A declaração Fiducia
Supplicans causou bastante polémica na Igreja, com o Dicastério para a Doutrina
da Fé a anunciar que pessoas em uniões homossexuais podem receber bênçãos. Sem
surpresas, a ideia que passou para o mundo foi de que o Papa acabava de aprovar
a bênção de uniões homossexuais, apesar de o texto dizer explicitamente que a
bênção é para as pessoas, e em caso algum para a relação em si.
No seguimento dessa declaração
aconteceu um facto muito pouco comum, com muitos padres, bispos, e até
conferências episcopais inteiras, a dizer que não aplicarão a Fiducia
Supplicans nos seus territórios.
Pelo menos 10 conferências
episcopais, incluindo a Polónia e o Canadá, já reagiram negativamente ao
documento, algumas proibindo explicitamente a sua implementação, e outras
apenas reiterando a proibição de bênçãos específicas para relações e uniões
homossexuais.
E se é verdade que algumas das
reações negativas vieram dos “suspeitos do costume”, também há bispos que são
tidos como próximos de Francisco, como Ambongo Besungo, da República
Democrática do Congo, que faz parte do grupo de cardeais consultores do Papa
desde 2020 e chegou mesmo a pedir uma resposta conjunta de todos os bispos
africanos, na qualidade de presidente do Simpósio de Conferências Episcopais de
África e Madagáscar.
Talvez uma das respostas mais
firmes tenha sido do arcebispo maior Sviatoslav Shevchuk, que é o líder da
Igreja Greco-Católica da Ucrânia, que se demarcou do documento, dizendo que ele
não se aplica à sua igreja. Shevchuk e Francisco podem ter tido alguns
desentendimentos por causa da guerra na Ucrânia, mas são amigos e conhecem-se
há muitos anos, pois Shevchuk liderou a comunidade ucraniana na Argentina.
Alemanha e Índia
Entretanto a maioria dos
bispos alemães continua a defender o seu “caminho sinodal”, que já apelou
explicitamente a mudanças na doutrina moral e sexual da Igreja e tem um caráter
marcadamente progressista e liberal.
Francisco criticou abertamente
o “caminho sinodal”, dizendo que “a Alemanha já tem uma Igreja evangélica, não
precisa de outra”, mas até agora tem evitado tomadas de posição mais firmes que
possam acelerar a divisão ou mesmo promover uma rutura. Esta atitude, contudo,
leva as alas mais conservadoras a estranhar a dualidade de critérios,
recordando que o Papa tem tido mão firma contra outras comunidades, como por
exemplo os tradicionalistas, que viram limitada a liberdade que o Papa Bento
XVI tinha concedido para a celebração de missa de acordo com a liturgia
anterior ao Concílio Vaticano II.
O clima de desconfiança entre
Roma e os grupos tradicionalistas espalhados pelo mundo tornou-se conhecida
como a “guerra litúrgica” e torna ainda mais bizarro o que está a acontecer
neste momento na Índia, onde o clero de uma diocese inteira pode estar prestes
a ser excomungado.
Trata-se da diocese de Ernakulam-Angamaly,
a principal da Igreja Siro-Malabar, a segunda maior igreja católica de rito
oriental do mundo, a seguir à já referida igreja ucraniana. A Igreja
Siro-Malabar tem mais de quatro milhões de membros, e só a diocese de Ernakulam
tem 500 mil, com pelo menos 400 padres.
Tal como outras igrejas de
rito oriental, a Igreja Siro-Malabar tem a sua própria liturgia, de origem
siríaca, muito anterior à chegada dos portugueses à Índia. Contudo, essa
liturgia sofreu muitas influências latinas ao longo dos séculos, que a Igreja tem
tentado retificar. Uma dessas influências levou a que em algumas dioceses,
incluindo em Ernakulem, os padres passassem a celebrar a liturgia voltados para
a comunidade, em vez de seguir a tradição de celebrar voltados para o altar.
Como parte do esforço de
uniformização e regresso às raízes litúrgicas, o sínodo da Igreja Siro-Malabar
chegou a uma fórmula de consenso em que os padres celebram voltados para os
fiéis, exceto a liturgia eucarística, em que se voltam para o altar. Todas as
dioceses aceitaram, menos a de Ernakulem, onde padres e fiéis se revoltaram de
tal forma contra as novas regras que a polícia encerrou a catedral para evitar
cenas de violência e grupos de fiéis queimaram efígies de cardeais da cúria
romana.
Falhadas várias tentativas de
mediação, o Papa Francisco enviou uma mensagem para a diocese em que pediu aos
padres para “não se tornarem uma seita”, sublinhando que a persistência na
desobediência poderia levar à excomunhão. Francisco deu até ao Natal para se começar
a celebrar o novo rito, mas no dia 25 de dezembro os padres da diocese
limitaram-se a celebrar uma missa de acordo com essa liturgia, deixando claro
que o faziam por respeito ao Papa, e que ela não se tornaria regra. A
possibilidade de um acordo não está descartada, mas o braço-de-ferro mantem-se.
A ironia de o Vaticano estar,
de um lado, a pressionar os fiéis de rito latino que querem celebrações com o
padre voltado para o altar e, do outro, a ameaçar com excomunhão os padres e
fiéis que querem celebrar voltados para o povo, tem sido sublinhada, embora as
situações não sejam idênticas. Mas o que as duas realidades revelam é que
Francisco tem entre mãos uma Igreja Católica universal cada vez mais dividida,
com conflitos abertos sem solução evidente à vista.
Acresce que a idade avançada do Papa, e a sua saúde frágil, tornam ainda menos provável que ele consiga resolver estas crises antes do final do seu pontificado, até porque os seus opositores podem estar dispostos simplesmente a esperar que seja eleito o seu sucessor, para terem um novo parceiro de diálogo, o que implica também que todas estas questões: as bênçãos a homossexuais, o caminho sinodal alemão e as diferentes frentes das guerras litúrgicas, podem vir a desempenhar um papel importante no próximo conclave.
Tudo isto é triste mas tudo isto existe.
ReplyDeleteRezemos.
Convosco em Cristo e com os Santos Inocentes,
Bernardo
Caro Filipe, obrigado pela boa síntese! Infelizmente, na era das redes sociais as posições tornam-se cada vez mais extremas em todos os sectores. O extremar de posições decorre de se poder comentar anonimamente tudo e de se ter uma informação muito parcial motivada pelo famoso "algoritmo" que nos faz reforçar as opiniões que já temos e extremá-las... Como pais, temos o dever de ensinar aos nossos filhos a literacia digital - aprenderem a entender para lá do que a internet nos oferece e a agir online como no mundo real, com bondade e moderação. Abraço
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