Thursday 8 October 2015

“Estamos dispostos a morrer na Síria”

Transcrição da entrevista ao abuna Munir al Rai, provincial dos salesianos no Médio Oriente. A reportagem pode ser lida aqui.

É responsável por quantos salesianos no Médio Oriente?
Eu sou responsável por cerca de 100 salesianos, presentes no Médio Oriente, e que são de quase 18 nacionalidades. 40% são italianos, 30% são locais e outros 30% de outras nacionalidades.

Em que países?
Temos a casa provincial em Belém, depois temos na Terra Santa, no Egipto, Turquia, Irão, Síria e Líbano. Também nos é confiado o Iraque.

Trabalham sobretudo na educação?
Sim, essa é a nossa missão fundamental. Temos muitas escolas para crianças e jovens, sobretudo escolas profissionais e centros profissionais. Temos também oratórios juvenis e também paróquias e igrejas públicas, bem como vários serviços sociais para as pessoas.

Estas escolas e trabalhos servem quantas pessoas no Médio Oriente?
Temos no Médio Oriente, entre crianças, jovens e leigos que frequentam as nossas casas, cerca de 10 mil pessoas. São números estimados, tudo depende da situação. Mas registados são quase 10 mil.

Sobretudo cristãos? Ou cristãos e muçulmanos?
A maioria são muçulmanos. Servimos também cristãos, mas de vários ritos, ortodoxos, católicos... De vários ritos.

Disse uma vez que os salesianos estavam preparados para serem martirizados por permanecer na Síria. Já perderam algum salesiano durante esta guerra civil?
É verdade, os salesianos presentes na Síria arriscam, como disse, o martírio. Estamos sempre disponíveis até a dar a vida.

Houve vários momentos graves, de grande perigo, mas graças a Deus estão todos seguros.

Abuna Munir al Rai, à direita
Qual é a presença dos salesianos na Síria neste momento?
A primeira casa fundada na Síria é em Aleppo, no Norte, data de 1948. Foi a primeira escola profissional da Síria. Em 1960 foi nacionalizada. Actualmente temos um grande oratório e centro juvenil e uma grande igreja publica. Estão lá actualmente três salesianos, dois sírios e um italiano.

Depois temos em Damasco uma casa fundada em 1990, o oratório e centro juvenil, inserido num ambiente ligado às nossas irmãs salesianas, que gerem lá um grande hospital, que serve muitos doentes. Lá temos quatro salesianos, três sírios e um italiano.

Temos uma outra casa, sobretudo com a presença de salesianos religiosos e no inverno confiámos esta casa a uma família de colaboradores salesianos.

Nenhuma destas casas está em áreas controladas pelo Estado Islâmico?
Não. São zonas que até agora têm estado nas mãos do Governo, zonas bastante tranquilas, mas tranquilo, na Síria deixou de existir, porque o perigo é iminente e o improviso pode sempre acontecer.

Enquanto provincial, onde está sedeado?
A sede é na Terra Santa, porque os salesianos chegaram ao Médio Oriente pela Terra Santa e as grandes obras são na Terra Santa. A casa provincial é em Belém e eu faço as minhas visitas às casas do Médio Oriente a partir de lá. Passo muito tempo com os meus irmãos e com as pessoas.

É fácil viajar?
Não. Nada fácil. É muito difícil. Mas vamos conseguindo.

Como é que faz para visitar Aleppo ou Damasco, por exemplo? É fácil entrar e sair de lá?
Depende do momento. Há alturas em que era impossível, estava muito grave e era difícil a passagem. Há alturas menos difíceis, mas não usamos a palavra fácil, nem tranquilo. Não se usa. Usamos situação gravíssima ou menos grave. São estes os termos.

Quando viajamos são viagens cansativas e duras e podem surgir problemas inesperados. Por exemplo, recordamos que foram várias pessoas raptadas e mortas, dois padres raptados nas suas viagens, bispos também. Pode acontecer o inesperado. Mas é preciso muito cuidado e quando viajamos é com muita simplicidade, com muito cuidado, tentando confiar-nos ao Senhor.

Ainda tem família em Aleppo?
A minha família... Como sabe, no Médio Oriente tivemos várias etapas de emigração. A minha família emigrou no fim dos anos 80, para o Canadá, tenho lá muitos parentes. Eu escolhi permanecer no Médio Oriente.

Igreja destruída em Aleppo. Foto: Alfredo Girardi
A Europa está agora a debater a questão dos refugiados, muitos dos quais vêm da Síria. Como sírio, como descreve a resposta europeia a este problema?
É verdade que a questão dos refugiados é muito complicada e muito difícil. É justo recordar que há muitos refugiados - e fala-se pouco deste problema - também na Turquia, Líbano, Jordânia, também no Egipto. Estamos a falar de milhões. É justo sublinhar este ponto. Muitos deles vivem em campos de refugiados e sofrem.  Este é um ponto a recordar e sublinhar, porque se fala do problema como se só afectasse a Europa.

Desde o início da guerra que alguns começaram a vir para a Europa. Muitas pessoas, ao longo dos anos da guerra, vieram para a Europa. Estranhamente, e é isso que questionamos, só agora é que são notícia de primeira página e só os da Europa.

