Thursday 22 December 2022

Abusos de menores e de adultos: Diferenças e semelhanças

Um caso de abusos sexuais de mulheres adultas por parte de um sacerdote está a dar muito que falar no mundo católico. Em causa está o padre Marko Rupnik, um jesuíta esloveno. Rupnik é muito conhecido no mundo católico pela sua arte, tendo desenhado mosaicos e outras obras em algumas das mais importantes igrejas do mundo, incluindo a nova Basílica da Santíssima Trindade, em Fátima.

Há várias acusações graves contra Rupnik, nomeadamente de ter criado um ambiente de abuso de poder e manipulação numa ordem de freiras da qual era assistente religioso. Mais, a dada altura o padre jesuíta terá mantido uma relação sexual com uma das religiosas desse mosteiro, tendo posteriormente absolvido a mesma em confissão. Trata-se de um crime canónico de tal gravidade que o responsável incorre na pena de excomunhão, a qual só é levantada quando o culpado revela arrependimento, o que terá acontecido.

Mais do que uma simples coleção de falhas pessoais de um padre isolado, este caso tem levantado grandes críticas em relação à forma como foi tratado pelos jesuítas, em primeiro lugar, mas também pelo Vaticano. Apesar das várias acusações que foram feitas contra ele, e de estas serem do conhecimento dos seus superiores e do Dicastério para a Doutrina da Fé, Rupnik continuou a aparecer em público, a aceitar encomendas e a executar obras de arte sacra, a apresentar um vídeo semanal de análise das leituras de cada Domingo e até a pregar uma reflexão quaresmal para a Cúria romana.

Quando as alegações se começaram a tornar públicas, a informação foi sendo libertada a conta-gotas, tanto pelos jesuítas como pelo Vaticano, o que só levantava mais questões e criava maior confusão. Eventualmente a ordem religiosa do padre Rupnik acabou por admitir os factos todos – ou pelo menos assim parece – mas não sem antes sofrer grandes danos ao nível da sua própria credibilidade e transparência.

Numa altura em que tanto se exige transparência em relação à questão dos abusos de menores, logicamente muitos questionam porque é que o mesmo não se aplica a este caso, e porque é que a própria Santa Sé, que deve dar o exemplo e que tanto tem progredido nos últimos anos neste campo, não o fez.

A resposta mais evidente é de que não estamos perante um caso de abuso de menores, mas de relações entre adultos, ainda que, por ser assistente espiritual das religiosas, não se possa falar de uma relação desprovida de abuso de poder. É uma distinção importante? É, e já vamos ver porquê. Justifica a falta de transparência? A meu ver não, não justifica, e penso que com tudo o que já aprendemos sobre a crise de abusos é importante a Igreja, quer as locais, quer a Santa Sé, compreendam que muitas das lições que aprendemos com a crise dos abusos de menores podem e devem aplicar-se a outras áreas, incluindo esta.

Uma questão de corrupção

Vamos então tentar perceber quais são as grandes diferenças entre o abuso de menores e as relações consensuais, embora pecaminosas, entre adultos.

A primeira e mais evidente diferença é o mal causado às vítimas. Choca sempre mais, e bem, o abuso de uma criança, seja ele de natureza física, sexual ou psicológica. Os abusos abrem sempre feridas terríveis nas suas vítimas, feridas duradouras, mas o seu potencial destrutivo é ainda mais grave nas crianças. Isto não significa que não se deva ter também compaixão das vítimas adultas, e ajudá-las ao máximo, como é evidente.

Mas há outra grande diferença, que está na disposição e no estado de alma do próprio abusador. E penso que essa merece mais atenção do que costumamos dar.

Um dos temas a que o Papa Francisco volta sempre é à corrupção. Para os nossos ouvidos, quando se fala em corrupção pensamos em troca de favores por dinheiro, enriquecimento ilícito, cunhas e favorecimento. Mas não é nesse sentido que o Papa usa o termo. Ele explica que existem pecados, que todos cometemos, mas a corrupção é mais do que um pecado, é uma doença, uma doença da alma, no sentido em que contamina toda a forma como agimos e pensamos.

Para usar um exemplo prático. Um homem que está a passar na rua e repara que alguém deixou cair a carteira e aproveita para a roubar, está a cometer um pecado, claro, mas é um grau diferente daquele que acorda decidido a ir roubar; justifica a si mesmo que pode e deve roubar, porque a satisfação da sua necessidade ou do seu desejo é a prioridade máxima; que desenvolve planos e esquemas para poder roubar e depois as executa. Esse, ainda que não consiga obter o proveito de um roubo, já pecou no coração e tem a alma corrompida porque está já consumido da vontade de pecar.

