Saturday 31 December 2022

Morreu o Papa que surpreendeu o mundo

Este texto foi originalmente escrito como parte de um pacote a publicar na morte de Bento XVI, pela Renascença. De todos os que deixei, era o que sentia ser mais "meu". Poderá, ao longo dos próximos dias, ser publicado numa versão alterada. Publico-a aqui com autorização da Renascença, a quem agradeço.

Durante séculos os cristãos perseguiram e mataram judeus, culpando-os pela morte de Cristo. Uma frase em particular da Bíblia parecia justificar esta tese da culpa colectiva, o grito dos judeus quando Pôncio Pilates tenta livrar Jesus da crucificação: “Que o seu sangue caia sobre nós e sobre os nossos filhos”.

O Concílio Vaticano II foi enfático ao negar esta visão das coisas, mas a passagem bíblica permanece e continuava a ser usada por alguns para criar problemas e minar o diálogo entre católicos e o mundo hebraico.

Entra em cena Bento XVI, com esta passagem do II volume da sua trilogia sobre “Jesus de Nazaré”: “Mesmo que ‘todo o povo’, segundo Mateus, tivesse dito ‘que o seu sangue caia sobre nós e sobre os nossos filhos’, o cristão há de recordar que o sangue de Jesus fala uma linguagem diferente da do sangue de Abel: não pede vingança nem punição, mas é reconciliação.”

Bento XVI era, sobretudo, isto. Homem de uma inteligência brilhante e de grande perspicácia teológica, com uma fé apaixonada mas firmemente ancorada na razão. Os seus discursos e homilias tinham sempre uma grande carga de erudição mas conseguiam ainda assim manter uma simplicidade que os deixava abertos a todos, mesmo os que não se moviam com naturalidade nos meios da teologia e da filosofia.

Ao mesmo tempo, porem, o Papa alemão não era um homem mediático. Foi-se habituando, mas nunca se sentiu particularmente confortável com a atenção dos meios de comunicação social. O seu sorriso não era espontâneo, as suas intervenções não se prestavam facilmente à cultura do “soundbite” e a forma como defendia a cultura e civilização cristã, sempre com base na razão e na história e não em sentimentalismos ou saudosismos, valeram-lhe a inimizade dos media mais ideológicos.

Este último aspecto pode ser comprovado pela constante discrepância entre a cobertura mediática dos eventos do Papa e a realidade. Cada viagem de Bento XVI era precedida de augúrios de fracasso. A missa campal iria estar vazia, a população local sentia-se indiferente, os manifestantes seriam mais que os fiéis. Mas no fim, surpresa geral, dava-se o braço a torcer, porque o povo acorria a este Papa, enchia estádios e descampados e cantava o seu nome deixando-o com aquele sorriso envergonhado que o caracterizava. Mesmo os intelectuais, tanto em França como em Portugal, como os políticos, no Reino Unido e na Alemanha, aplaudiram-no longamente e com o respeito de quem reconhece que está diante de uma mente brilhante, de um professor.

“Este poder de ensinamento assusta muitos homens dentro e fora da Igreja. Perguntam-se se ela não ameaça a liberdade de consciência, se não é uma presunção oposta à liberdade de pensamento, mas não é assim. O poder conferido por Cristo a Pedro e aos seus sucessores é, em sentido absoluto, um mandato para servir. O poder de ensinar na Igreja implica um compromisso ao serviço da obediência à fé”, disse, no dia em que tomou posse da Basílica de São João de Latrão.

As viagens eram menos frequentes que as de João Paulo II, mas ainda assim significativas tendo em conta que Bento XVI tinha 78 quando foi eleito. Houve várias de grande importância, a primeira de todas enquanto Papa, à Jornada Mundial da Juventude em Colónia, em 2005; a viagem ao Reino Unido, primeira visita de Estado às ilhas britânicas de um Papa; a Jornada Mundial da Juventude em Madrid, onde debaixo de uma ferocíssima tempestade o Papa, tocado pela insistência de dois milhões de jovens que não o abandonavam, manteve-se firme dizendo aos presentes: “A vossa força é maior que a chuva”, enquanto os seus colaboradores o tentavam proteger com guarda-chuvas brancos; a ida a Cuba, uma das últimas, onde terá concluído que lhe começavam a faltar as forças para prosseguir com a missão que lhe tinha sido encarregada.

