Wednesday 23 January 2013

Quarenta Anos de Roe v. Wade: 2ª Parte

Francis J. Beckwith
A decisão maioritária em Roe v. Wade não só não abordou satisfatoriamente a questão de saber se o Ser Humano não nascido é, ou não, um sujeito moral (como demonstrei na 1ª parte), como a sua relutância em abordar essa questão minou também dois dos outros argumentos centrais dos juízes: (1) o argumento que parte do princípio de que o feto merece a protecção da 14ª Emenda, caso seja de facto uma pessoa e, (2) o argumento de que o Estado tem interesse na vida intra-uterina a partir do momento da viabilidade fetal.

Segundo o juiz Harry Blackmun, autor da decisão, “Se for estabelecida a sugestão de personalidade [do nascituro] então o caso do queixoso cai, evidentemente, por terra, porque nesse caso o direito à vida do feto estaria garantida especificamente pela [14ª Emenda].” Nessa emenda lê-se: “o Estado não privará ninguém de vida, liberdade ou propriedade sem o devido processo legal; nem negará a qualquer pessoa dentro da sua jurisdição igualdade de protecção debaixo da lei”.

Por isso se a defesa deste caso – o Estado de Texas – tivesse conseguido demonstrar que o nascituro é uma pessoa ao abrigo da 14ª Emenda, não haveria direito ao aborto.

Vejamos agora o que Blackmun escreve noutra parte da sua opinião: “Não temos de resolver a difícil questão de quando começa a vida. Quando aqueles treinados nas respectivas disciplinas de medicina, filosofia e teologia são incapazes de chegar a um consenso então o tribunal, nesta altura do desenvolvimento do conhecimento do homem, não se encontra em posição para especular.”

Como expliquei no meu primeiro texto, esta afirmação até parece justificar as proibições ao aborto, uma vez que se pode partir do princípio que o Estado tem interesse em ser prudente quando os peritos discordam sobre se um acto constitui ou não homicídio.

Mas colocando esta questão de lado, olhemos para esta referência à discórdia por parte de Blackmun à luz da sua afirmação de que, se de facto for uma pessoa, o feto se encontra protegido pela 14ª Emenda. Não se percebe como é que daqui se extrapola um direito ao aborto.

Porque se, como Blackmun afirma, o direito ao aborto depende da ausência de personalidade do nascituro, o facto de ele dizer que não há acordo sobre a matéria não confirma a premissa. Por isso, na melhor das hipóteses, a argumentação demonstra que o direito ao aborto é um assunto discutível para os peritos na mesma medida do estatuto do nascituro, porque se for comprovado que o feto é uma pessoa, então isso anula o direito ao aborto.

Consequentemente, longe de estabelecer esse direito, a lógica de Blackmun estabelece que o Tribunal deve ser tão agnóstico sobre o direito ao aborto como é sobre a personalidade do feto. O que vemos é que o Tribunal, reconhecendo implicitamente que a conclusão não é consequente, simplesmente estipula um direito ao aborto.
Harry Blackmun

No segundo argumento o Tribunal defende que à medida que o nascituro se desenvolve e amadurece, o interesse do Estado na vida pré-natal aumenta. Por esta razão o Tribunal conclui que o Estado pode, embora não tenha de o fazer, proibir o aborto a partir do momento em que o feto é viável fora do útero, excepto em caso de perigo de vida da mãe ou para a sua saúde.

Uma vez que a noção de “saúde” recebe uma definição tão alargada na decisão Doe v. Bolton (1973), que acompanhou Roe, abrangendo a saúde psicológica, familiar e emocional, muitos concluem, como eu, que esta é uma excepção que torna a regra inconsequente. Mas vejamos como Blackmun justifica a ideia da viabilidade.

Dependendo de uma variedade de factores um feto pode ser viável – embora possa precisar de assistência tecnológica – entre as 20 e as 26 semanas depois da concepção. Antes desse ponto precisa do abrigo e do sustento do útero da sua mãe.

O juiz Blackmun afirma que esta dependência física acarreta um significado moral e por isso a “justificam-se, tanto logica como biologicamente, leis estatais protectivas da vida fetal depois da viabilidade”. “Isto acontece”, escreve, “porque [quando viável] pode-se presumir que o feto tem a capacidade de ter uma vida com significado fora do útero da mãe”.

Mas estamos aqui perante um argumento perfeitamente circular. Blackmun procura distinguir entre vida com e sem significado para sustentar o argumento de que o Estado tem um interesse em proteger aquela apenas quando está em causa o direito de uma mulher a abortar. Ele escolhe a viabilidade, o ponto a partir do qual o feto pode sobreviver fora do útero, como o limite a partir do qual a vida de um nascituro passa a ganhar significado.

Mas Blackmun justifica a viabilidade como sendo naquela altura precisamente porque é a partir dela que “pode-se presumir que o feto tem a capacidade de ter uma vida com significado fora do útero da mãe”. Mas essa é também a sua conclusão. Por isso, tal como no primeiro exemplo que vimos, Blackmun limita-se a estipular a sua conclusão, sem a justificar minimamente.

Na primeira parte expliquei por que razão o Tribunal não ter abordado a questão do estatuto moral do feto revela as frágeis fundações de Roe v. Wade. Aqui demonstrei como dois dos argumentos centrais da decisão maioritária de Roe não se baseiam em mais do que estipulações sem mérito.

Logo, Roe v. Wade não foi só uma tragédia por ter falhado na protecção dos mais vulneráveis de entre nós, mas também porque deu legitimidade judicial a um hábito mental que privilegia o preconceito sem fundamento no lugar da deliberação racional.


(Publicado pela primeira vez na Sexta-feira, 18 de Janeiro de 2013 em http://www.thecatholicthing.org)

Francis J. Beckwith é professor de Filosofia e Estudos Estado-Igreja na Universidade de Baylor. É autor de Politics for Christians: Statecraft as Soulcraft, e (juntamente com Robert P. George e Susan McWilliams), A Second Look at First Things: A Case for Conservative Politics, a festschrift in honor of Hadley Arkes.

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