Um bocadinho dramático, talvez, mas não conseguia pensar em nada melhor... |
O Pe Nuno Aurélio foi acusado de ter abusado sexualmente de
um rapaz da sua paróquia em 2013. Esse rapaz viria a suicidar-se mais tarde. Quando
as alegações se tornaram públicas o Ministério Público arquivou o processo, por
estar prescrito. Já o Patriarcado fez uma investigação preliminar, arquivada por falta de indícios.
Em 2022 o caso do Pe Nuno voltou a ser referido no relatório
da Comissão Independente, como aliás não podia deixar de ser, uma vez que tinha
estado na imprensa e uma das fontes para o relatório foi um levantamento de
casos na comunicação social. Mas foi também referido por um padre do
Patriarcado de Lisboa que entregou à Comissão Independente, ao Ministério
Público e a pelo menos dois grandes órgãos de comunicação uma lista de 12
padres suspeitos de abusos. Esse sacerdote foi inicialmente apresentado com o
pseudónimo Pe Cardoso, mas já é público que se trata do Pe Joaquim Nazaré. Nas
suas declarações à imprensa, o Pe Nazaré insinuou a culpa do Pe Aurélio no caso
do rapaz que se suicidou, e disse ainda que havia indícios de que teria havido
mais casos na sua paróquia nova, em França, não obstante essa informação já ter sido desmentida pelo Patriarcado e pela Arquidiocese de Paris.
Em resposta, o Pe Aurélio moveu um processo contra o Pe
Nazaré por calúnia e difamação, no Tribunal Patriarcal de Lisboa. O Pe Nazaré
foi chamado a defender-se, o que recusou, nunca tendo colaborado com a justiça
do Patriarcado. Uma vez que se recusou a fazer prova das acusações públicas que
tinha feito, o Tribunal Patriarcal condenou-o por calúnia. A sentença passa por
uma retratação pública, um pedido de desculpa pessoal e o pagamento de um
salário ao Fundo Diocesano. O Pe Nazaré já disse publicamente que não tenciona
cumprir a sentença.
O caso voltou a ser falado na imprensa porque um grande
órgão de comunicação social fez
notícia da sentença, com o título: “Abusos: Igreja castiga padre que
denunciou 12 sacerdotes (‘invocando o Santo Nome de Nosso Senhor Jesus Cristo’)”
Tanto quanto sei, a citação entre parêntesis é uma frase que aparece em todas
as sentenças do Tribunal Canónico.
Tragédia após tragédia
Antes de continuar, aproveito para fazer uma ressalva
importante: Eu não faço a menor ideia se o caso é verdadeiro ou não. Sei que há
certamente casos verdadeiros que caem em saco roto por falta de provas, e sei
que há denúncias falsas que estragam a vida aos acusados. Não sei em que campo
cai este caso. Sei que o Pe Nuno insiste na sua inocência, e sei que há pessoas
que não acreditam nele, e insistem na sua culpa. Portanto este texto não é uma
defesa do Pe Nuno, nem uma condenação do processo, é simplesmente um texto que
pretende mostrar como este caso é paradigmático de tudo quanto pode correr mal
neste assunto do tratamento dos casos dos abusos sexuais na Igreja.
Dito isto, tudo o que temos aqui é uma tragédia, do
início ao fim. Antes de mais nada, é uma tragédia que um rapaz se tenha
suicidado. Seja o caso verdadeiro ou não, essa é a maior tragédia de todas. O
suicídio é um indício conclusivo da veracidade do caso? Não. Uma vítima de
abusos sexuais pode matar-se por causa do peso que carrega? Sem dúvida. Mas também
é possível que o suicídio resulte de um mal-estar psicológico que por sua vez
tenha contribuído também para inventar uma acusação contra uma pessoa inocente.
Poderá haver um especialista em saúde mental que tenha acompanhado o rapaz e
tenha sobre isso uma ideia mais fundamentada, não faço ideia, mas o resto da
população deve evitar retirar conclusões precipitadas sobre o assunto.
