Friday 27 October 2023

Abusos – Números baralhados

Na passada quarta-feira surgiu uma notícia sobre o número de padres que foram cautelarmente afastados por suspeita de abuso sexual de menores ou pessoas vulneráveis, desde que saiu o relatório da Comissão Independente.

Alguns órgãos de informação citaram uma nota da CEP que dizia o seguinte:

Por via do relatório da Comissão Independente foram afastados oito membros do Clero, tendo regressado ao exercício do ministério seis sacerdotes, mantendo-se dois afastados.

Para além do número anteriormente apresentado foram afastados nove membros do clero e um leigo com responsabilidades paroquiais, tendo dois sacerdotes regressado ao exercício do ministério, mantendo-se os demais afastados, bem como o citado leigo.

Como vamos ver de seguida, estes números estão completamente errados.

Na verdade, o número de padres que foram afastados por via do relatório da Comissão Independente foram 15, dos quais continuam afastados nove. O número de padres afastados por via das comissões diocesanas, já depois do relatório, é três, e não nove, mais dois leigos, e não um.

Como é que isto aconteceu?

Ao que apurei, surgiu um pedido da comunicação social sobre o assunto. Perante esse pedido, a Coordenação Nacional das Comissões Diocesanas de Protecção de Menores e Adultos Vulneráveis, pediu um levantamento a todas as comissões diocesanas. Essa informação foi sistematizada e enviada para a CEP, que emitiu o comunicado.

O que se passou foi que a informação que veio das comissões diocesanas continha erros, e esses erros não foram detectados, tendo chegado ao comunicado final. Já vamos ver quais são os erros, mas para quem não tem paciência para ler os detalhes todos, deixo primeiro as conclusões.

Nojo e dados confusos

E a primeira conclusão é que isto é difícil. É difícil para já porque é uma matéria que impressiona e mete nojo. Ninguém mergulha nestas histórias por gosto, e por isso mesmo poucos são os que se dedicam a analisar dados e cruzar números.

Depois há o problema dos próprios números e das discrepâncias naturais que podem surgir quando falamos de casos que frequentemente são muito diferentes. Por exemplo, quando saíram as listas da Comissão Independente várias dioceses referiram que tinham nas suas listas nomes de padres sem nomeação. O que é que significa estar sem nomeação? O problema é esse, pode significar muita coisa. Pode significar que o padre está velho, incapacitado e num lar; mas também pode querer dizer que o padre fugiu do país e está em parte incerta; ou que está a estudar; ou que o bispo o deixou “na prateleira” por uma ou outra razão. Uma mesma resposta pode cobrir muitas realidades diferentes.

Também houve casos em que as dioceses receberam na lista nomes de padres que já estavam com processos abertos, ou até já estavam cautelarmente afastados. Nesses casos as dioceses contabilizam esse afastamento como sendo por via da Comissão Independente, ou não? Se calhar uns até fazem de uma forma e outros de outra, mas há espaço para se criarem aqui discrepâncias.

Uma coisa posso assegurar, pelo menos daquilo que tenho conseguido perceber com as pessoas com quem vou falando. Cometem-se erros, sim – e aqui estamos a falar de erros de tratamento de dados, e não na forma como se lidam com os próprios casos de abuso – mas isso não significa que as pessoas estão a agir de má vontade ou a tentar esconder alguma coisa.

Mas é preciso muito cuidado a tratar estes números, porque com tantos casos que surgem, por vezes com detalhes, outras sem; de 21 dioceses diferentes, e ainda de mais não sei quantas ordens religiosas; às vezes com informação duplicada, ou mal identificada, é facílimo perdermo-nos. Eu passo muito, mas mesmo muito tempo a manter as minhas bases de dados sobre esta matéria o mais completas possível. Mas a maioria dos jornalistas não tem tempo nem conhecimentos para ir esquartejar os números em detalhe para ver se estão correctos ou não.

O problema é que quando os números errados entram em circulação nos media, facilmente esse erro se torna um “factoid” que é replicado vezes sem conta.

