por David G. Bonagura Jr. |
Todos os anos, em imitação de Nosso Senhor, retiramo-nos
para o deserto durante 40 dias – uma época litúrgica consagrada à conversão
pessoal e à preparação da celebração dos grandes mistérios da nossa redenção.
Mas porque deve a nossa contemplação da esperança final ser precedida de seis semanas num lugar sem esperança? Como é que um local destes pode cultivar a fé?
A resposta encontra-se no outro grande mistério que conduziu
à Encarnação e que foi derrotado na Páscoa: o pecado. “O deserto,” escreveu o
Papa Bento XVI, “imagem que se opõe ao jardim, torna-se local de reconciliação
e cura”. A morte – simbolizada pelo deserto – é a consequência do pecado, o
resultado de nos escolhermos a nós sobre Deus.
Para que a reconciliação com Deus tenha lugar, a morte tem
de ser vencida. O pecado tem de ser expiado. Para que isso se realize, “Deus o
fez pecado por nós” – entrou no deserto – “para que nos tornássemos, nele,
justiça de Deus.” (2 Cor 5,21)
Redimidos pelo sacrifício de Cristo, temos ainda assim que
esforçar-nos para ultrapassar o pecado que está presente nas nossas vidas. Este
desafio, que dura toda a vida, ganha um novo ímpeto na Quaresma, quando
recorremos à arma especial do jejum para “despir-vos do homem velho, corrompido
por desejos enganadores [e] revestir-vos do homem novo, que foi criado em
conformidade com Deus, na justiça e na santidade”. (Ef. 4, 22-24)
“O Jejum”, como explica o pai fundador do Movimento
Litúrgico, Dom Prosper Guéranger, “é uma abstinência que o homem se impõe
voluntariamente como expiação do pecado”. O pecado traz a dor e a morte ao
corpo e à alma, por isso é só quando a alma arregimenta a força do corpo para
combater o pecado através do jejum que o pecado pode ser vencido.
A suprema expiação do pecado levou o Filho inocente de Deus
a sofrer a mais dura dor no seu corpo e na sua alma, sobre a Cruz. Em imitação
de Cristo, o jejum também nos causa dor no corpo e na alma.
Aqui se encontra o paradoxo do pecado e, simultaneamente, o
coração da nossa observância quaresmal. Embora tenhamos sido criados em amor
por Deus, para gozar dos frutos da terra, estes frutos podem consumir-nos e
tornar-se, inclusivamente, objectos de orgulho e de pecado, como ficou
demonstrado pelos nossos antepassados no jardim. Ao renunciar temporariamente a
estes frutos através do jejum, oferecemo-nos para sofrer a sua ausência na
nossa carne, como forma de atacar o pecado.
O jejum acarreta sofrimento, mas, tal como a dor que
sentimos quando fazemos exercício físico, é mesmo esse o objectivo. E tal como
com o exercício, quanto mais dor sofremos por Deus, maiores os ganhos
espirituais.
O deserto é, por isso, o lugar certo para a Quaresma não só
porque representa o sofrimento e as consequências do pecado, mas também porque
é um local de abstinência dos frutos da terra. Quando nos retiramos
espiritualmente para o deserto, o vazio que lá encontramos recorda-nos que, no
fim de contas, os frutos da terra não nos podem satisfazer. A nossa verdadeira
satisfação é Deus, que na ressurreição nos conduz do deserto para o paraíso
eterno.
Mas a nossa observância quaresmal é desafiada por um mundo
que abandonou o deserto espiritual em favor de um falso jardim, cheio de tantas
atracções que estas se tornaram distracções. A constante percolação de
responsabilidades, distracções e brinquedos electrónicos contribuiu para
empurrar a nossa fé para as margens da vida. Desistir de comer chocolate ou de
ver televisão durante a Quaresma tornou-se apenas mais uma coisa no meio de um
dia cheio de ocupações em vez de um acto particular que manifesta uma disposição
quaresmal compreensiva, centrada em Deus e na conversão.
Antigamente a sociedade civil e a Igreja ajudavam-nos neste
período ao contribuir para o deserto espiritual. Constantino proibiu os
exercícios militares à sexta-feira, Teodósio suspendeu os processos judiciais,
Eduardo o Confessor proibiu o porte de armas. Divertimentos públicos acabavam,
bem como o desporto e a caça. A Igreja exigia um jejum rigoroso durante os 40
dias da Quaresma e proibia a celebração de casamentos cristãos.
Esses tempos já passaram e não vão regressar tão depressa.
Cabe-nos a nós, crentes e peregrinos espirituais, o desafio de criar os nossos
desertos espirituais por entre todas as distracções. Podemos imitar os nossos
antepassados católicos e tornar a Quaresma mais do que apenas o sacrifício de
um alimento de que gostamos: podemos tornar o deserto, com toda a sua aridez, o
local a partir do qual vemos a nossa vida e as nossas acções. Ao jejuar de
comida e abster-nos de entretenimento todos os dias da Quaresma, unimo-nos a
Cristo na sua Paixão, dolorosa mas esperançosamente conscientes que para se
chegar ao Domingo de Páscoa é preciso passar pela Sexta-feira Santa.
“O salário do pecado é a morte” (Rom 6,23) e a morte é o
castigo por excelência. Só podemos combater e expiar os pecados que cometemos
se nos permitirmos experimentar a morte através do jejum. Numa divina ironia, a
esterilidade do deserto é terra fértil para o nosso arrependimento do pecado e
renascimento na Ressurreição. Só podemos percorrer o caminho para a cura e a
reconciliação se primeiro passarmos pelas tribulações do deserto.
David G. Bonagura, Jr. é professor assistente de Teologia no
Seminário da Imaculada Conceição, em Huntington, Nova Iorque.
(Publicado pela primeira vez na Quarta-feira, 13 de Fevereiro
de 2013 em http://www.thecatholicthing.org)
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