Thursday, 23 November 2023

O outro conflito na Terra Santa. A terra em si.

Há poucos dias foi publicada uma declaração curiosa por parte dos líderes das igrejas cristãs da Terra Santa. Os líderes lamentaram os acontecimentos recentes no bairro arménio de Jerusalém.

Antes de entrar nos detalhes, é preciso explicar que Jerusalém está dividida essencialmente em quatro sectores. O sector judeu, o sector muçulmano, o sector cristão e o sector arménio. Todos representam as antigas comunidades que vivem na cidade, lado-a-lado, há séculos.

O bairro arménio é o mais pequeno dos quatro e é distinto do bairro cristão, que é maioritariamente habitado por cristãos árabes.

Quando o Estado de Israel foi fundado, em 1948, Jerusalém era suposto ficar sob controlo internacional, mas no seguimento do ataque falhado por parte da coligação árabe, Israel tomou conta da parte ocidental, ficando a Jordânia com a oriental. Em 1967, depois da Guerra dos Seis Dias, Israel ocupou a parte oriental. A cidade ficou toda sob controlo de Israel desde então, embora à luz do direito internacional seja considerado território ocupado.

Sabendo disso, e para consolidar o controlo de facto da cidade, activistas judeus têm estado envolvidos numa campanha de décadas para comprar, aos poucos, todo o terreno possível em Jerusalém, com o objectivo de assegurar uma maioria judaica naquela que consideram ser a capital eterna de Israel. Como devem calcular, as outras comunidades temem esta estratégia e têm lutado contra ela, condenando e censurando publicamente quem vende terreno ou edifícios a judeus.

Irineu a acenar do seu "exílio"
Um dos casos mais polémicos – envolvendo cristãos, pelo menos – ocorreu no início do milénio, quando se descobriu que o Patriarca Irineu, da Igreja Ortodoxa Grega em Jerusalém, tinha vendido secretamente terreno da Igreja a investidores judeus. Sublinho aqui que embora a hierarquia do Patriarcado Ortodoxo Grego de Jerusalém seja de etnia grega mesmo, a esmagadora maioria dos fiéis são árabes palestinianos. O impacto do negócio entre a comunidade foi de tal ordem que o Patriarca foi destituído e viveu durante anos num apartamento no edifício do patriarcado, recebendo comida subida por cordas num cesto e afirmando estar detido contra a sua vontade. Apesar disso, Israel continuou a reconhecê-lo como o Patriarca legítimo até 2007. Irineu deixou finalmente Israel em 2019, tendo morrido em janeiro deste ano. O actual Patriarca impediu-o de ser sepultado em Jerusalém, por isso foi enterrado na sua terra natal, na Grécia.

Agora parece que estamos perante a mesma situação, mas com a Igreja Arménia. Um empresário judeu australiano afirma que o Patriarcado Arménio lhe vendeu uma propriedade em Jerusalém, mas o Patriarca diz que não tinha essa intenção e que foi enganado. Para terem noção, o negócio envolve território equivalente a 25% de todo o bairro arménio. O Patriarcado Arménio está a contestar o negócio, dizendo que este tinha de ter passado pelo sínodo, o que não aconteceu.

Recentemente a empresa compradora tentou arrancar com obras num parque de estacionamento, que está entre os lotes disputados. Os arménios convocaram uma manifestação pacifica no local, para contestar a actividade, e em resposta apareceu um grupo de colonos judeus, com armas e cães, que ameaçaram os arménios, intimando-os a abandonar o local. Foi preciso chegar a policia para pôr cobro à questão, mas o clima de tensão mantém-se e os arménios de Jerusalém estão muito preocupados, porque a avançar este negócio ameaça a própria sobrevivência da comunidade.

Foi isto que motivou a declaração conjunta dos líderes religiosos. É mesmo preciso ter em conta a importância destas declarações conjuntas, porque as relações entre as diferentes confissões cristãs na Terra Santa são famosas por serem muito conturbadas e até hostis, especialmente entre os gregos e os arménios. Quando falo em hostis não é ao nível da população geral, que até se dá bem, mas entre padres e monges, que não raras vezes se envolvem em confrontos físicos.

Por fim, há aqui um aspecto que pode parecer simbólico, mas é também importante, sobretudo para a comunidade arménia. Os arménios são um povo muito unido. Estando espalhados pelo mundo, mantém entre eles uma solidariedade e sentido de pertença assinalável. Por isso, todos os arménios sentiram na sua própria pele a derrota dos seus compatriotas em Nagorno Karabakh e a consequente expulsão do território disputado pelo Azerbaijão. Pode-se dizer, por isso, que a ameaça de serem varridos de outro território que habitam há séculos é levada muito a sério.

Mas para agravar tudo isto, sabe-se que para além do apoio da Turquia, o Azerbaijão só conseguiu reverter o status quo em Nagorno Karabakh com armas fornecidas por Israel, por isso a actual ameaça partir de israelitas armados é um golpe particularmente duro para os arménios.

O confronto entre Israel e o Hamas, em Gaza, tem dominado as notícias ao longo do último mês, mas, como estamos a ver, essa é apenas uma parte de um conflito muito complexo e que tem uma variedade de frentes, nas quais o dinheiro e a aquisição de terra são também armas fundamentais.

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