Monday 11 December 2023

Abusos. O artigo da JN e a falta que faz a centralização de dados

Foi hoje publicado um artigo do Jornal de Notícias sobre o número de padres provisoriamente afastados devido às listas da Comissão Independente, e os que já foram reintegrados. O artigo está aqui, mas é só para assinantes.

Infelizmente, também esta mais recente tentativa de sistematizar os dados sobre este assunto tem vários erros. Já lá irei, mas antes quero dizer que é exactamente por isto que faz falta um ponto onde se possam encontrar estes dados centralizados e tratados. Esse ponto pode, e deve, ser a Coordenação das Comissões Diocesanas, mas recordo que da última vez que esse organismo produziu uma sistematização de dados estava também cheio de erros, como expliquei aqui.

No fundo isto é bastante simples: enquanto as dioceses continuarem a pensar que estes assuntos devem ser tratados unicamente a nível local, vamos ter este problema. Cada diocese trata os dados à sua maneira; uns comunicam, outros não e quando são pedidos números, mesmo pela Coordenação das Comissões Diocesanas, algumas enviam números errados.

A consequência é que os números errados entram no circuito, voltam a aparecer nas pesquisas, são reciclados por jornalistas sem tempo/paciência/capacidade para os verificar melhor e cria-se um ruído que é o oposto daquilo de que precisamos, num assunto que pede transparência.

Às dioceses, volto a pedir que levem a transparência a sério. Não é preciso publicar dados pessoais ou nomes, mas tenham, em local acessível, a informação essencial: Quantos processos têm a decorrer; Quantos padres estão envolvidos; Quais as medidas que foram aplicadas; Quais as sentenças dos processos canónicos; Quais as sanções para os que foram condenados. Quando houver uma novidade, como o arquivamento de um caso, façam um comunicado. Este não serve apenas para divulgar os factos, mas deixa também um registo para consulta futura. A ideia com que se fica é que o cuidado todo com a transparência na altura do relatório e das listas foi só para inglês ver, quando estava tudo de olhos voltados para a Igreja, e que agora tenta-se fazer tudo pela calada. Não caiam nesse erro.

Olhando para este artigo em particular, a dada altura a jornalista diz que de Lisboa, Porto, Braga e Guarda só o Porto é que respondeu às perguntas feitas pelo jornal. Como é que isto é possível? Eu sou jornalista e sei bem que muitas vezes as perguntas são feitas “para ontem” e que isso pode ser difícil. Não sei como foi neste caso em particular, mas não se pode aceitar que apenas uma em quatro dioceses tenha respondido em tempo útil a um pedido de imprensa sobre um tema desta importância.

Aos jornalistas, peço que verifiquem sempre os dados. Infelizmente, por vezes nem nos números oficiais se pode confiar sem confirmar. Eu tenho tido o cuidado de publicar neste blog todos os dados, com o maior rigor possível. Tanto quanto sei, esta é actualmente a melhor fonte de dados que existe sobre o problema dos abusos em Portugal. Usem-no. É para isso que serve. Mas não confiem apenas em dados reciclados de outras fontes, porque o mais natural é conterem erros também.

Os erros do JN

Vamos agora ao artigo do JN. Vou abordar os principais dados incluídos no artigo, e apontar os respectivos erros.

Padres afastados: O artigo diz que houve um total de 14 padres afastados cautelarmente por via das listas dadas às dioceses pela Comissão Independente. Este número está correcto, embora resulte da soma de dados errados, como veremos adiante.

Padres reintegrados: O artigo diz que um total de oito destes 14 padres foram, entretanto, reintegrados. Este número está correcto, embora resulte da soma de parcelas erradas. Por exemplo, o artigo diz que dois dos quatro padres de Lisboa foram reintegrados, quando na verdade foram três. Adiante veremos as dioceses caso a caso.

Padres ainda afastados: O artigo diz que seis padres continuam afastados. Mais uma vez, este número está correcto, embora resulte da soma de parcelas erradas, novamente o caso de Lisboa, onde um padre se mantém afastado, e não dois.

O artigo refere, a dada altura, que seis padres do Porto, Guarda e Lamego, que estavam afastados, foram reintegrados. Estes seriam três do Porto, um da Guarda e dois de Lamego. Contudo, nenhum padre de Lamego foi afastado. Os dois padres que estavam na lista da Comissão Independente foram sujeitados a uma investigação preliminar que concluiu pelo arquivamento dos seus processos, sem nunca terem sido afastados. O mesmo aconteceu a um padre que estava erradamente na lista de Bragança, mas que era de Lamego. Os dados relativos à Guarda estão correctos, e os dados relativos ao Porto também devem estar, uma vez que esta foi a única destas dioceses que respondeu ao JN. A Actualidade Religiosa ainda não tem confirmação independente disso, mas deverá ter em breve, mas por enquanto vou-me fiar no que diz a JN, pois parece-me credível que assim seja.

Em relação a Lisboa, como já vimos, o artigo diz que dos quatro que foram afastados, dois permanecem e dois foram reintegrados. Este número está errado. São três os que já foram reintegrados e um que se mantém afastado.

O artigo do JN diz ainda que em Évora, Braga e Angra os padres que foram afastados continuam nesse estado. Isto bate certo com os meus dados, representando um total de quatro padres, dois de Angra e um cada para Évora e Braga.

Por fim, o artigo refere que em Viana do Castelo um padre foi dispensado pela Santa Sé. Presume-se que isso signifique dispensado do estado clerical. Contudo, não se compreende a referência a este caso, uma vez que o padre em questão não constava da lista da Comissão Independente, pelo que é confuso ser mencionado no artigo, pois a inferência que o leitor retira é de que se trata do único elemento da lista da Comissão Independente que estava vivo na altura, e que era já idoso, não estando, portanto no activo, mas não tendo sido afastado.

Assim, olhando para os dados apresentados no artigo do JN, os padres que foram afastados por estarem nas listas da Comissão Independente seriam: Porto – 3; Guarda – 1; Lamego – 2; Lisboa – 4; Évora – 1; Braga – 1; Angra – 2; Viana do Castelo – 1.

Somando, obtemos 15, o que não bate certo com o número de 14 referido no artigo. Mais, como já vimos, os dados relativos a Viana do Castelo e a Lamego estão errados, o que deixa apenas 12.

Os dois padres que faltam, para a soma estar correcta, são um de Viseu, que já se encontrava afastado quando saiu a lista dessa diocese, mas que constava da mesma, e um de Vila Real, sobre o qual existiu alguma confusão, pois tratava-se de um padre originalmente de Setúbal e apesar de ter sido de imediato afastado do ministério, demorou algum tempo até que Roma interviesse para determinar em que diocese o seu processo deveria ser tratado canonicamente.

Como estão a ver, isto não é fácil. São muitos dados, muitas variáveis, mas é possível ter números rigorosos. Aqui na Actualidade Religiosa continuarei a fazer o que estiver ao meu alcance para apresentar sempre os dados mais fiáveis.


Veja também: 

Cronologia dos casos de abusos sexuais na Igreja em Portugal

O que sabemos das listas dos abusadores compostas pela Comissão Independente

Abusos em Portugal – O que já sabemos, o que falta saber

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