Jason Scott Jones e John Zmirak |
O atentado contra o Charlie Hebdo foi um ataque à
Cristandade. Paradoxalmente, jornais que publicam caricaturas imaturas a gozar
com a religião também fazem parte do Corpo de Cristo – ainda que sejam o
intestino delgado, talvez. Numa sociedade formada por uma noção profundamente
cristã da dignidade humana, há espaço para maus cristãos e até para não-cristãos,
da mesma maneira que existem celas para carmelitas místicas. A visão mais
alargada de uma sociedade verdadeiramente cristã, no sentido terreno, não se
encontra nos tratados monásticos mas sim nos Contos de
Cantuária.
Qualquer tentativa de “purificar” as sociedades cristãs
da dissensão e do pecado à força, acaba sempre em catástrofe: com “hereges”
agrilhoados, judeus identificados e pilhas de obras de arte em cima de
fogueiras. Estas tentativas de truncar o Corpo de Cristo dos seus membros
“impuros” deixaram sementes de vingança que deram brotaram em 1798 em França e
em Espanha na década de 1930. No Concílio Vaticano II a Igreja renunciou
totalmente a quaisquer aspirações de dominar as almas dos homens através da espada
do Estado – reconhecendo que a perseguição religiosa é intrinsecamente má, tal
como o adultério e o aborto.
Por isso é doentio ver alguns
comentadores a arranjar desculpas para a matança de jornalistas, sugerindo
que as vítimas “estavam a pedi-las” por terem enfurecido as sensibilidades dos
muçulmanos. Como disse Ross
Douthat, qualquer religião que ameaça matar os seus críticos precisa de, e
merece, ser gozado desta forma – é um método de autodefesa por parte dos
não-crentes.
Mesmo os crentes precisam de algum espaço para poderem
brincar com as exigências infinitas da religião, por forma a sublinhar
o valor da vida terrena perante aqueles que procuram forçar um sentido
puramente espiritual em cada centímetro quadrado da existência. Este dever
solene de resistência explica o surgimento de fenómenos loucos como o carnaval,
as canções profanas
escritas pelos monges e as piadas anticlericais entre os devotos.
A fé cristã não defende que num mundo perfeito seríamos
todos monges e freiras – como se o casamento, o trabalho e a política fossem um
triste compromisso com o pecado. Muitos clérigos ensinaram este género de
coisas e foram por isso justamente gozados pelos leigos. John Henry Newman
compreendia isto. Quando o Bispo Ullathorne lhe perguntou se a Igreja precisava
dos leigos, respondeu que sem eles a Igreja pareceria ridícula.
O Cristianismo aguenta e assimila a humilhação. O próprio
Deus veio à Terra para ser abusado, espancado e cuspido. Na nossa piedade
representamos esse mesmo Deus feito homem em pequenas imagens de plástico e
também nas mais sublimes obras de arte. Os muçulmanos, por outro lado,
centram-se em alguém que admitem ter sido apenas um homem – e depois
endeusam-no, elevando cada uma das suas acções terrenas, (desde a guerra à
poligamia) ao modelo da perfeição moral e afirmando que Ele é demasiado sagrado
para ser representado. Era assim que os judeus, que o Islão imitou e depois
vilipendiou, tratavam o Senhor, de quem nunca produziam imagens e cujo nome não
se atreviam a pronunciar.
Mas apesar de todo o seu temor de Deus, os judeus também
têm como modelo Abraão, que discutiu e regateou com Deus, e Jacob, que lutava
contra anjos. Os pensadores judeus sempre tiveram a audácia de confrontar Deus
com questões difíceis sobre a sua justiça e o sofrimento humano – e quando não
encontravam respostas que os satisfizessem, encolhiam os ombros e recorriam ao
sarcasmo. De certa forma, o Islão é o Judaísmo, mas sem sentido de humor.
Joana d'Arc |
Por isso a Igreja e Ocidente precisam, de alguma maneira,
do Charlie Hebdo. Se a França tiver de colocar esquadrões da Legião Estrangeira
à frente do edifício para defender a redacção, então vale bem o preço, tendo em
conta a alternativa de entregar as liberdades ocidentais aos vândalos barbudos
das banlieues.
Mas só o Charlie Hebdo não chega. França precisa de
Villon, Rabelais, Moliere, talvez até de Voltaire. Mas não foram estes homens
quem construiu o país, nem foram os satíricos e os cínicos que o salvaram,
vezes sem conta. O espaço de liberdade onde malandros deste género podem
dedicar-se ao que fazem foi povoado, ordenado e embelezado por uma outra
estirpe de gente: Carlos Martelo, Luís IX e Joana d’Arc; pelos camponeses da Vendeia,
pelos peregrinos de Lourdes e pelos soldados de infantaria em Verdum; e ainda
por patriotas desavergonhados como Charles de Gaulle.
Em 1940 os cínicos generais de direita decidiram deixar
de defender a corrupta Terceira República, acolhendo a vitória alemã como uma
“surpresa divina” e instalando o seu próprio compincha, o Marechal Pétain, como
“salvador” da nação. Rejeitada há anos nas urnas, a extrema-direita francesa
aproveitou a vitória dos alemães para colocar os Voltaires do seu país no
devido lugar. E quem é que se revoltou contra eles? Não foram os Sartres da
vida – que continuaram alegremente a encenar teatros para entreter os alemães
em Paris. Não foram os quadros comunistas, cujos mestres em Moscovo eram ainda
aliados de Hitler. Foi Charles de Gaulle, o patriota chauvinista e sem sentido
de humor, que foi para o exílio para dar continuidade à luta “sem esperança”.
Hoje, com uma ideologia igualmente má a ameaçar a França
e o Ocidente, não serão os cínicos corajosos a salvar a situação. Serão homens
e mulheres, enfurecidos com este ataque à sua nação. Os bem-falantes,
multiculturalistas desinteressados que consideram o entusiasmo ordinário
estarão, na sua maioria, contra eles. Os de Gaulles, estamos em crer, afastarão
os Sartres e salvarão a França e o Ocidente.
Os europeus que o fizerem serão aqueles que odeiam a
tirania e os seus valores estrangeiros, tais como a “submissão” irracional a um
Deus caprichoso do deserto. Mas mais do que ódio, serão movidos por amor: Amor
pelos seus conterrâneos franceses, alemães, suíços e ingleses e os seus modos
de vida ancestrais. Este tipo de amor, que exige o sacrifício, surge nos
espíritos grandes e vivaços. Só as almas com longo historial de coragem,
fortaleza, temperança e prudência podem esperar ter fé ou amor.
Rezamos para que a ética cristã impeça estes patriotas de
cometer qualquer acto mesquinho e que o seu combate pelo ocidente respeite os
mais elevados valores – no centro dos quais se encontra a pessoa, imagem
brilhante de Deus.
O livro “The Race to Save Our Century”, de Jason Scott Jones e John
Zmirak pode ser adquirido na loja online do The Catholic Thing na Amazon.
(Publicado pela primeira vez na Quinta-feira, 15 de
Janeiro de 2015 em The Catholic Thing)
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