Transcrição integral da entrevista feita ao padre Bernardo Magalhães, antes do início do Sínodo sobre a Família de 2015. Para além de comentar a questão do acolhimento aos homossexuais, o padre Bernardo ajuda-nos a compreender do que se fala quando nos referimos a "comunhão espiritual". A reportagem sobre a questão dos homossexuais pode ser lida aqui, e as referências à comunhão espiritual aqui.
Tem-se falado
muito em comunhão espiritual, como opção para as pessoas que não podem receber
sacramentalmente. De onde vem este conceito, e o que significa exactamente?
É um conceito muito antigo.
Qualquer sacramento que uma pessoa recebe tem um efeito espiritual.
A comunhão tem um efeito espiritual, a união com Cristo, a união na fé e na
caridade com Cristo. Portanto toda a comunhão é comunhão espiritual. A comunhão
sacramental está ordenada, tem como sentido, esta união espiritual com Jesus
Cristo e com o mistério da sua Paixão, morte e Ressurreição.
Depois, ao longo da história, para prever as situações em
que uma pessoa deseja comungar, deseja unir-se a Cristo e ao seu amor levado
até ao fim na Cruz, na paixão... Este desejo por vezes não é possível
concretizar, porque não tenho acesso aos sacramentos, não posso ir à missa,
estou doente, inválido, longe de uma igreja, numa circunstância que,
independentemente da minha vontade, me impede de comungar.
O Cardeal Van Thuan, por exemplo, teve anos e anos preso.
Algumas vezes conseguia celebrar missa, mas vivia da comunhão espiritual, da
união espiritual ao sacrifício de Cristo, que não se concretizava numa união
sacramental.
Agora, o problema que se põe com os divorciados e
recasados, é um problema diferente. Quando o Papa Bento XVI, o Papa Francisco,
o Papa João Paulo II na Familiaris Consortio, falam na Comunhão Espiritual, o
que querem dizer é que os divorciados e recasados em concreto, ou qualquer
outro cristão nas mesmas circunstâncias que não pode comungar sacramentalmente,
deve procurar as disposições interiores para poder unir-se espiritualmente a
Cristo, embora não o possa fazer porque a sua vida, livremente escolhida,
contradiz de alguma maneira o mistério a que a comunhão nos une. Portanto, a comunhão
espiritual também passa a ser entendida como um caminho quase penitencial, um
caminho para dispor aqueles fiéis que não estão em Estado de Graça, como se diz
na Teologia, em condições de comungar.
Portanto são duas realidades distintas. A comunhão
espiritual para aqueles que não podem receber o sacramento por uma
circunstância externa em relação a eles, e independentemente da sua vontade, e
que se podem unir espiritualmente àquele mistério e que podem gozar dos efeitos
dessa união, serem sustentados na sua fé, na sua caridade e na sua vida cristã,
e aqueles que não podem participar plenamente nesse mistério, porque as suas
escolhas de vida, de alguma maneira não lhes permitem isso, mas que são
chamados como qualquer outro cristão a caminhar nesse sentido. Isto é, no
fundo, a comunhão espiritual vivida desta segunda maneira é um apelo à
conversão, que é feito a todos e cada um de nós, que cada vez nos aproximemos
mais de uma verdadeira comunhão espiritual com Cristo.
Na prática, esse
apelo à conversão poderia levar por exemplo em casos de uniões irregulares, a
que os membros do casal vivessem "como irmãos". Sabendo que isso não
é comum nem realístico para muitos casais, sobretudo casais em que só uma das
pessoas é que manifesta essa vontade, essa disposição para ir-se aproximando é
uma coisa que basta...
Em si mesmo esta disposição é uma coisa óptima e já é uma
acção da graça de Deus. Agora, repito, está ordenada à plena comunhão que
implica uma adesão, plena também, ao mistério de Cristo, com todas as suas
exigências. A fidelidade ao vínculo matrimonial, de fidelidade aos compromissos
assumidos, levada até ao fim, até participar e comungar do mistério da paixão
de Cristo. Para isso tende toda a vida cristã. Quando se diz que a Eucaristia é
o centro e a raiz da vida cristã, é isto que se está a dizer.
Portanto isto não é uma utopia, é uma vocação. O homem
tem como vocação comungar com Cristo. Nesta terra, no mistério da sua paixão,
que nos conduz à Glória eterna, porque participamos da sua ressurreição
também.
Isto é a nossa vocação que, por vezes, tem traduções
práticas difíceis e exigentes. E as pessoas que estão numa situação de casadas
depois de um divórcio são pessoas que o experimentam de uma maneira especial e,
por isso, justificam tantos cuidados pastorais, tanta atenção, justificam tanto
isto que o Papa nos pede, quase que exige aos pastores, acompanhar essas
pessoas, sem baixar a bitola, sem baixar a exigência, sem dizer que são
chamados a um estado de vida cristã de segunda ordem, acompanhar as pessoas no
seu concreto caminhar, como a todos os cristãos é pedido. Façam do mistério
pascal de Cristo o centro da vossa vida, aquilo de que se alimenta toda a vossa
vida, todas as dimensões da vossa vida. O vosso casamento, o vosso trabalho,
tudo.
