Nos últimos dias têm surgido alguns sinais de desagrado da parte de figuras religiosas ucranianas, nomeadamente da Igreja Católica, em relação ao Papa Francisco e ao Vaticano.
Há duas grandes razões para
esse desagrado:
1. O facto de Francisco continuar a insistir em manter
os planos para se encontrar com o Patriarca Cirilo, de Moscovo, apesar de este teimar
em manter a ligação a Vladimir Putin, de falar da guerra na Ucrânia como se
tratasse de uma guerra santa e benzer as forças armadas que partem para a
Ucrânia para matar ucranianos e ocupar o seu país.
2. O facto de o Vaticano ter planeado colocar duas
famílias – uma russa e uma ucraniana – a carregar juntas a cruz na décima
terceira estação da Via Sacra na Sexta-feira Santa.
Acresce que alguns lamentam o
facto de Francisco nunca ter referido pelo nome Vladimir Putin, nem a Rússia, nas
suas condenações da guerra.
Alguns destes protestos são
compreensíveis, outros nem tanto. Mas o que não é aceitável é concluir que
Francisco tem uma posição dúbia sobre esta guerra, nem sobre quem é culpado pela
tragédia que se está a desenrolar na Ucrânia.
Aqui no blog tenho juntado todas as declarações dos principais líderes religiosos relevantes
sobre esta guerra, desde o seu início. Pelas minhas contas, para além do líder da Igreja Greco-Católica da Ucrânia, que divulga todos os dias uma mensagem
de vídeo sobre a situação, e do líder da Igreja Ortodoxa Autocéfala da Ucrânia, o Papa Francisco é o que mais se tem expressado sobre o conflito. Eu conto 17
pronunciamentos públicos, para além de quatro gestos significativos: a ida em
pessoa à embaixada da Rússia na Santa Sé, o telefonema a Zelensky, o telefonema
ao líder da Igreja Greco-Católica e a conversa por videoconferência com o
Patriarca de Moscovo.
Mas mais importante que a
quantidade é mesmo o conteúdo das declarações do Papa.
· Francisco começou logo por dizer, no dia 6 de
Março, que esta é uma guerra, desmentindo assim linha oficial de Moscovo de que
se trata de uma “operação militar especial”.
· Antes, a 27 de Fevereiro, quarto dia da guerra, referiu-se
ao “povo sofredor da Ucrânia” e disse estar de “coração partido” com o que se
está a passar.
· No já referido dia 6 anunciou ainda o envio de
dois cardeais para a Ucrânia, em sua representação.
· No dia 13 de Março pediu que se pusesse fim ao “massacre”
de Mariupol e referiu a “barbárie” da matança de crianças. Nesse mesmo dia
publicou uma oração especial pelo fim da guerra na Ucrânia em que identifica
Cristo com os bebés que nascem debaixo de bombas em Kiev e com as crianças que
morrem nos braços das suas mães em Kharkiv, pedindo a Deus que “trave a mão de
Caim”, que aqui é claramente identificado com a Rússia.
· No dia 15 de Março classificou o ataque à
Ucrânia como um “abuso perverso do poder e dos interesses partidários”.
· No dia 20 de Março referiu-se à guerra como uma “agressão
violenta contra a Ucrânia” e um “massacre sem sentido”, falando de matanças e
atrocidades. Disse ainda que a guerra é desumana e foi mais longe, apelidando-a
de “sacrilégio”, no que pode ser entendido com uma resposta aos que a
consideraram uma guerra santa.
· No dia 2 de Abril, em Malta, disse: “Mais uma vez
alguma potência, tristemente apanhada em reivindicações anacrónicas de
interesse nacional, está a provocar e fomentar conflito”. No mesmo discurso
classificou a pretensão russa de invadir a Ucrânia de “infantil” e disse que “essa
criancice, infelizmente, não desapareceu. Reemergiu com força nas seduções da
autocracia, novas formas de imperialismo, agressividade em larga escala”.
· No dia 3 de Abril, ainda em Malta, falou na “guerra
injusta e selvagem” na Ucrânia e mais tarde, nesse mesmo dia, voltou a dizer
que esta guerra, em particular, é um “sacrilégio”.
· No dia 6 de Abril referiu-se ao massacre em
Bucha, um massacre que os russos dizem que nunca aconteceu, e exibiu
publicamente uma bandeira da Ucrânia vinda precisamente dessa cidade.
· No dia 10 de Abril referiu-se aos “odiosos
massacres e cruéis atrocidades levadas a cabo contra civis indefesos”.
· No sermão de Domingo de Ramos, também no dia 10
de Abril, disse que na guerra Cristo volta a ser crucificado.
· No dia 13 de Abril disse que esta guerra “é um
ultraje contra Deus, uma traição blasfema da Ceia do Senhor, uma preferência
pelo falso Deus deste mundo”.
· E finalmente, na bênção Urbi et Orbi, no dia 17 de
Abril, Domingo de Páscoa, disse guardar no coração as muitas vítimas ucranianas,
descrevendo-as em detalhe.
