Thursday, 30 November 2023

O caso do castigo ao Cardeal Burke

Tem circulado esta semana a informação de que o Papa Francisco pretende castigar o Cardeal Raymond Leo Burke, retirando-lhe o apartamento onde vive no Vaticano, e o seu estipêndio. A razão por detrás do castigo será o facto de o Cardeal Burke ser um instigador de desunião na Igreja.

Existem diferentes versões do que se terá passado, que analisarei adiante. Mas antes de mais convém explicar quem é o Cardeal Burke.

O homem das Dubia

Raymond Burke é um cardeal americano. Especialista em Direito Canónico, serviu durante muitos anos na Signatura Apostolica, o tribunal canónico da Santa Sé, tendo chegado a ser prefeito da mesma. Conhecido por ser conservador, cedo no pontificado de Francisco se começou a perceber que ele não estaria alinhado com o estilo e, em larga medida, o conteúdo do mesmo.

O primeiro grande choque do cardeal com o Papa foi depois da publicação do Amoris Laetitia, em que Burke, juntamente com outros três cardeais – dois dos quais já morreram – endereçaram ao Papa uma série de perguntas, pedindo respostas na forma de “Sim” ou “Não”, conhecidas como “Dubia”. A questão das dúbia tornou-se uma autêntica novela, com o Papa a recusar responder e os cardeais a divulgar publicamente as questões que tinham feito, e o facto de terem ficado sem resposta.

Burke também se opôs ao Sínodo sobre a sinodalidade, que se realizou em Outubro, tendo participado num evento paralelo, organizado por opositores ao Papa Francisco, em Roma, chamado “A Torre de Babel Sinodal”.

Mais recentemente Burke voltou a enviar umas dubia ao Papa, acompanhado agora de outros quatro cardeais, incluindo Brandmüller, sobrevivente da primeira volta. Desta vez o Papa respondeu, em texto corrido, mas descontentes, os cardeais reformularam as perguntas e exigiram do Papa respostas na forma de “Sim” ou “Não”, publicando o pedido. O Vaticano publicou então as primeiras respostas, ignorando o segundo apelo.

O castigo

Depois de tudo isto, emergiu recentemente que o Papa Francisco teria dito, numa reunião com os líderes dos dicastérios em Roma, que pretendia aplicar um castigo a Burke, retirando-lhe o apartamento e o salário.

Nas versões que circulam em sites tradicionalistas, o Papa é citado como tendo dito “Burke é meu inimigo, por isso vou retirar-lhe o apartamento e o estipêndio”. Segundo as fontes mais credíveis que eu tenho conseguido consultar, esta versão é falsa. O termo “inimigo” nunca foi usado. Isto é importante, porque o termo transmite a ideia de uma vingança, ou uma birra. Contudo, as medidas serão verdade, de facto, confirmado pelo próprio Papa a um dos seus mais fiéis defensores, Austen Ivereigh. O Papa, aparentemente, não queria que as medidas fossem tornadas públicas, mas alguém presente na reunião divulgou a informação.

Esta medida era necessária?

Estabelecidos os factos, vale a pena ponderar a questão. Será que a medida do Papa era necessária?

Ivereigh, sem grandes surpresas, argumenta que sim, dizendo que o Papa até já tinha demonstrado muita paciência com um cardeal que, contrariamente aos votos que faz quando é elevado ao cargo, estaria a opor-se ao seu ministério.

O voto a que Ivereigh se refere é este: “Prometo e juro permanecer, a partir de agora e para sempre enquanto tiver vida, fiel a Cristo e ao seu Evangelho, constantemente obediente à Santa Apostólica Igreja Romana. A são Pedro na pessoa do Sumo Pontífice e aos seus sucessores canonicamente eleitos.”

Segundo Ivereigh, ao propor um magistério alternativo, questionando e pondo em causa as decisões e medidas de Francisco, Burke estaria a violar esse voto.

O sistema político britânico tem um conceito muito engraçado. Quem manda no país é o “Governo de Sua Majestade” e aos seus adversários, no Parlamento, chama-se “a lealíssima oposição de Sua Majestade”. Faz falta em todo o lado, e também na Igreja, o conceito de uma oposição leal, a ideia de que é possível ser leal a alguém, e ao seu cargo, discordando, todavia, do seu rumo e até dando voz a essa discordância. Discordância não equivale a traição ou a deslealdade.

Será que isto se aplica sempre? Evidentemente não. Há dois casos na história deste pontificado que o ilustram perfeitamente. Um é o Arcebispo Viganò. Quando Viganò começou a criticar o Papa e o seu magistério, Francisco causou alguma surpresa ao recusar castigá-lo, aplicar medidas canónicas contra ele, ou sequer responder. Mas o tempo veio a dar-lhe razão, uma vez que Viganò, deixado a falar sozinho, acabou por se remeter para o espaço das teorias da conspiração e da loucura total. Mais recentemente tivemos também o caso do Bispo Joseph Strickland, que é muito claramente um homem insensato e desequilibrado, que também disparatava contra Francisco, e ainda por cima, ao que tudo indica, geria pessimamente a sua diocese. Aqui Francisco agiu – talvez tarde de mais – pedindo ao bispo que apresentasse a sua resignação, e quando não o fez, retirou-o de funções.