Mas a viagem a Portugal em 2010 distingue-se de todas por uma razão muito particular. O Papa chegou visivelmente cansado, alguns diriam até desanimado. Como sempre, previa-se o pior. Entre os católicos discutia-se a possibilidade de esperar o cortejo no caminho entre o aeroporto e Belém, muitos diziam que se devia abandonar a ideia porque a fraca participação popular ficaria mal na televisão. Mas em todo o percurso nunca faltou gente, bandeiras, estandartes de apoio para mostrar ao Papa que se devia sentir em casa entre os portugueses.

Depois de uma missa no Terreiro do Paço, perante centenas de milhares de pessoas, o Papa foi pernoitar à nunciatura. Os jovens, que tinham estado em grande destaque na missa campal, não o abandonaram e junto ao edifício cantaram e chamaram por ele até que veio à janela e, com um sorriso genuíno na cara, agradeceu a sua presença mas pediu que o deixassem dormir.

Foi em Portugal que Bento XVI beijou pela primeira vez um bebé em público e os vaticanistas que o acompanhavam por todo o mundo não hesitaram em dizer que depois de três dias cansativos viam partir um homem que parecia refrescado. Falar-se-ia então de um pontificado pré e pós visita a Portugal.

A injecção de energia que terá recebido era bem precisa. Na altura já havia rumores de que nem tudo ia bem no Vaticano, nomeadamente na cúria. Entre mal-estar e guerra civil, não faltavam adjectivos, mas poucos esperariam algo da dimensão do vatileaks, um escândalo que arrastou a reputação da Santa Sé pela lama e que abalou muito o Papa pelo envolvimento pessoal de um dos seus colaboradores mais próximos, o seu mordomo.

Se o vatileaks foi decisivo na sua decisão de resignar é especulação, mas contribuiu certamente para a perda da sua idoneidade física e espiritual, para usar os seus próprios termos.

Em retrospectiva, a escolha não deveria ter sido tão surpreendente assim. O Papa já tinha dito, no livro-entrevista conduzido por Peter Seewald, que aceitava a ideia de resignar se sentisse incapacidade de desempenhar a sua função. Foi recuperada também a fotografia que na altura tinha passado bastante despercebida, de Bento XVI a deixar o seu pálio, símbolo de autoridade, em cima do túmulo do Papa Celestino V, um dos poucos na história da Igreja a resignar por sentir que não era capaz.

Mas quando o Papa anunciou a sua decisão, num consistório quase insignificante e em latim, o mundo parou. Bento XVI era visto por muitos como o guardião inflexível da doutrina e da tradição e a tradição dizia que um Papa só abandona o seu posto quando é chamado pelo Criador. Afinal de contas, este era o mesmo homem que tinha dito: “O Papa não é um soberano absoluto cujo pensar e querer são leis. Pelo contrário: o ministério do Papa é a garantia da obediência a Cristo e à sua palavra. Ele não deve proclamar as próprias ideias, mas vincular-se constantemente a si e à Igreja à obediência da palavra de Deus perante todas as tentativas de adaptação, de adulteração e todo o tipo de oportunismo”.

Não deixa de ser paradoxal que um dos homens da Igreja mais inteligentes e brilhantes dos últimos séculos seja recordado para sempre por aquele que foi um dos seus últimos gestos, o de desprendimento do poder. É uma memória que não lhe faz justiça, mas talvez isso não desagradasse a Joseph Ratzinger, que nunca se mostrou muito confortável debaixo dos holofotes e que preferiria, certamente, deixar os seus livros e textos falar à história por ele.

1 comment:

  1. Obrigada Filipe! Um abraço com saudades. Continuação de Boas festas. Bom ano! Miquelina Fernandes

    ReplyDelete

Partilhar