Wednesday, 7 October 2015

A Criança Invisível

Anthony Esolen
Ultimamente tenho pensado em casamentos e processos de nulidade e na instrução do Senhor de que devíamos sair em busca da ovelha perdida no deserto, longe das outras 99. Creio profundamente nessa instrução, porque essa ovelha era eu.

Mas o que acontece se for devido à nossa negligência e desobediência que a ovelha se perde? Será que o pastor vai em busca da ovelha perdida só porque isso é mais fácil do que cuidar do aprisco que deixou degradar-se? Vemo-lo a cantarolar pelo prado enquanto o lobo se aproxima? E quando regressa com a ovelha perdida dá-se ao trabalho de contar as que permanecem? Repara sequer no sangue e nas entranhas que mancham as paredes em ruínas?

Um rapaz tinha uma mãe e um pai. Eles tinham prometido amar-se um ao outro e serem fiéis até que a morte, e só a morte, os separasse. Não eram mentalmente débeis, sabiam o que significavam as palavras daquela promessa. E o rapaz era feliz.

Depois apareceu o Pai das Nuances, que sussurrou ao marido que as palavras são só palavras, não são coisas, e que as palavras estão sujeitas a interpretação, e que uma palavra proferida com total confiança num contexto poderia não ter o mesmo significado quando o contexto mudasse. E tinha mudado, porque a mulher era agora mais velha e os seus hábitos femininos que em tempos tinham fascinado o marido, agora não passavam de alfinetadas e beliscões. Por isso ele começou a deixar o seu olhar resvalar e o seu coração endureceu.

“Mulher”, disse, “vou levar a minha metade dos bens, que me pertence”. E ela não pôde fazer nada, por causa das leis do país onde viviam. Por isso ele vendeu a casa, a casa que o rapaz tanto amava, e levou metade dos bens e viajou para um país distante. Mas não foi sozinho. Levou outra mulher com ele.

E o rapaz amava o seu pai, porque era seu pai; e odiava-o, porque os tinha abandonado. E não havia quem o conseguisse consolar. Os seus professores chegaram ao ponto de lhe dizer que tinha sorte, porque agora tinha duas mães em vez de uma e duas casas também. Em breve teria também dois pais, porque a sua mãe desanimou.

Ela foi ter com um padre e disse: “Vê como o meu marido nos deixou a sangrar na berma da estrada”. Mas o padre não podia fazer nada por ela, incentivou-a a perdoar o marido e sugeriu que se juntasse a um grupo da paróquia para adultos solteiros. Foi ter com um escriba, perito na lei, e disse: “Vê como o meu marido quebrou os seus votos, agora estamos em sofrimento”, mas o escriba sorriu e disse que ela devia estar satisfeita com o que tinha recebido, que era bem generoso. 

E por isso desanimou. E um dia quando ela e o seu filho estavam no Templo, juntamente com outros, em oração, ouviu as palavras daquele que disse, “Então eles já não serão dois, mas uma só carne. E por isso não separe o homem o que Deus uniu”.

E então o padre disse que as palavras não passam de palavras, e que as palavras estão sujeitas a interpretação, e que uma palavra proferida num contexto não tem de significar o mesmo quando o contexto mudar. E tinha mudado, porque o padre incentivou os fiéis a abrirem as suas mentes e aceitar os fornicadores, os sodomitas e os adúlteros no meio deles. E o rapaz ouviu tudo, e passou a acreditar que tudo aquilo não passava de uma mentira.

Era suposto dizer que gostava de visitar o seu pai e a mulher que tinha ajudado a estragar a sua juventude, mas era mentira. Era suposto dizer que acreditava nas palavras de Jesus, mas pelos vistos ninguém acreditava nelas, em vez disso mentiam continuamente. A sua mãe passou a viver com outro homem, sem se dar ao trabalho de casar, porque ninguém acreditava que existia ligação entre o casamento e o acto conjugal, por isso deitavam-se no seu pecado como se nada fosse, continuamente. Era suposto ele amar aquele homem, e de certa forma amava, mas também era suposto fingir que tudo tinha acabado da melhor maneira, o que também era mentira.

"Por isso embriagou-se..."
Quando o seu corpo estava preparado para a fornicação, também ele estava. Tornou-se especialista no acto de dizer, com o seu corpo, “sou teu para sempre”, quando na verdade “para sempre” queria dizer apenas “até ficar farto de ti”, o que por vezes acontecia pouco tempo depois, outras vezes esgotava-se no próprio acto. Mas as raparigas mentiam também, por isso não devemos sentir muita pena por elas.

Então um dia o seu pai regressou com a madrasta e as pessoas foram instruídas a celebrar, porque ele tinha regressado. Não tinha regressado à sua mulher, e não procurou recompensar o seu filho pela sua tristeza, abandono e perda de fé. Não disse “trata-me como um dos teus empregados, porque pequei contra Deus e contra ti”, disse: “Vinde e festejai comigo, porque regressei!”

E o bispo gordo disse ao rapaz: “É bom que vás festejar com o teu pai, porque ele regressou”.

Por isso o rapaz foi para o banquete e embriagou-se. Afastou da memória as muitas vezes que tinha chorado de noite, porque o seu pai não estava lá. Afastou da memória aquele primeiro dia em que percebeu que ninguém dizia a verdade. Afastou da sua imaginação aquele Jesus que disse: “Deixai vir a mim as criancinhas”.

Pendurou uma mó à volta do seu coração. Não perdoou, porque toda a gente lhe dizia que não havia nada a perdoar. Por isso embriagou-se.


Anthony Esolen é tradutor, autor e professor no Providence College. Os seus mais recentes livros são:  Reflections on the Christian Life: How Our Story Is God’s Story e Ten Ways to Destroy the Imagination of Your Child.

(Publicado pela primeira vez na Quarta-feira, 30 de Setembro de 2015 em The Catholic Thing)

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