopreservação, a falsa esperança de que podemos adiar indefinidamente a morte, leva apenas a paralisia e medo ofuscantes (literalmente, no caso de Blithe). Se a morte significa o aniquilamento e o esquecimento, então a única opção que temos perante a morte é a aceitação. Esta realização livra-nos da cegueira da falsa esperança e permite-nos ver com mais claridade a tarefa que temos pela frente.

E São Paulo, que sabe uma coisa ou duas sobre cegueira, concorda! “Se é somente para esta vida que temos esperança em Cristo, somos, de todos os homens, os desgraçados”. Speirs aconselha Blithe a abandonar a esperança para poder ver claramente a difícil tarefa que tem de desempenhar. Tal como Speirs, também Paulo sabe que a sua vida está perdida. Mas uma vez que ele vê pelos olhos da fé – “Fui crucificado com Cristo, porém já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim” – a visão de Paulo estende-se não só para o que fica deste lado da morte, mas através dela e mais além.

Como o Papa Bento XVI escreveu na Spe Salvi, “o Evangelho não é apenas uma comunicação de realidades que se podem saber, mas uma comunicação que gera factos e muda a vida. A porta tenebrosa do tempo, do futuro, foi aberta de par em par. Quem tem esperança, vive diversamente; foi-lhe dada uma vida nova.”

Acrescente-se a esperança Cristã, nascida da fé, à inevitabilidade da morte e toda a experiência humana se altera. A esperança cristã não previne a morte. A esperança cristã não atrasa sequer a morte. Mas uma vez que a esperança cristã é a esperança na vida eterna, altera completamente a forma como vivemos o aqui e o agora. A nossa esperança por aquilo que virá liberta-nos da necessidade de nos agarrarmos demais à vida. A esperança permite-nos viver a nossa vida generosamente e sem medo. A esperança liberta-nos para enfrentar a Cruz e abraçá-la.

Este é o coração da Boa Nova: A esperança, nascida da fé, liberta-nos para o amor. Aquele que tenta salvar a sua própria vida – para preservar aquilo que no final de contas não pode ser preservado – perdê-la-á. Quem perder a sua vida por amor – aquele que sabe que já morreu em Cristo, e para quem tudo o resto é perda – é quem receberá a vida eterna.

A nossa esperança não está em prevenir ou evitar a morte, mas em aceitar o facto de já termos morrido em Cristo. Quanto mais cedo aceitarmos isso, mais depressa poderemos viver como um cristão deve viver: cheios de misericórdia, cheios de compaixão, e cheios de esperança.

A Quaresma é um tempo em que devemos praticar a morte: morrer para nós mesmos de formas pequenas e grandes. Para o mundo isto é mera cegueira. Mas as muitas mortes da Quaresma são uma lembrança da nossa esperança que nos liberta para viver a Páscoa… E tudo o que fica adiante.


Stephen P. White é investigador em Estudos Católicos no Centro de Ética e de Política Pública em Washington.

(Publicado em The Catholic Thing na terça-feira, 29 de Março de 2022)


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Friday 1 April 2022

A reforma da Cúria interessa? Mais do que pensa!

Um dos eventos mais importantes de Março na Igreja Católica foi a publicação de uma reforma da Cúria Romana. Esta foi sempre uma das grandes bandeiras do pontificado de Francisco e levou nove anos a preparar. Ainda assim, a maioria dos leigos pensa que não é nada connosco. Pois enganam-se. Para ajudar a compreender a importância desta medida convidámos o vaticanista Octávio Carmo para participar no segundo episódio do podcast Hospital de Campanha, que já está no ar e podem ouvir aqui.

De resto, neste episódio falamos também de como a Guerra na Ucrânia vai afectar as relações ecuménicas, e sobre a Consagração da Rússia e da Ucrânia a Nossa Senhora. Esse foi também o tema de duas das minhas intervenções na CNN Portugal, na sexta-feira passada, bem como da minha participação no programa da Ecclesia, na RTP2 e ainda o artigo publicado no site dos jesuítas, PontoSJ.

Continuo a coligir as principais declarações de líderes religiosos relevantes desta guerra neste artigo do meu blog.

O artigo do The Catholic Thing desta semana é do Robert Royal. No seu texto ele elogia muito o Papa por ter tido a iniciativa de fazer a consagração, mas discorda com ele em relação ao conceito de Guerra Justa. Podem ler aqui.

Uma constante desta guerra tem sido a fidelidade e persistência de padres e freiras na Ucrânia que não abandonam as suas comunidades. Há exemplos aqui e uma tocante história de um missionário brasileiro que também ficou com o seu povo naquele país martirizado.

Termino comentando que por mais que esta guerra terrível me entristeça, tem sido interessantíssimo observar muitos jornalistas do “mainstream” a compreender a trabalhar tão bem a dimensão religiosa do conflito. Temos tido vários exemplos, em diversos meios de comunicação, mas deixo-vos com este texto do Diário de Notícias que vale bem a pena ler.

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