Transcrição da entrevista feita ao cónego Carlos Paes, que acompanha muitos casais em uniões irregulares através das Equipas de Santa Isabel. A reportagem pode ser lida aqui.
Na sua experiência de trabalho com casais em uniões irregulares que tentam, na medida do possível, viver a fé católica, esta questão do acesso aos sacramentos é fonte de sofrimento?
Na sua experiência de trabalho com casais em uniões irregulares que tentam, na medida do possível, viver a fé católica, esta questão do acesso aos sacramentos é fonte de sofrimento?
Normalmente sim, até por motivos psicológicos. Uma pessoa
que está privada do acesso à comunhão, nomeadamente, mas também à absolvição
sacramental, acaba sempre por ter o sentimento de alguma exclusão, de alguma
penitência, que lhe é imposta.
Às vezes aquilo que se passa na consciência de cada um é
diferente do juízo que pode ser feito por fora. É por isso que desde a
Familiaris Consortio que o Papa assinalou que essas pessoas continuam a ser
membros da Igreja e não estão fora da comunhão, não estão excomungadas, embora
não possam receber os sacramentos como as outras pessoas. Mas isso não quer
dizer que não tenham acesso a outras formas de comunhão e, além disso, não
estão castigadas, porque às vezes as pessoas têm a sensação que fizeram uma
coisa má e agora têm de suportar o castigo. Também não estão castigadas.
Esse é o ponto de partida, depois a Familiaris Consortio,
e isso continua com este Papa Francisco, sugere caminhos de integração, de
participação, de inclusão, dessas pessoas, para que não se sintam
marginalizadas.
Como é evidente
não sabe quais serão as conclusões do sínodo, mas nesta altura parece
inevitável que ficará muita gente desiludida, seja qual for. Acredita que será
possível ainda encontrar uma proposta que satisfaça todas as partes?
Que satisfaça todas as partes, não prevejo, porque há
pessoas que são mais radicais, mais exigentes, temem que possa ser uma
"Igreja em saldos" para ser mais bem acolhida... Mas eu acredito
sobretudo que começar por essas questões é começar pelo fim, porque há todo um
trabalho a montante que será a melhor solução para uma reintegração positiva
dessas pessoas e até para que esses casos não se multipliquem, como parece
continuar a acontecer.
Acho que seria pobre fixarmo-nos aí e só procurarmos se
vai haver solução, abertura, absolvição geral... Não. Porque o problema dessas
situações resulta também do modo como esses casamentos, a montante, surgiram.
As próprias pessoas têm consciência de que não viveram um verdadeiro sacramento
de matrimónio, embora tenham vivido um casamento natural muito justo, muito
razoável... Mas mesmo o casamento natural não foi perfeito porque se houve a
ruptura alguma coisa falhou.
Às vezes há uma certa cultura do descarte, do
descompromisso, imaginam que se houver algum problema separam-se, sem mais, mas
não é para isso que as pessoas se casam.
Há muita ignorância acerca da beleza do matrimónio e da
família, como célula base e mais importante, quer para a sociedade civil, quer
para a comunidade religiosa, seja cristã ou de outra religião. Portanto há toda
uma riqueza que se pode perder no meio dessa discussão, se vão ser admitidos ou
não, se podem receber absolvição ou não, isso não é o principal com certeza e
ficaria desiludido se a tónica principal fosse essa e não fosse exactamente
revalorizar o matrimónio na sua dignidade natural e sobrenatural.
Na sua dignidade quer para a sociedade civil quer para a
comunidade cristã.
Tem-se falado
muito na palavra misericórdia, mais especificamente numa “abordagem
misericordiosa”. O que é isto?
A abordagem misericordiosa é, sobretudo, uma abordagem
criativa, uma abordagem medicinal, uma abordagem transformadora, uma abordagem
reveladora.
Às vezes pensamos que é simplesmente passar um pano, para
limpar, sem mais. Não. A abordagem misericordiosa é sempre reconstrutiva,
porque o Deus que é misericordioso, antes de o ser, é misericordioso. E todos
os gestos de Deus trazem a marca da criação e Deus cria e recria constantemente
o seu povo e os membros do povo de Deus em geral e também
individualmente, exactamente oferecendo uma possibilidade de reconstrução e regeneração.
Às vezes as pessoas parece que querem simplesmente que
não lhes levantem mais problemas, mas que deixem passar, não tem importância,
Deus é misericordioso... Não, há aqui um trabalho bonito que tem a ver com o
próprio sentido positivo da penitência, a penitência não é um sacramento
passa-culpas, a penitência é um sacramento onde cada um tem a oportunidade de
olhar para a sua história de vida e perceber que aí pode introduzir um espírito
criador novo, pode introduzir uma energia reconsrutiva, que lhe pode fazer
divisar capítulos muito mais bonitos, não esquecer as coisas tristes do
passado, mas sobretudo capítulos muito mais bonitos, muito mais reconhecidos no
seu valor. Porque Deus usa todos os acontecimentos, até mesmo as vicissitudes
da vida, para nos proporcionar uma reconstrução, uma regeneração, uma
recriação. É sobretudo essa a ideia, isso está muito ligado ao sacramento da
penitência.
As pessoas querem simplesmente satisfazer os seus
desejos, as suas revoluções, ou estão abertas a uma conversão permanente de
vida que lhes permita participar construtivamente, quer na regeneração da
sociedade civil, quer na conversão da comunidade cristã.
Neste contexto seria de sublinhar a importância que tem a
família no seio da Igreja e da comunidade civil, porque a família é, no seu
todo, uma unidade responsável. Não é apenas um ajuntamento de pessoas na mesma
casa, a família é para a Igreja a primeira unidade pastoral.
O melhor que se pode imaginar para se tornarem cada vez
mais pessoas responsáveis, mais participativas... ai daquele que não tiver uma
experiência positiva, construtiva e feliz de família.
Pela sua
experiência com casais em situação irregular, nomeadamente através das Equipas
de Santa Isabel, também há aí famílias sólidas que contribuem para a
Igreja e para a sociedade dessa forma?
Muitas vezes o que se passa é que eles próprios têm
consciência que é agora que estão a viver uma verdadeira família, porque aquilo
que aconteceu a montante não correu bem, acabou por se desfazer porque não
chegaram a mergulhar na verdade. Às vezes um primeiro erro pode dar
oportunidade a uma reconstrução mais consciente, mais participativa e às vezes
esses casais são excelentes porque já tiveram de aceitar humildemente que nem
tudo correu bem, mas que acreditam que é possível e às vezes...
Entretanto dessas famílias nascem muitas vezes mais
filhos. Esses filhos têm direito a encontrar em sua casa um lar feliz,
completo, cristão. Eles não podem ser discriminados porque os pais vivem em
união de facto ou não são casados pela Igreja. Às vezes estão num processo, não
podemos discriminar com base no facto de serem casados ou não, terem ido à
Igreja ou não, cumprirem ou não. Temos de perceber qual é a dinâmica daquele
casal, o que é que estão a viver? Sentem-se ou não uma família renovada? Com
que alegria é que buscam isso? Os filhos têm o direito de se sentirem
perfeitamente normais no seio de uma família cristã e participativa, este é
todo um trabalho que é muito bonito, muito estimulante e que não podemos
esquecer, para felicidade de todos.
O cónego Carlos Paes foi alvo de outra entrevista o ano passado, na antecipação do primeiro sínodo, e que pode ser lida aqui.
O cónego Carlos Paes foi alvo de outra entrevista o ano passado, na antecipação do primeiro sínodo, e que pode ser lida aqui.
No comments:
Post a Comment