Concílio de Trento |
O ano passado escrevi dois textos sobre este assunto, um primeiro em que levantei uma hipótese de como se poderia arranjar forma de
permitir o acesso aos sacramentos por parte de pessoas em uniões irregulares
sem pôr em causa a questão da indissolubilidade, nomeadamente “baixando a
fasquia” para acesso aos sacramentos, permitindo assim que pessoas em situação
de pecado pudessem comungar. Esse texto motivou uma discussão viva e
interessante que me levou a escrever um segundo artigo, em que concluí que afinal não me parecia possível fazer-se
essa alteração sem, de alguma forma, contrariar a doutrina da Igreja.
Este texto não pretende voltar aos mesmos argumentos, nem apresentar uma ou
outra solução, mas apenas levantar algumas questões interessantes que me parece
estarem a passar ao lado da maioria dos debates.
Li recentemente o artigo do Padre Miguel Almeida s.j. na mais recente
edição da Brotéria, que achei muito interessante. O padre Miguel parece
defender o acesso dos divorciados recasados aos sacramentos e embora não me
tenha deixado convencido das suas conclusões, convenceu-me de muitos outros
pontos pelo caminho.
Os conservadores invocam constantemente – e de forma compreensível – as
palavras de Jesus aos seus discípulos “Não separe o homem o que Deus uniu”.
Contudo, ainda nos tempos apostólicos aparece evidente que São Paulo, por
exemplo, achou-se na liberdade de abrir excepções a estas palavras duras.
Recordo que Jesus não estava a falar especificamente de casamentos cristãos
sacramentais. Pelo contrário, estava a falar especificamente de casamentos
judaicos, que não eram então, nem são hoje, sacramentais do ponto de vista
cristão. Mas o casamento é uma instituição natural e o que Jesus nos diz é que
qualquer casamento é, seja sacramental ou não, algo que Deus uniu e que o homem
não deve separar. Isto não se aplica a cristãos que optem conscientemente por
não casar pela Igreja, mas só pelo civil, mas aplica-se a um casal de hindus, a
um casal de aborígenes, de esquimós ou de neo-pagãos da Suécia.
No entanto a Igreja desde cedo permite o chamado privilégio paulino, em que
a Igreja usa do seu poder para “ligar e desligar” para dissolver o casamento
natural entre dois não-baptizados quando uma das pessoas pretende tornar-se cristã
e casar novamente dentro da fé.
Há outros casos levantados no artigo, já do conhecimento dos historiadores
e teólgos, que são debatidos para trás e para a frente, mas parece-me que este
exemplo do privilégio paulino é indiscutível e claro e abre desde já uma
premissa: Se se pode abrir uma excepção ao que Jesus disse, então os Papas e os
sucessores dos apóstolos podem abrir outras excepções.
Isto é basicamente o que os ortodoxos já fazem. Mas isso não é, ou parece
não ser, o que os defensores da abertura do acesso aos sacramentos para recasados
defendem, uma vez que eles não propõem que a Igreja aceite a celebração de
novos casamentos. Ora aqui é que se dá um salto lógico que eu não entendo,
porque se no privilégio paulino se aceita a dissolução do casamento, permite-se
às pessoas regularizar a sua situação, casando novamente. Isto sim, pode ser
apresentado como misericórdia. Mas a opção de simplesmente deixar andar a
situação da segunda união não resolve o problema de fundo. Aquelas pessoas, por
duras que sejam as palavras, estão em situação de adultério e, por isso, em
pecado grave e é isso que as impede de comungar.
A solução apenas poderia passar, a meu ver, pela dissolução oficial do
primeiro casamento, invocando o poder apostólico de ligar e desligar, para que
a segunda união fosse regularizada. Mas aqui chegamos a outro obstáculo, que
raramente vejo abordado nestas discussões.
Casamento - uma realidade natural |
O Concílio de Trento diz o seguinte no seu cânone VII sobre o sacramento do
matrimónio. “Se alguém disser que a Igreja erra quando ensina, segundo a
doutrina do Evangelho e dos Apóstolos, que não se pode dissolver o vínculo do
Matrimónio pelo adultério de um dos consortes, e quando ensina que nenhum dos
dois, nem mesmo o inocente que não deu motivo ao adultério, pode contrair outro
matrimónio, vivendo com outro consorte, e que cai em fornicação aquele que
casar com outra, deixada a primeira por ser adúltera, ou a que deixando o
adúltero se casar com outro, seja excomungado.”
Aqui quase que vejo algumas pessoas a levar a mão à cabeça em desespero:
“Mas então ele vai buscar os cânones de um concílio do século XVI? O que é que
isso interessa?”
Mas interessa muito, a meu ver, porque é isto que nos torna católicos. Ou
nós acreditamos que o Espírito Santo inspira as decisões dos bispos quando
falam em união com Pedro ou não acreditamos. Não podemos dizer que o fez em
1963 e que o fez no conclave de 2013 mas que em 1563 não esteve para isso. É
por isso que insistimos que não se pode mudar a doutrina, porque estamos
ligados ao que herdámos. Se nos desligarmos disso não há nada que impeça os
nossos filhos e netos de se desligarem de tudo o resto, não há nada que impeça
a minoria de contestar a eleição do próximo Papa e o resto conta-se em cismas.
Tudo isto para dizer que, do meu ponto de vista, quem defende o acesso aos
sacramentos por parte de pessoas em uniões irregulares tem de me demonstrar
pelo menos uma das seguintes premissas:
1)
Que o acesso aos sacramentos por parte de pessoas em estado de pecado grave
– como é o adultério – não contraria a doutrina estabelecida.
2)
Que é possível contrariar directamente o cânone VII sobre o casamento do
Concílio de Trento sem que isso implique uma ruptura com a doutrina do
casamento.
Digo isto com a plena consciência de não ser teólogo e de, por isso, não
ser especialista. Os especialistas que o vejam como um convite a desmascarar a
minha profunda ignorância sobre o assunto, que assim todos ficamos a ganhar!
Peço, por favor, que nada disto seja lido como uma crítica ou um juízo de
valor aos muitos casais que se encontram nesta situação e que sofrem com isso.
Todos temos amigos, irmãos, pais ou tios que se encontram nessa posição.
Pretendo apenas aqui contribuir para o debate, dentro daquilo que é a tradição
católica, que devemos preservar.
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