Outra coisa, é certo que a Europa está a tentar ajudar estes refugiados, mas não existe um plano bem organizado nem adequado. Por isso há deslizes e divergências entre países europeus. Há também fortes restrições. Por isso muitos jovens perdem-se, não sabem o que é que deviam fazer, basta dizer também, porque é que devem arriscar as suas vidas para chegar à Europa?

É preciso um plano bem organizado e bem preparado para que possam ao menos deixar de arriscar a vida, porque tantos morrem durante a viagem, muitos são deixados aos traficantes, muitos sofreram verdadeiramente, por isso, na minha opinião, devemos agradecer à Europa este acolhimento, esta vontade de acolher, mas neste momento falta um plano bem estudado, bem organizado, para poder acolher e acompanhar, porque são duas coisas diferentes.

Acolher uma coisa, mas acompanhar, de forma sistemática e com dignidade, isso seria uma coisa importante.

Também há pessoas que dizem que o facto de muitos destes refugiados serem muçulmanos constitui uma ameaça à Europa e à sua identidade cristã.
O que digo é que esta questão é muito complicada. Em todo o lado em que existe emigração há lados negativos e positivos. Penso que esta resposta basta.

Há também pessoas que dizem que com os refugiados podem vir jihadistas infiltrados...
Como já disse, há sempre lados positivos e negativos.

Penso que é preciso resolver o problema das pessoas e do Médio Oriente procurando soluções pacíficas para evitar todos os perigos possíveis e imagináveis. Esta é a questão mais importante. Depois, acolhendo as pessoas, é preciso haver um plano bem claro. Cada estado deve estudar a sua capacidade de acolher e acompanhar para inculturar estas pessoas nos seus países, porque caso contrário podem surgir vários problemas incontroláveis.

Mas a coisa principal, para mim, é procurar soluções para os problemas que causaram esta imigração, que causaram esta inundação massiva de pessoas do Médio Oriente, potenciando mais a paz, esse é que é o grande trabalho para evitar tantos problemas e tantos perigos.

Desde o início da crise no Iraque e, antes disso na Palestina, temos visto cristãos a abandonar o Médio Oriente em maior proporção que muçulmanos. E fala-se no perigo de o Médio Oriente ficar sem cristãos nos próximos anos. Ouvimos alguns patriarcas a dizer que em vez de ajudar os cristãos a abandonar o Médio Oriente devíamos estar a ajudá-los a permanecer. Isto é realístico?
Para nós, pastores das igrejas do Oriente, o nosso sonho, não só o sonho, mas aquilo que desejamos e queremos e pelo qual trabalhámos toda a vida, é que os cristãos permaneçam no Médio Oriente. Isto é o mais importante, o mais fundamental para nós.

É verdade que no Médio Oriente estamos a assistir a esta hemorragia de cristãos, mas também de muçulmanos, de pessoas que não quer aceitar a guerra, o sofrimento e a destruição e procura um mundo melhor.

Membros da família salesiana em Aleppo
Mas quando, falando com as pessoas, falando com os jovens sobretudo, quando depois de anos de guerra e de destruição e há um alto risco de vida, não podemos dizer-lhes para permanecer. Obviamente eles dizem que querem tentar salvar pelo menos as suas vidas, por isso procuramos uma solução.

Nós tentamos ajudar, sustentar espiritualmente, moralmente, materialmente, procurando sustentá-los nos países vizinhos, mas muitos decidem ir, de modo definitivo, para mais longe.

Esta forte imigração é a principal questão com que nos confrontamos no cristianismo oriental.

Os cristãos estarão algum dia em segurança no Médio Oriente, ou no mundo islâmico em geral?
Tento sempre dizer que no Médio Oriente tanto cristãos como não-cristãos têm sofrido com a guerra. Também muitos muçulmanos morreram. Bebés, jovens, mulheres, homens e todos pagaram o preço da guerra.

Vivemos também momentos felizes e belos no Médio Oriente, mas também momentos de sofrimento. Por isso acredito que podemos voltar a ter momentos bonitos também.

Alguns grupos cristãos defendem a criação de uma região autónoma ou mesmo independente, onde os cristãos e outras minorias possam viver com protecção e maior segurança. A maioria dos bispos com quem falei rejeitam esta ideia. Acredita que isto pode ser uma solução?
Eu não vou entrar em política. Como bom salesiano não falo de política. Falo de jovens e os jovens querem segurança, uma justa segurança uma justa paz e uma justa justiça. Apenas direi isto.

Os cristãos no Médio Oriente estão divididos entre diferentes ritos, com diferentes patriarcas. Não seria melhor ter uma voz forte para falar pelos cristãos no Médio Oriente, em vez de muitas vozes mais fracas?
Digo antes que esta diversidade não é uma fraqueza. Esta diversidade, para nós cristãos no Médio Oriente, é uma riqueza. Por isso eu não digo que estamos divididos, mas somos de muitos ritos mas unidos no caminho cristão. Penso que os cristãos do Médio Oriente e os homens de boa-vontade são unidos na condenação desta guerra e na busca por uma solução de paz.

O Papa Francisco falou de um ecumenismo de sangue. Sentem isso, que o sofrimento aproximou os cristãos?
Sim. O sofrimento e o conflito uniram-nos mais.

Acredita que haverá paz na Síria, ou não vê qualquer solução para breve?
Como sou bom sírio, bom cristão e bom salesiano, creio na paz. Chegará certamente o tempo da paz.

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