Wednesday, 22 November 2023

Deus e os Judeus

David Warren

De origens obscuras, habitando em Ur dos Caldeus (Genesis 11,31), e itinerantes como nómadas, com Abraão para Canaã, e depois para a escravidão do Egipto; e para fora do Egipto e da escravatura com Moisés; e pela mão de Josué de volta para a terra prometida de Canaã; os hebreus entram para primeiro plano da história.

E nós viajamos com eles através destes tempos distantes e frequentemente impenetráveis. Como nos diz a Bíblia, com repetida claridade, esta é uma itinerância escolhida.

Não foi escolhida pelas pessoas em si, mas pelo seu Deus; ou como temos vindo a compreender de forma mais simples, por Deus. A história que herdamos é a vida que herdamos, que procede sem ambiguidade dos judeus.

Quanto mais nos familiarizamos não só com as Escrituras hebraicas, mas com os resquícios literários de todos os outros povos do “Médio” e “Próximo” Oriente, mais estranho tudo isto se torna. Pois estamos a ler mais do que uma rara história étnica. As fundações tocam ainda uma realidade teológica palpável.

Os judeus não foram escolhidos por uma mão divina e arbitrária. Foram escolhidos por revelação divina, e foi-lhes mostrada a direcção que deviam tentar seguir, ainda que falhando. Isto faz deles diferentes, únicos, distintos de todos os outros povos antigos que estudamos. 

A mão de Deus pode ser vista ao longo das escrituras hebraicas – mais uma vez, de forma diferente daquela com que nos familiarizaríamos nas muitas tradições alternativas e “pagãs”. A sensibilidade espiritual e moral que emerge, a estrutura de mandamento, marca-os como radicalmente diferentes.

Quando nós, que nos chamamos católicos, olhamos para esta história, anterior ao aparecimento físico de Cristo, não temos outra escolha se não concordar com a opinião judaica do que foi, e é, verdade.

As circunstâncias podem ser misteriosas, mas são também simples, e evidentes. Este é um dos paradoxos do “mistério” religioso: que aquilo que é mais impenetrável é também o mais simples.

Lemos, e se tivermos alguma sensibilidade sentimos na Sagrada Escritura o chamamento, a sensação de se ser escolhido. Isto acontece não porque os relatos históricos são convincentes, de forma racional ou empírica, mas porque a história que relatam contém a resposta a algo inevitável: o amadurecimento humano.

Também a fé tem uma componente evidente de mistério. Não é uma colecção de artigos científicos ou uma antologia de textos religiosos que estamos a ler. Estamos a ler – e a escutar – a palavra de Deus. São-nos feitas exigências. É-nos dito o que é verdade e certo, e belo: exigências essas que irão determinar, directa e indirectamente, o nosso percurso. Ou que serão rejeitadas, por nossa livre vontade, pois implicam uma vida de santidade contra a qual nós, enquanto animais naturais, podemos revoltar-nos.

As exigências são inconvenientes. Isto pode magoar-nos de forma radical. É-nos pedido que abdiquemos do nosso narcisismo, do nosso “ego”, no qual parece radicar a nossa sobrevivência, para abraçar algo que, desde o início, nos foi apresentado como imortal.

O que parecia ser a mensagem “moderna” do Cristianismo, afinal estava já presente desde o início: abdica daquilo que tens, pois tu és escolhido.

É a mesma mensagem que Maria canta no Magnificat: esse Sim cósmico que é pronunciado quando o homem aceita o seu destino; e quando a mulher aceita o seu destino: e é profundamente alegre.

Compreender o fenómeno do antissemitismo passa por compreender o que acontece quando dizemos Não. Não é algo que nos é feito, mas antes algo que nós fazemos.

A raiva contra os judeus – essa fúria psicopática que já devíamos esperar – é, na sua essência, uma raiva contra Deus, e contra a sua ordem.

Ficamos enraivecidos porque os judeus não “são normais”. Insistimos em reduzi-los, em persegui-los, da mesma forma que os nossos antepassados insistiram em crucificar Cristo. 

Pois existe, e pode ser encontrado nas Escrituras, algo cristoforme em cada Judeu escolhido. Ele é um meio para a compreensão de que o homem foi criado à imagem de Deus.

Isto não é algum facto aleatório, antes desafia o lugar comum a que estamos habituados. Porque o Deus em cuja imagem fomos criados é um Deus particular, que conhecemos através de uma história particular.

É uma história na qual os judeus foram os condutores de um acto de vontade divina, e na qual nós, os cristãos que vieram mais tarde, devemos reconhecer que de alguma forma também somos judeus. Pois só os judeus foram escolhidos.

Está em jogo aqui uma estranha inveja. E aqui gostaria de realçar que a inveja não é um pecado menor. No caso do antissemitismo que temos visto recentemente, e ao longo da história, atinge o comportamento homicida a que temos assistido: horrores demasiado horríveis para se descrever casualmente.

Não é por coincidência que estes crimes são cometidos pelos sem Deus. É o caso dos terroristas islâmicos cujos massacres dominam tantas vezes as notícias. Pensamos, erradamente, que são fanáticos religiosos. Mas não são.

O islamismo contemporâneo tem tido o seu próprio percurso histórico, que passa pelas revoluções que varreram o mundo árabe há décadas. O perfil racial do islamista típico não é de um místico religioso, como aquele a que a tradição sufi nos tem habituado. Não se trata de um muçulmano devoto e praticante, a não ser para inglês ver. Estamos a lidar antes com monstros claramente políticos. 

De igual modo, no ocidente, estamos agora a lidar com um inimigo que atinge o seu auge de entusiasmo nos campus universitários: estudantes muito distantes de qualquer humildade religiosa e os seus orgulhosos gurus esquerdistas.

É por isso que, no passado, nos vimos confrontados pelos Nazis, cujo ódio aos judeus transcendeu o seu ódio por qualquer outro inimigo, e é por isso que os judeus sofreram pogroms, não apenas sob o regime de Estaline.

A visão de um judeu é, de forma misteriosa, mas simples, uma recordação de Deus em forma humana. E inspira em nós a maldade da nossa primeira revolta.


David Warren é o ex-director da revista Idler e é cronista no Ottowa Citizen. Tem uma larga experiência no próximo e extreme oriente. O seu blog pessoal chama-se Essays in Idelness.

(Publicado pela primeira vez na Sexta-feira, 3 de Novembro de 2023 em The Catholic Thing)

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