Os detalhes

Dito isto, passemos então ao esquartejamento dos dados.

Sobre os padres que foram suspensos por via do relatório da Comissão Independente, ou mais precisamente das listas que foram entregues, a nota da CEP falava em oito membros do clero afastados, dos quais seis já regressaram ao activo e dois mantêm-se afastados.

Não vou explicar quais as respostas das comissões diocesanas que induziram em erro a Coordenação Nacional das Comissões Diocesanas, limito-me a indicar quais são os números correctos:

Lisboa – Foram afastados quatro padres, dos quais três já foram reintegrados e um tem o processo ainda a decorrer.

Porto – Foram afastados três padres, todos os processos ainda decorrem. Decorrem ainda processos de quatro padres que nunca foram afastados, embora nunca tenha sido explicado porquê.

Évora – Foi afastado um padre, cujo processo ainda decorre.

Braga – Foi afastado um padre, cujo processo ainda decorre.

Angra – Foram afastados dois padres, cujos processos ainda decorrem.

Guarda – Foi afastado um padre, que já foi reintegrado. Este processo, se bem se recordam, não foi linear. O bispo começou por dizer que não o iria afastar, mas mais tarde acabou por fazê-lo.

Vila Real – Foi afastado um padre, que já foi reintegrado. Este processo também não foi linear, uma vez que o padre foi imediatamente afastado, mas por ser originário da diocese de Setúbal demorou algum tempo até se decidir que seria julgado por Vila Real.

Viseu – A lista da comissão independente incluía o nome de um padre que já estava afastado na altura. Compreende-se assim que a Comissão Diocesana diga que este sacerdote não foi afastado por via do relatório da Comissão Independente, mas de facto é um padre que constava da lista e que se mantém afastado.

Assim, temos um total de 14 padres afastados, dos quais cinco foram reintegrados e nove continuam afastados. Acresce a este total um padre capuchinho que foi afastado e posteriormente reintegrado, o que eleva o número para 15. É natural, contudo, que os dados da CEP, que tinham por base os das Comissões Diocesanas, não incluíssem este membro de uma ordem religiosa.

Como se pode ver, a discrepância ainda é significativa. Não foram oito os padres afastados, foram 15, foram de facto seis os reintegrados, mas só se incluirmos o capuchinho, pelo que o número apresentado pela CEP estava errado, e não são dois os que se mantêm afastados, são seis. Ou seja, em três valores, nenhum está correcto.

Passemos então aos números dos que foram afastados por via de processos posteriores à publicação do Relatório Independente e entrega das listas às dioceses e às ordens religiosas.

A CEP indica que são nove membros do clero e um leigo com responsabilidades paroquiais, para um total de 10 pessoas. Também aqui os números estão mal, mas por dois erros mais simples. Num caso a diocese indicou como membro do clero um suspeito de abusos que, afinal, é leigo, o que muda o número para oito clérigos e dois leigos. Contudo, o número de clérigos também está errado, uma vez que uma das dioceses, que tinha indicado cinco padres afastados por via das listas, depois duplicou por engano este valor quando respondia sobre afastamentos por via das Comissões Independentes, pelo que é necessário retirar esses cinco aos oito, para um total de três clérigos. (O valor de cinco padres afastados por via das listas também estava errado, entretanto…) Destes três, dois já terão sido reintegrados.

Resumindo, nesta categoria houve um total de três padres e dois leigos afastados, dos quais se mantêm afastados um padre e dois leigos.

E são estes os números. Como disse, não é fácil nem é simples ter isto tudo sistematizado e organizado. É precisamente para ajudar que eu mantenho no meu blog três posts que são ferramentas fundamentais para analisar esta questão. Consultem-nos à vontade, e não deixem de me apontar eventuais erros que encontrem, ou informações em falta.

Cronologia dos casos de abusos sexuais na Igreja em Portugal

O que sabemos das listas dos abusadores compostas pela Comissão Independente

Abusos em Portugal – O que já sabemos, o que falta saber

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