A tudo isto acresce o envio
dos dois cardeais à Ucrânia, e tudo o que eles têm dito e feito para expressar o
horror perante a tragédia e a solidariedade para com a Ucrânia, com o cardeal Krajewski
a dizer que tal como Cristo, a Ucrânia ressuscitará.
Portanto não, o Papa não se
referiu diretamente a Putin, nem invocou o nome da Rússia, mas é preciso uma
enorme dose de má vontade para interpretar as suas muitas palavras e gestos
desde que esta guerra começou como qualquer coisa que não seja uma duríssima
condenação da Rússia e do regime russo, como responsáveis por esta guerra e
tudo o que ela espoletou.
Arrumada esta questão, analisemos
então as principais queixas dos ucranianos em relação a Francisco.
A insistência do Papa em encontrar-se
com Cirilo é de facto complicada de compreender. Cirilo é a figura religiosa
que saiu mais desacreditada em todo este conflito. Incapaz de sair debaixo da
asa de Vladimir Putin, incapaz de perceber que esta estratégia é um enorme tiro
no pé naquilo que ele considera serem os seus principais objectivos estratégicos,
nomeadamente manter os ortodoxos ucranianos debaixo da autoridade de Moscovo e,
também, de se afirmar como o principal líder na comunhão ortodoxa, remetendo o
Patriarca de Constantinopla para segundo lugar, se tanto.
Depois deste terrível fiasco,
muito dificilmente Cirilo será levado a sério pelo mundo, incluindo o mundo
religioso. Nesse sentido, um encontro com o Papa é tudo o que ele pode desejar
para tentar projectar alguma credibilidade. Com tudo o que se tem passado,
porque é que o Papa insiste em dar-lhe esta “borla”?
Não posso fingir saber o que
se passa na Santa Sé nem no coração do Papa, mas posso especular que o Papa
sabe que por mais que Cirilo esteja na lama, neste momento, não deixa de ser o
líder da maior Igreja Ortodoxa do mundo, e que o diálogo ecuménico com o mundo
ortodoxo nunca irá a lado nenhum sem a Rússia a bordo. Se as outras igrejas
ortodoxas estão dispostas a entrar no mesmo barco que Cirilo ou não, é outra
questão, interna, mas o Vaticano não pode simplesmente cortar os laços.
Por outro lado, Cirilo sabe
que o Papa poderia perfeitamente não fazer isto, sacudir as mãos dele, como
muitos fizeram, e por isso é possível que ele se revele agradecido a Francisco
pelo gesto de o manter à tona de água, e que isso dê frutos ecuménicos no
futuro.
Finalmente, por mais tentador
que seja analisar tudo isto pela perspectiva do poder, devemos lembrar-nos que
a lógica do Cristianismo não é a do poder e que o Papa sabe isso.
Perante a pressão, o Vaticano cedeu
e mudou a meditação, que foi substituída apenas por um apelo à oração silenciosa
pela paz, enquanto duas jovens mulheres, uma russa e uma ucraniana, seguravam
na cruz.
Mesmo essa versão mais “light”
não foi aceite pelos ucranianos, e pela primeira vez em anos os meios de
comunicação católicos do país não transmitiram a cerimónia em directo.
Esta reacção dos ucranianos
apenas se compreende no contexto da enorme injustiça a que estão a ser
sujeitados. Mas compreender não é dar-lhes razão. Pelo contrário, diria que
imagens de russos e ucranianos lado-a-lado, a condenar a guerra, são exactamente
o que faz falta neste momento. Houvesse mais!
É importante não confundir o
regime de Putin com o povo russo e é importante não esquecer que quando esta
guerra acabar há dois países enormes e dois povos numerosos e antigos que
precisarão de encontrar forma de sarar as feridas e viver em conjunto. Qualquer
gesto nesse sentido parece-me ser de louvar em vez de criticar.
Infelizmente estas críticas ucranianas
não são novas. Na recente conferência em que participei, organizada pela Capela do Rato, o padre
da Igreja Ortodoxa Moldava, que está ligada a Moscovo, disse que tinha tentado
ir com padres da Igreja Ortodoxa Russa em Portugal prestar apoio aos refugiados
ucranianos que chegaram a Cascais, mas foram impedidos de o fazer por ordem da
Embaixada da Ucrânia em Portugal. Convém esclarecer que o padre Petru tem
falado abertamente contra a guerra e até – de forma corajosa – contra a liderança
da Igreja Ortodoxa Russa, e ainda que os três padres russos em Portugal neste
momento são signatários da Carta
dos Padres Russos pela Paz, que é dos documentos mais bonitos que já li –
do ponto de vista cristão – contra esta guerra. Mantê-los longe de refugiados
porque são da “confissão errada” foi uma decisão cruel e injusta.
Esta insistência em ver a realidade de uma perspectiva nacional/étnica é, infelizmente, uma das fraquezas inerentes ao Cristianismo oriental. Mas Roma, por mais que simpatize com a Ucrânia e esteja convencida da razão da sua causa, não pode partilhar dessa visão reduzida.
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