Anthony Esolen |
Enquanto escrevo estas palavras, milhares de cristãos
enfrentam massacres no Médio Oriente. Uma das imagens está gravada na minha
memória. Um grupo de rapazes, de cerca de 10 anos, aguarda o terror às mãos dos
seus captores por se recusarem a renunciar a Cristo. Um dos miúdos que está em
primeiro plano, alto e moreno, olha directamente para a objectiva, a sua boca
uma expressão de resistência.
Tem corpo de rapaz mas alma de homem. Duvido que ainda
esteja vivo. Se soubesse o seu nome, pedia por sua intercessão. Talvez o deva
fazer na mesma. Talvez o chame Sanctus Ignotus: O santo que ninguém conhece, o
santo que ninguém quis conhecer. Mas se tivesse de lhe dar um nome seria
Leoninus: Leãozinho.
Abro um dos meus exemplares encadernados do “The
Century”, dos anos terríveis da guerra de 1918. É difícil descrever esta
revista a pessoas que estão habituadas ao Cosmopolitan, Newsweek e TV Guia. Mas
podemos ter uma ideia da sua verve intelectual e literária através destas
palavras de “O Bom Pastor de Mechlin”:
“Se Alberto da Bélgica, esse príncipe cavalheiro cujo
reino está transformado nuns poucos quilómetros de dunas e trincheiras
ensanguentadas, tem sido o Leonidas da sua pátria martirizada, o Cardeal
Mercier tem sido o seu Hildebrand. Alberto dotou a história e o romance do
glamour de um novo Termópilas; o Cardeal belga fez o mundo recordar aqueles
dias quando um simples monge, elevado ao trono do pescador, enfrentou outro
Imperador alemão e berrou aos seus ouvidos as palavras que fazem tremer até os
tiranos.”
Esta é a descrição de Désiré-Félicien-François-Joseph
Mercier, o grande filósofo e arcebispo de Mechlin, primaz da Bélgica.
Nem sei por onde começar a enumerar as razões pelas quais
esta passagem não poderia ser escrita hoje, nem lida de forma inteligível pela
maioria dos universitários. Algumas pessoas, sobretudo desde que fizeram um
filme inimaginavelmente mau sobre a batalha em questão, talvez reconhecessem os
nomes de Termópilas e Leonidas, mas quantas delas saberiam exactamente o que
estava em causa, quais os beligerantes ou o significado da guerra para o
Ocidente e para a humanidade? Nem uma em mil compreenderia o que quer que fosse
do resto.
Quando um jornalista do Washington Post sente a
necessidade de explicar o que é a Via Dolorosa, engana-se, chama-lhe Via Della
Rosa e depois diz que é um termo francês, penso que é seguro afirmar que mesmo
uma expressão como “o trono do pescador” seria o suficiente para o deixar
confuso, quanto mais a referência ao confronto invernal no Castelo de Canossa.
Mas independentemente do conhecimento histórico, quem se interessaria
pelo cavalheirismo ou o drama de um monge santo e corajoso a lutar contra um
imperador? Quem faria mais do que se rir das palavras de excomunhão dirigidas a
Henrique IV, Imperador do Sacro-Império? Quem desejaria ver a Igreja vitoriosa
na sua luta pela liberdade, em vez de ver os seus bispos ao serviço de um líder
mundial ambicioso? Quem seria sequer capaz de escrever frases com este tom
épico que o reformador inflexível, Gregório VII, merece?
E depois há outras razões que nada têm a ver com autores
ou leitores. O Cardeal Mercier nunca recuou, nunca traiu a Bélgica aos
invasores alemães. Ele advertiu os seus compatriotas que “a única autoridade
legítima na Bélgica é a do nosso Rei, do nosso Governo, dos representantes
eleitos da nação... Por isso, os actos de administração pública dos invasores
não têm, em si, qualquer autoridade”, salvo aquela que as verdadeiras
autoridades pudessem tacitamente permitir para o bem comum.
As “províncias ocupadas”, disse, “não são províncias
conquistadas. A Bélgica não é mais uma província da Alemanha do que a Galícia é
uma província russa.” Segundo o Tratado de Londres, cujos termos Mercier
recordou aos envelhecidos líderes europeus, a Bélgica devia formar um “Estado
perpetuamente neutro” e isso significava também não dar guarida a alemães que
quisessem atravessá-la para invadir a França. “A Bélgica não é uma estrada”,
disse o Rei Alberto.
Cardeal Mercier, um bom pastor |
Depois vieram as atrocidades, que o Cardeal nunca deixou
de condenar: O que foi feito, quando, onde e a quem. Para o seu povo ele foi
uma torre de força e uma fonte incansável das melhores consolações, que o mundo
já não consegue compreender. Mercier não tinha nada de trivial ou de vacilante.
Na solidão, clamou: “Porquê todo este desaire, meu Deus?”
Mas depois “elevou os corações de um povo profundamente
católico até à cruz que tão bem conheciam”. Eis as suas palavras:
“O cristão é servo de um Deus que se tornou homem para
sofrer e morrer. Revoltar-se contra a dor, contra a Providência, simplesmente
porque esta permite a dor e a tristeza, é esquecer-se de onde vimos, da escola
em que nos formámos, o exemplo que cada um tem gravado no seu nome de cristão,
que cada um honra no seu lar, contempla no altar das suas orações e que deseja
que assinale a sua sepultura, local do seu descanso final.”
Quem fala assim hoje em dia? Mercier era um gigante entre
os homens, com mais de dois metros de altura e uma inteligência, sabedoria,
coragem e fidelidade ainda mais elevadas. Amava a Bélgica mais, segundo o
autor, “com a coroa de espinhos sobre a sua fronte do que nos seus dias de
glória. Ele tem sido o bom pastor do seu rebenho, o guardião do seu povo, o
servo leal do seu Rei.”
Hoje, como ontem, com maldades igualmente deprimentes,
absurdas e desprezíveis, o demónio caminha sobre a terra como um leão na caça,
procurando quem devorar. A escolha a fazer, hoje como ontem, não é entre uma
cedência ou outra, é entre dois tipos de leão. Perguntem ao Leoninus, ou ao
grande pastor de Mechlin.
Anthony Esolen é tradutor, autor e professor no
Providence College. Os
seus mais recentes livros são: Reflections on the Christian Life: How Our Story Is God’s Story e Ten Ways to Destroy the Imagination of Your Child.
(Publicado pela primeira vez na Quarta-feira, 3 de Junho
de 2015 em The Catholic Thing)
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