Francis J. Beckwith |
Segundo o juiz Harry Blackmun, autor da decisão, “Se for estabelecida
a sugestão de personalidade [do nascituro] então o caso do queixoso cai,
evidentemente, por terra, porque nesse caso o direito à vida do feto estaria
garantida especificamente pela [14ª Emenda].”
Nessa emenda lê-se: “o Estado não privará ninguém de vida, liberdade ou
propriedade sem o devido processo legal; nem negará a qualquer pessoa dentro da
sua jurisdição igualdade de protecção debaixo da lei”.
Por isso se a defesa deste caso – o Estado de Texas –
tivesse conseguido demonstrar que o nascituro é uma pessoa ao abrigo da 14ª
Emenda, não haveria direito ao aborto.
Vejamos agora o que Blackmun escreve noutra parte da sua
opinião: “Não temos de resolver a difícil questão de quando começa a vida.
Quando aqueles treinados nas respectivas disciplinas de medicina, filosofia e
teologia são incapazes de chegar a um consenso então o tribunal, nesta altura
do desenvolvimento do conhecimento do homem, não se encontra em posição para especular.”
Como expliquei no meu primeiro texto, esta afirmação até
parece justificar as proibições ao aborto, uma vez que se pode partir do
princípio que o Estado tem interesse em ser prudente quando os peritos
discordam sobre se um acto constitui ou não homicídio.
Mas colocando esta questão de lado, olhemos para esta
referência à discórdia por parte de Blackmun à luz da sua afirmação de que, se
de facto for uma pessoa, o feto se encontra protegido pela 14ª Emenda. Não se
percebe como é que daqui se extrapola um direito ao aborto.
Porque se, como Blackmun afirma, o direito ao aborto depende
da ausência de personalidade do nascituro, o facto de ele dizer que não há
acordo sobre a matéria não confirma a premissa. Por isso, na melhor das
hipóteses, a argumentação demonstra que o direito ao aborto é um assunto
discutível para os peritos na mesma medida do estatuto do nascituro, porque se
for comprovado que o feto é uma pessoa, então isso anula o direito ao aborto.
Consequentemente, longe de estabelecer esse direito, a
lógica de Blackmun estabelece que o Tribunal deve ser tão agnóstico sobre o
direito ao aborto como é sobre a personalidade do feto. O que vemos é que o
Tribunal, reconhecendo implicitamente que a conclusão não é consequente,
simplesmente estipula um direito ao aborto.
Harry Blackmun |
No segundo argumento o Tribunal defende que à medida que o
nascituro se desenvolve e amadurece, o interesse do Estado na vida pré-natal
aumenta. Por esta razão o Tribunal conclui que o Estado pode, embora não tenha
de o fazer, proibir o aborto a partir do momento em que o feto é viável fora do
útero, excepto em caso de perigo de vida da mãe ou para a sua saúde.
Uma vez que a noção de “saúde” recebe uma definição tão
alargada na decisão Doe
v. Bolton (1973), que acompanhou Roe, abrangendo a saúde psicológica,
familiar e emocional, muitos concluem, como
eu, que esta é uma excepção que torna a regra inconsequente. Mas vejamos
como Blackmun justifica a ideia da viabilidade.
Dependendo de uma variedade de factores um feto pode ser
viável – embora possa precisar de assistência tecnológica – entre as 20 e as 26
semanas depois da concepção. Antes desse ponto precisa do abrigo e do sustento
do útero da sua mãe.
O juiz Blackmun afirma que esta dependência física acarreta
um significado moral e por isso a “justificam-se, tanto logica como
biologicamente, leis estatais protectivas da vida fetal depois da viabilidade”.
“Isto acontece”, escreve, “porque [quando viável] pode-se presumir que o feto
tem a capacidade de ter uma vida com significado fora do útero da mãe”.
Mas estamos aqui perante um argumento perfeitamente
circular. Blackmun procura distinguir entre vida com e sem significado para
sustentar o argumento de que o Estado tem um interesse em proteger aquela
apenas quando está em causa o direito de uma mulher a abortar. Ele escolhe a
viabilidade, o ponto a partir do qual o feto pode sobreviver fora do útero,
como o limite a partir do qual a vida de um nascituro passa a ganhar
significado.
Mas Blackmun justifica a viabilidade como sendo naquela
altura precisamente porque é a partir dela que “pode-se presumir que o feto tem
a capacidade de ter uma vida com significado fora do útero da mãe”. Mas essa é
também a sua conclusão. Por isso, tal como no primeiro exemplo que vimos,
Blackmun limita-se a estipular a sua conclusão, sem a justificar minimamente.
Na
primeira parte expliquei por que razão o Tribunal não ter abordado a
questão do estatuto moral do feto revela as frágeis fundações de Roe v. Wade.
Aqui demonstrei como dois dos argumentos centrais da decisão maioritária de Roe
não se baseiam em mais do que estipulações sem mérito.
Logo, Roe v. Wade não foi só uma tragédia por ter falhado na
protecção dos mais vulneráveis de entre nós, mas também porque deu legitimidade
judicial a um hábito mental que privilegia o preconceito sem fundamento no
lugar da deliberação racional.
(Publicado pela primeira vez na Sexta-feira, 18 de Janeiro
de 2013 em http://www.thecatholicthing.org)
Francis
J. Beckwith é professor de Filosofia e Estudos Estado-Igreja na
Universidade de Baylor. É
autor de Politics for Christians: Statecraft
as Soulcraft, e
(juntamente com Robert P. George e Susan McWilliams), A Second Look at First Things: A
Case for Conservative Politics, a festschrift in honor of Hadley Arkes.
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