A ler, sobre o conceito de
corrupção segundo o Papa
Aplicando isto à realidade dos abusos sexuais, podemos ver que há diferenças entre o abuso sexual de um menor, ou uma pessoa vulnerável, e uma relação com um adulto. No segundo caso, para já, existe a possibilidade do consentimento da outra parte. Tomemos o caso de um padre que se sente muito atraído por uma mulher a quem está a dar direcção espiritual. Se do outro lado também existe atracção torna-se muito mais provável que o pecado seja consumado. Isto até pode acontecer espontaneamente. O padre pode nem estar a pensar no assunto, mas a outra pessoa vem procurar o contacto e o padre, perante essa possibilidade, sucumbe à tentação; ou duas pessoas encontram-se numa situação em que de repente reparam que têm possibilidade de ter uma relação e ambas cedem. Enfim, não adianta explorar todas as possibilidades.

Mas também pode acontecer o contrário. Pode acontecer que o padre sente atracção por alguém e procura manipular as circunstâncias para poder estar sozinho com ela, procura seduzir e despertar na outra pessoa a mesma vontade, etc., para poder satisfazer o seu desejo. Esta segunda situação seria já um caso de corrupção da alma, porque o padre já cometeu esse pecado no seu coração e agora está a tentar a toda a força cometê-lo de facto. Isto é tanto mais grave se o padre se aproveita do seu ministério, como director espiritual, por exemplo, e de algum ascendente que tenha sobre a outra pessoa, para fazer valer a sua vontade, podendo até manipulá-la ao ponto de a tentar convencer que o mal que ele procura praticar é na verdade um bem, ou que constitui a vontade de Deus.

A diferença quando lidamos com o abuso de crianças é de que não existe a possibilidade do primeiro cenário. Não pode haver consentimento, nem verdadeira compreensão do que está em causa por parte da criança ou do menor. E, por conseguinte, a situação de abuso nunca é a mera queda numa tentação espontânea.

A lógica dita, e a prática mostra, que os abusadores de menores são pessoas especialmente manipuladoras. A relação com as vítimas é cultivada, o abusador procura ganhar a confiança da vítima, mas também da sua família. As condições para estarem a sós e para se praticar os abusos são pensadas e depois executadas. Há uma predisposição necessária que agrava tudo o que se passa de seguida, e contamina muito, se não tudo, do resto da sua acção pastoral. Por isso é que para estes pecados em particular existe tolerância zero. Nenhum homem será apenas o somatório das suas falhas, e isso aplica-se também aos abusadores, mas isso não implica que se possa continuar no ministério sacerdotal.

Tudo isto configura um caso particularmente grave de corrupção da alma, o que tem ramificações importantes quando se trata de um padre ou outro agente pastoral. Os católicos compreendem e aceitam que os seus padres sejam sujeitos a tentações, que por vezes até nelas caiam. Não aceitam, nem devem aceitar, é que os seus padres sejam pessoas corruptas que no seu coração já cederam ao pecado e procuram de todas as formas manipular quem está em seu redor para o levar a cabo. Isto aplica-se a qualquer tipo de pecado, a questão é que com o abuso de menores aplica-se sempre.

Voltando ao caso do Pe. Rupnik, uma leitura benevolente do seu caso será de que os seus superiores, e os responsáveis do Vaticano, entenderam que com ele estavam perante situações de quedas pontuais, das quais estava devidamente arrependido e recomposto, e não de corrupção da alma, e por isso, depois de o corrigirem e de o castigarem de forma discreta, não tiveram problemas em permitir que ele prosseguisse com outras actividades pastorais, como o tal vídeo semanal e as muitas obras de arte que foi fazendo.

Foi um erro? Provavelmente, sim. A decidir que os seus crimes não justificavam a expulsão do estado sacerdotal, teria pelo menos feito sentido mantê-lo em funções mais discretas até se ter a certeza de que estava recuperado, que estava verdadeiramente arrependido. E se já estavam reunidas essas condições, deviam comunicá-las devidamente, logo que começaram a surgir as notícias, para evitar dar a entender que estavam a encobrir.

Por não o terem feito, e por terem respondido às revelações que entretanto foram surgindo de forma confusa e atabalhoada, tanto a Santa Sé como os Jesuítas sofreram graves danos reputacionais. Esperemos que aprendam com este caso, para evitar males parecidos ou mais graves no futuro. E esperemos que compreendam que as lições que temos aprendido com a crise dos abusos podem e devem ser adaptados a outras realidades também. Todos ficamos a ganhar com isso.

2 comments:

  1. Talvez os processos sejam secretos no sentido de privados. Assim, confia se no arrependimento da confissão. Depois rebenta este e então já deve ser avaliado melhor a situação do padre. Quanto a revelar tudo, não sei se os processos são públicos como os civis. Em certos casos sei que não. Neste caso , sei menos ainda. Se não fosse um artista conhecido, se calhar não tinha tanta publicidade ou tanta protecção. Quanto aos danos causados à Santa Sé e aos jesuítas, não sei se é possível avaliar.

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  2. Gosto muito da tua analise Filipe e concordo

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