Depois temos o arquivamento do processo civil por
prescrição. Se a acusação era verdadeira, então temos uma tragédia, porque não
se fez justiça nem se investigou devidamente. Se a acusação é falsa, idem aspas.
Surge então o processo canónico. Aqui já houve
investigação, mas convém ressalvar que os serviços do Patriarcado de Lisboa,
por melhores que sejam as suas intenções e capacidades, não têm os meios de
investigação que tem o Ministério Público. Logo, aos olhos do mundo, a decisão
do Patriarcado será sempre vista como coxa. Não é por acaso que, quando existem
processos civis em curso, as autoridades eclesiásticas tendem a esperar pela
sua conclusão para poderem reforçar a sua própria investigação. A investigação
diocesana não foi, por isso, perfeita, mas foi o que foi. E eu tenho dito
sempre que nós não temos outra opção senão confiar nos processos que existem. Não
havendo processo civil, temos de confiar no processo canónico. É infalível?
Nada na Terra é. Mas é o que temos. A tragédia aqui é que o Pe Nuno Aurélio viu
o seu processo arquivado por falta de indícios, mas jamais se livrará do
fantasma da acusação. É uma tragédia que partilha com muitos outros padres que
se viram na mesma situação, mas não deixa de ser uma tragédia.
Boys will be boys
A tragédia seguinte é a falta de resposta da Igreja para
estas situações. Já disse várias vezes que nestes assuntos falta um toque
feminino na hierarquia – não leiam isto como um apelo à ordenação de mulheres,
estou simplesmente a falar de maior presença de conselhos e influência feminina
junto dos bispos e de quem toma decisões nas dioceses – uma visão maternal que
cuide dos sacerdotes em situação de fragilidade. Dos casos que conheço
pessoalmente de padres que foram acusados deste tipo de crime, ou mesmo de
outros de natureza não sexual, com ou sem fundamento, a resposta da hierarquia
tem sido sempre desoladora. Ou são colocados na prateleira, ou são enviados
para longe, ou são deixados sem nomeação ad aeternum. Sempre com pancadinhas
nas costas e palavras de encorajamento, mas na prática abandonados. Não é por
maldade, é a forma tipicamente masculina de (não saber) lidar com situações de
vulnerabilidade. Estas pessoas precisam de acompanhamento próximo como de pão
para a boca, mas se não têm a sorte de ter uma rede de amigos –
preferencialmente leigos e idealmente famílias – que os acolham e acompanhem,
ficam perdidas.
É importante falar também sobre a questão da
reintegração, quer dos padres que são ilibados ou vêem os seus casos arquivados
por falta de indícios, quer dos que são condenados a penas canónicas que não
passam pela expulsão do estado clerical e que as cumprem. A verdade é que nada
está previsto.
No auge da polémica da Comissão Independente e das listas
de padres no activo, fui contactado por uma pessoa ligada a uma comissão
diocesana que queria criar procedimentos para a reintegração de sacerdotes
nestas situações. Disse-lhe, cheio de confiança, que certamente isso existia
nalgum lado, escusávamos de estar a inventar a roda, bastava descobrir um bom modelo
para copiar. Não é que não existe mesmo? Ou se existe, eu não consegui
descobrir. Até perguntei ao Pe Hans Zollner, provavelmente o maior especialista
no assunto de abusos na Igreja, e ele confirmou que desconhecia a existência de
quaisquer orientações.
Todos queremos que seja feita justiça de forma célere e
transparente nos casos de abusos na Igreja, mas a verdade é que não se pode
falar de justiça sem haver também um cuidado por quem já cumpriu a sua pena, ou
para quem, para todos os efeitos, deve ser considerado inocente dos crimes de
que era suspeito.