Estas pessoas não têm uma vocação específica por estarem
nessa situação, têm um problema concreto. E um problema concreto que é possível
resolver, com a Graça de Deus, quando as pessoas se deixam transformar. Por
isso precisamos todos, e em primeiro lugar os pastores da Igreja, de nos
deixarmos transformar pelo mistério de Cristo. Não há nada específico do ponto
de vista da vocação cristã para estas pessoas. Há dificuldades concretas para
as quais temos de estar mais alerta.
O padre Bernardo (2º da esquerda) no dia da sua ordenação |
O casamento é um acto público, feito diante de Deus e da
sua Igreja, e por isso não pode nenhuma pessoa, privadamente, declarar a
nulidade do casamento. E por isso uma pessoa pode estar convencida o sacramento
é nulo, mas enquanto não for considerado nulo a pessoa não pode ter a certeza e
a garantia que o casamento é nulo. Portanto aqui põe-se um caso muito simples
de uma consciência que, necessariamente, enquanto não há uma sentença que
declare nulo o casamento, é necessariamente dúbia. Que não pode ter a certeza
do seu juízo. Se eu não tenho a certeza se sou casado ou não e estou junto a
outra pessoa, então aceito a possibilidade de estar a trair o meu primeiro
vínculo e, portanto, a possibilidade de estar fora da comunhão plena com
Cristo, que a comunhão sacramental significa e torna eficaz.
Por isso não, não se põe a possibilidade de uma pessoa
nessas circunstâncias comungar espiritualmente nesse sentido de adesão plena ao
mistério de Cristo.
Outro tema de que
se tem falado muito é do acolhimento dado aos homossexuais. Perante as novas
realidades sociais, incluindo o chamado casamento entre pessoas do mesmo sexo e
a possibilidade de adopção por parte de homossexuais, que é legal em muitos
países, que novos desafios é que a Igreja poderá enfrentar, que mereçam
discussão no sínodo?
Aquilo a que estamos a assistir, de um crescente número
de pessoas que manifestam essa tendência, essa atracção por pessoas do mesmo
sexo, de casamentos homossexuais que se tornam legislação comum dos estados,
colocam um desafio porque a Igreja tem por missão anunciar o Evangelho da
família, que Deus criou o homem e a mulher para se unirem, formarem uma família
e geraram novas vidas.
Agora, o Papa Francisco tem sido claro e todos temos de
levar muito a sério o que ele nos diz. A nossa missão não é dizer às pessoas
para saírem porque têm problemas. A nossa missão é dizer às pessoas: "O
senhor tem este problema, vamos olhá-lo à luz de Cristo, vamos olhar para a sua
vida à luz de Cristo. O senhor tem esse problema em concreto, outros terão
outro, e todos os problemas do homem se resolvem com Cristo. A receita para o
homem é o mistério da Encarnação". Por isso isto levanta, do ponto de
vista social, problemas gravíssimos mas do ponto de vista pastoral parece-me
que nos obriga a olhar para este problema da homossexualidade à luz do
Evangelho. Portanto, ver nela uma desordem, um afecto desordenado, mas ver nas
pessoas que a têm filhos de Deus chamados a ser santos como qualquer outra
pessoa.
O mundo está cheio de desordens, que Cristo vai resolver.
Isto põe um problema também à Igreja, porque isto é um problema que põe a
Igreja claramente contra a corrente, como o Papa Francisco também nos
pede".
A questão é
particularmente complexa no que diz respeito a crianças, ou não? Como é que uma
escola católica, por exemplo, deve agir se um “casal” homossexual quiser
inscrever crianças na escola, ou pedir baptismo, etc? Acredita que do sínodo
virão indicações sobre estes casos e outros do género?
Certamente que sim, porque o sínodo é convocado
justamente para isso, para marcar as linhas de acção pastoral e ajudar o Papa
nessa sua missão, por isso certamente que sim e é um problema realmente
complicado.
Mas também tem uma dimensão simples, a que o Papa
Francisco também apela muitas vezes. Isto é... era o que faltava não baptizar
uma criança, desde que os seus pais, como quaisquer outros, se disponibilizem
para a educar na fé. Era o que faltava não lhe permitir uma educação cristã.
Depois há outras questões. Como há muita propaganda à
volta destes temas, há muitos lobbies, corremos o risco de sermos
instrumentalizados e usados como propaganda. Mas acho que não vai haver nunca
uma resposta prudencial muito fácil e talvez a melhor maneira seja reconhecer
que é melhor uma Igreja acidentada que uma Igreja paralisada, a cheirar a
bafio.
A virtude da prudência cresce com a experiência e saber o
que é bom em cada momento, que decisão concreta devo tomar em cada momento, é
preciso ver caso a caso, com a experiência do tempo, porque isto é tudo muito
novo.
Por isso é que nos faz bem ver um Papa que abre o coração
a esta experiência, para que não nos fechemos e simplesmente nos enclausuremos
nas nossas convicções e deixemos de anunciar o Evangelho a quem quer que seja,
seja homossexual ou o que for. Mas anunciar o Evangelho.
Portanto acho que o Papa, nesse aspecto tem sido um
desafio para todos os pastores, e para todos os cristãos e do sínodo poderão
sair indicações sobre isso. Mas acho que mais do que do sínodo, sairá da
experiência concreta de tratar destes casos. Experiência essa que tem como
trave mestra a disponibilidade para levar o Evangelho e todos.
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