Burke está neste campeonato? Não acredito. Eu tive o privilégio de estar com o Cardeal Burke uma vez, em Roma, durante um curso que fiz na Universidade de Santa Croce para jornalistas. Digo privilégio, porque é sempre um privilégio estar com pessoas simpáticas e boas e Burke deixou-nos a todos com a impressão de ser uma pessoa boa, muito simpática e paciente. Isso quer dizer que eu concordo com tudo o que ele diz ou faz? Longe disso. Acho que ele está muito enganado no que diz respeito ao pontificado de Francisco, mas acho, e essa é para mim a chave, que ele é movido de intenções sinceras e que a oposição que faz é uma oposição leal, que talvez tenha sido insensato numa ou noutra ocasião, sobretudo deixando-se colar ou ser usado por forças mais radicais, mas sem nunca entrar ele mesmo em maledicência contra o Papa.

J. D. Flynn, um dos meus editores no The Pillar, dos EUA, escreveu o seguinte numa análise a esta questão: “Embora ele se pronuncie de forma aberta sobre questões eclesiásticas, como ele as entende, Burke não tem feitio para falar publicamente sobre uma desfeita pessoal – aliás, estive na sua companhia várias vezes ao longo dos últimos anos e nunca o ouvi falar mal do Papa pessoalmente, ou da sua decisão de o retirar das posições de liderança que desempenhava. Na verdade, já vi Burke ficar visivelmente desconfortável na presença de católicos que insultavam pessoalmente Francisco, em vez de criticar apenas a sua abordagem teológica ou estilo de liderança”.

Por tudo isto, acho sinceramente que o Papa teria feito melhor em não tomar a medida que tomou, ou que se prepara para tomar. Se a presença de Burke em Roma o deixa desconfortável então acredito que poderia ter pedido ao cardeal americano para regressar ao seu país, o que não seria escândalo ou surpresa, uma vez que Burke já fez 75 anos e por isso está na idade da reforma, e ainda por cima tem família e um santuário do qual é reitor nos Estados Unidos, portanto teria o que fazer e com quem estar.

É verdade que Burke é fonte de desunião? Eu diria antes que é verdade que a Igreja está desunida – não há como o negar – e que Burke é uma das figuras dessa desunião, mas ainda assim é das figuras com quem se pode dialogar de forma fraternal. Castigá-lo, de uma forma que facilmente pode ser interpretada – bem ou mal – como vingativa, não só não resolve a questão da desunião, como a agrava, pois transforma-o em vítima e permite aos opositores pintar Francisco como um homem vingativo que prega a misericórdia, mas não a pratica.

Uma questão acessória

Há uma outra questão que aparece associada a esta: Faz sentido um cardeal sem cargos que exijam a sua presença permanente na Santa Sé continuar a viver no Vaticano, num apartamento luxuoso subsidiado e com ordenado de mais de cinco mil euros por mês?

Numa altura em que tanto se critica o clericalismo, carreirismo e despesas em Roma, penso que a resposta é evidente. Acredito que seja bom para alguém que está há anos a viver em Roma poder continuar a fazê-lo depois da reforma, mas do ponto de vista de política económica do Vaticano não faz sentido nenhum.

Agora, isso aplica-se a Burke e a tantos outros que estarão nessa posição. Usar este argumento agora, especificamente para Burke, é mesquinho, até porque não foi essa a razão invocada pelo Papa para as medidas que tomou.

Se queremos discutir o que fazer a cardeais reformados, que o façamos, mas não misturemos as coisas, pois ninguém ganha com isso.

11 comments:

  1. Rezar muito mesmo pelo Francisco.....

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    1. Um verdadeiro católico chama-lhe Papa Francisco

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  2. “Bispo Joseph Strickland, que é muito claramente um homem insensato e desequilibrado, que também disparatava contra Francisco, e ainda por cima, ao que tudo indica, geria pessimamente a sua diocese”

    Que dados existem para fazer estas 4 afirmações?

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    1. Aguardamos esses fidedignos dados...

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    2. Estou muito curioso nesses alegados dados

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  3. Ainda bem que temos aqui alguém que sabe dizer aos outros o que eque diz "um verdadeiro católico". Ainda bem que Cristo não era "recta pronúncias" como os "verdadeiros católicos" ou o evangelho teria que ter sido publicado em vários volumes!

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  4. Estamos a falar de estipêndio, salário ou pensão? Dado que o Cardeal Burke é prefeito emérito e foi um servidor da Signatura Apostólica durante muitos anos, uma pensão ser-lhe-á devida, calculo... Ou não é assim? Peço esclarecimentos

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    1. Estipendio de habitação, tanto quanto percebo.

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  5. O Papa Francisco é um calvário para quem quer que nada mude na Igreja, mas, simultaneamente, não o pode dizer em aberto, porque, precisamente, uma das coisas que caracteriza os conservadores, é a obediência ao Papa - seja ele qual for. Que quadratura de círculo tão angustiante que isto deve ser para essas pessoas!

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  6. Começo por dizer que o texto do Filipe tem adjectivos a mais, sobretudo o de qualificar de “luxuoso” o apartamento do Cardeal Burke. Filipe, foi lá vê-lo, ou teve um testemunho a este respeito de alguém que qualifica como pessoa credível?
    Quanto ao montante que o Cardeal recebe que o Filipe diz que é “ordenado “, segundo John Allen- da Crux, Last week in the Church, este refere-se ao que está à disposição do Cardeal para pagar os vencimentos dos que dele dependem para além das suas despesas próprias. Além disso um Cardeal que serviu a Igreja toda a sua vida, não merece uma pensão de reforma?

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  7. Afinal há ou não argumentos para o que foi dito do Bispo Strickland??

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