Em 2016 a instrução foi
reafirmada num novo documento. Lembro-me que na altura falei com responsáveis dos seminários de Lisboa que defenderam o documento e que
até já estavam, anteriormente, a rejeitar candidatos com atracções homossexuais.
Ao mesmo tempo iam-se conhecendo
histórias de homens já ordenados que, sendo homossexuais, não deixavam por isso
de ser bons padres, nem levavam vidas devassas, abraçando o celibato.
Julgo que, no fundo, cabia, e
cabe, aos formadores nos seminários ajuizar bem entre aqueles que são capazes
de controlar os seus impulsos sexuais – seja qual for a orientação – e os que
se deixam controlar por eles. Mas isso é tema para outro texto.
A razão deste texto é que há
alguns anos surgiram indicações de que um dos padres que contribuiu de forma
mais importante para as orientações de 2005 era suspeito de ter abusado de
jovens do mesmo sexo, ainda por cima utilizando para o efeito a sua prática
clínica de psiquiatra.
Esta semana essas suspeitas
foram confirmadas pela decisão de afastar o Pe. Tony Anatrella, que agora tem 81 anos, de qualquer
ministério sacerdotal, remetendo-o para uma vida de oração e penitência. Uma
revelação como estas leva-nos obviamente a questionar muita coisa e torna-se
difícil defender um documento sobre um assunto desta natureza que tenha tido
mão de um homem assim.
Cada vez mais, à medida que
vão surgindo estes casos, teremos de nos questionar se os pecados dos homens
envolvidos, ainda que sejam pecados desta gravidade (e notem que não estamos a
falar apenas de homossexualidade, ou sequer de ephebofilia – a atracção por jovens
rapazes pós-pubescentes – mas de aproveitamento de uma posição de confiança e
de autoridade para manipular e abusar de pessoas vulneráveis) põem em causa todo
o resto da sua obra de vida.
É certo que ninguém é a soma
dos seus pecados, e isso inclui pedófilos e abusadores, mas haverá pecados que
são tão graves que mancham por associação o resto do que fazemos? Uma boa
homilia, um bom retiro que nos ajuda, uma obra social levada a cabo, deixam de ter
valor porque descobrimos mais tarde que o padre envolvido afinal tinha uma vida
escondida? Lembro-me bem do choque que senti quando vi as primeiras revelações
sobre Jean Vanier, que sinceramente considerava um santo.
No caso do Pe. Rupnik, de que falei recentemente, as suas obras de arte – que são sem dúvida muito
belas – devem ser retiradas das igrejas porque descobrimos os requintes de
malvadez dos abusos que ele praticava sobre freiras que supostamente deveria
estar a dirigir espiritualmente?
E agora, no caso do Pe.
Anatrella, o documento sobre o acesso ao sacerdócio, que com certeza não foi
obra de apenas um homem, deve ser totalmente descartado porque descobrimos que
nem ele estava em linha com o que estava a recomendar?
Lembram-se do caso McCarrick?
Ele foi o principal autor e promotor da Carta de Dallas, que tem revolucionado
a forma como a Igreja americana lida com a questão dos abusos sexuais. No
entanto, veio-se a descobrir coisas do pior sobre ele também. Devemos descartar
a Carta de Dallas?
Eu não tenho as respostas para
estas perguntas. Tenho algumas ideias, mas não são bandeiras pelas quais estou
disposto a lutar ainda. Acho é que devemos todos – nós que levamos a Igreja a
sério e a amamos – pensar a fundo sobre estas questões porque a verdade é que
nenhum de nós está a salvo de descobrir que aquele que tanto nos inspirou no passado,
ou mesmo agora, afinal tinha telhados de vidro.
A História da Salvação está cheia de exemplos assim... Deus serve-se de instrumentos muito pecadores para realizar a sua vontade. Temos David, por exemplo, embora o seu arrependimento também tenha sido público. E temos Salomão, que pelos vistos, terminou os seus dias na idolatria, e contudo, deixou ao Judaísmo o magnífico Templo, e às Escrituras, os livros sapienciais. Eis a grandeza de Deus! Só Ele é capaz de, do mal, tirar o bem. Nós pensávamos que esta afirmação era metafórica, mas estamos a concluir que é real. A isto se chama omnipotência! Não deitemos fora o bebé com a água do banho, como se costuma dizer. A questão que se coloca é a mesma que se coloca na História em geral: vamos deixar de elogiar os grandes heróis da História porque descobrimos agora que afinal usavam métodos brutais e foram capazes de horrores? Deus escreve direito por linhas muito, muito tortas...
ReplyDeletePuseste-me a pensar, Filipe, e arrisco a avançar com outra analogia. Podemos dizer que uma criança não é um fruto bom, por ter sido concebida em adultério, ou por inseminação artificial, na prostituição, etc? Sabemos a resposta, naturalmente. Assim também, a nossa conversão ou o nosso crescimento na fé, bem como um bom resultado teológico ou pastoral, ou até uma ordem religiosa (há infelizmente alguns exemplos) podem ser reais e bons, apesar da maldade de quem pôs a bola a girar...
ReplyDeleteFilipe. Obrigado pelo artigo
ReplyDelete