Os doze dias do Natal acabaram há pouco e, com eles, ondas
de materialismo cru e desejo insaciável por coisas. Como se isso não bastasse,
os analistas de mercados estão preocupados que tudo isto não seja suficiente
para fazer mover a economia, enquanto os moralistas preocupam-se que o
materialismo seja de tal forma que não deixa espaço para mais nada.
Há aqui algumas coisas a analisar. Se a nossa economia está
mesmo tão dependente assim de vendas de Natal, até aqueles de entre nós que
acham que normalmente os mercados cumprem da melhor maneira o papel de
distribuir bens e serviços devem parar para pensar.
Talvez seja por causa de todos os outros sinais preocupantes
na América hoje em dia, mas dou por mim menos preocupado com esta fúria de
compras do que no passado. No geral é apenas mais um ano em que, apesar de a
sua mulher já ter vinte pares de sapatos e um armário cheio de roupa, acha que
“não tem nada que vestir”. Pela minha experiência, as mulheres acham relaxante
fazer compras enquanto os homens preferiam uma tarde inteira de tortura a um
serão no centro comercial. É verdade que os homens também têm desejos por
ferramentas e aparelhos electrónicos, mas todo este consumismo, apesar de
espiritualmente perigoso, empalidece quando comparado com outras formas de
materialismo moderno.
Isto porque surgiu uma segunda forma de materialismo na
nossa sociedade que considero exponencialmente mais preocupante: A redução de
toda a actividade humana a um conjunto de comportamentos animais. Não é preciso
procurar muito até encontrar um artigo qualquer sobre um antropologista ou um
primatologista que “explicou” os comportamentos dos homens e das mulheres em
relação às compras, ligando-os às necessidades dos caçadores-recolectores
antigos (por alguma razão as planícies de África há 2 milhões de anos costumam
entrar no quadro).
As mulheres, claro está, tinham que procurar comida e lenha
enquanto os homens deambulavam por aí a afiar lanças para proteger o grupo. Não
nego que haja algumas bases materiais para muitos dos comportamentos humanos
que emergiram por processo evolucionário. Mas em relação à razão pela qual as
pessoas fazem coisas hoje, estas “explicações” estão na mesma divisão que a
astrologia. Para além disso, passou-se muita coisa nos últimos dois milhões de
anos.
Não somos os primeiros a culpar as forças materiais pelos
nossos comportamentos. Em “Rei Lear”, o vilão Edmund, filho ilegítimo de um pai
devasso, diz a verdade sobre estas desculpas, e sobre si mesmo:
Essa é a maravilhosa tolice do mundo: quando as coisas não
nos correm bem - muitas vezes por culpa de nossos próprios excessos - pomos a
culpa de nossos desastres no sol, na lua e nas estrelas, como se fôssemos
celerados por necessidade, tolos por compulsão celeste, velhacos, ladrões e
traidores pelo predomínio das esferas; bêbedos, mentirosos e adúlteros, pela
obediência forçosa a influências planetárias, sendo toda nossa ruindade
atribuída à influência divina... Óptima escapatória para o homem, esse mestre
da devassidão, responsabilizar as estrelas por sua natureza de bode. O meu pai
juntou-se à minha mãe sob a cauda do Dragão e minha natividade deu-se sob a
Ursa Maior: de onde se segue que eu tenho de ser violento e lascivo. Pelo pé de
Deus! Eu teria sido o que sou, ainda que a mais virginal estrela do firmamento
houvesse piscado por ocasião de minha bastardização.
Como se isso não bastasse, surgiu recentemente uma terceira
forma de materialismo, ainda mais radical. Começamos a ouvir falar, por
neurocientistas, teóricos literários e filósofos, na crença de que o ser
substancial nem sequer existe. Que não passamos de trocas de energia e matéria.
Que o ser é uma ilusão.
Existem, é certo, versões mais ou menos honradas deste ponto
de vista no estoicismo e no Budismo, e mesmo a Bíblia recorda-nos que nada
somos. Mas esta nova perspectiva é um niilismo que não conhece travões.
Nem sequer o senso comum o pára. Qualquer pessoa que tenha
os hábitos filosóficos mais modestos questionar-se-á sobre quem é que alega
“saber” estas coisas e por que razão acha necessário falar deles uma vez que
não existe ninguém para saber ou ouvir. Não é por acaso que uma vez que a
ciência, que por definição não lida com entidades como pessoas ou almas, é tida
como sendo a verdade total, o sentido de nós mesmos enquanto seres começa a
evaporar-se.
Estamos longe de um argumento abstracto, este arrisca-se a
ter consequências negativas. Há 25 anos William Barrett, que se tornou famoso
ao escrever o livro “Homem Irracional”, que explicava o existencialismo numa
linguagem americana, voltou-se para um problema premente. Em “A Morte da Alma”
ele defendeu o ponto de vista sensato de que não olhamos para as pessoas de
quem gostamos – esposos, filhos, pais, amigos – como meros mecanismos à base de
carbono. Consideraríamos monstruoso quem o faz.
Contudo é precisamente aí que começamos a encontrar-nos enquanto
cultura. O aborto fácil e a ameaça permanente da eutanásia derivam do
enfraquecimento da noção de que há algo de sagrado na condição humana. Paradoxalmente,
Governos em todo o mundo, mesmo nos países mais “avançados”, encorajam a
autonomia absoluta (não existe natureza humana, apenas a vontade crua – a não
ser que estejamos a falar de homossexualidade, que as pessoas bem-pensantes
sabem ser fixa e, por isso, um dado biológico imutável).
Simultaneamente, estamos convencidos de que o Estado moderno
pode agora imiscuir-se em todas as actividades humanas, à excepção daquelas às
quais impomos limites, por agora, devido a uma réstia de humanitarismo. Mas
mesmo essas excepções começam a evaporar-se à medida que cresce a certeza de
que os especialistas científicos sabem de coisas que significam que a maioria
de nós não conta para nada.
Há muitos materialismos no mundo e, é verdade, todos são
potencialmente letais. Apenas uma visão transcendente de Deus e das pessoas
consegue fazer frente a esta crise. Em breve veremos se o homo sapiens herdou
material suficiente dos seus antepassados nas planícies africanas para se
salvar da auto-negação.
Em comparação, e dadas as alternativas, é com serenidade que
encaro um pouco de compras em excesso.
Robert
Royal é editor de The Catholic Thing e presidente do Faith and Reason Institute
em Washington D.C. O seu mais recente livro The God That Did
Not Fail: How Religion Built and Sustains the West está agora
disponível em capa mole da Encounter Books.
(Publicado pela primeira vez na quinta-feira, 10 de Janeiro
2012 em www.thecatholicthing.org)
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The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing.
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Artigo interessante mas sem novidade. O atomismo da Antiga Grécia (de Demócrito, por exemplo), já tinha chegado às mesmas conclusões que esta terceira vaga de materialismo.
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