Eu não tenho uma solução mágica para isto, como é
evidente, mas a ausência de orientações leva a que cada diocese trate à sua
maneira, e na maioria das vezes mal, regressando ao abandono de que falámos
acima. Isto também é trágico.
Entre a colaboração e a calúnia
Chegamos agora à questão do Pe Joaquim Nazaré. Eu
entendo, aceito e até aplaudo a iniciativa do Pe Joaquim de entregar às
autoridades eclesiais e civis, e à Comissão Independente, a informação de que
dispunha, ainda que não passasse de boatos ou de recortes de jornais. Não há
mal em fazer chegar essas informações a quem as possa depois investigar e averiguar.
Onde ele errou, a meu ver, foi em decidir falar com a imprensa e, mais
especificamente, tecer opiniões jurídicas sobre casos sem ter as devidas
provas. Fazê-lo ao abrigo de um anonimato mal-amanhado – toda a gente que o
conhece reconheceu-o e até eu, que não o conheço, sabia a identidade dele 24
horas depois de as notícias saírem – foi uma ideia ainda pior.
A mim também me chegam muitos boatos. Durante a fase do
relatório e das listas, cheguei a ser contactado por um representante legal de
uma alegada vítima de um padre, que me disse que o que o seu cliente queria era
que o nome do alegado abusador se tornasse público, mas que não tencionava
aprofundar o caso ou falar com as autoridades eclesiásticas para possibilitar
um processo canónico. Como é evidente não colaborei com o que me pareceu
claramente uma tentativa de assassinato de carácter, sobretudo sem ter a menor
forma de poder verificar a veracidade das alegações. Mas caso não soubesse que
o nome já era do conhecimento das autoridades civis e eclesiásticas, não teria
problema nenhum em partilhar a informação que tinha recebido, para que eles
pudessem investigar e tomar medidas. Uma coisa é colaborar com a justiça, outra
é procurar escândalo. Seja qual for a motivação do Pe Joaquim Nazaré, ele não
pode fazer acusações muito graves com base em opiniões pessoais ou alegações de
que tem conhecimento.
Depois temos a decisão do Pe Nuno Aurélio de o processar
no tribunal canónico, que é um direito que lhe assiste e de que se valeu. Poderia
ter simplesmente deixado cair o caso? Poderia. Talvez fosse mais sensato, mas não
o fez e não me parece que deva ser criticado por isso. A sentença do processo
parece-me ter sido justa e esperada, e a pena aplicada perfeitamente razoável.
A decisão do padre Joaquim Nazaré de não colaborar é também um direito que lhe
assiste, mas revela desrespeito pela metodologia da Igreja que serve, o que é
lamentável.
Por fim, temos a decisão, a meu ver também trágica, de um
órgão de imprensa sério ter decidido noticiar este caso de uma forma sensacionalista.
O título do artigo está claramente feito para passar a mensagem de que a Igreja
está a castigar um padre por ele ter denunciado casos, o que se fosse verdade
seria extraordinariamente grave, mas não é. Reforça também a ideia já muito
disseminada de que a Igreja está interessada, acima de tudo, em encobrir casos
e evitar escândalos, o que me parece injusto, sobretudo no caso do Patriarcado
de Lisboa, que já deu provas de lidar com estes casos de forma rigorosa, sobretudo
nos últimos anos. Há muito a criticar na forma como as dioceses e a Igreja
portuguesa têm lidado com esta crise dos abusos, e eu não tenho tido a menor
hesitação em meter o dedo na ferida quando sinto que é necessário ou
pertinente, mas este tipo de situação, em que se pega numa sentença justa por difamação
e calúnia, para a transformar num caso de perseguição e vingança, sem qualquer
fundamento, não contribui para nada.
Temos, portanto, um rol de tragédias em que não me parece
haver nada de positivo a salientar. Que bom que seria que fosse o último, mas
temo que não será.
Leia também
Cronologia dos casos de abusos sexuais na Igreja em Portugal
O que sabemos das listas dos abusadores compostas pela Comissão Independente
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