De tempos a tempos todos nós precisamos de ser abanados e
acordados da nossa própria cegueira e complacência. Nas palavras do Papa
Francisco: “Que o Senhor nos dê a graça de enviar sempre um profeta – pode ser
um vizinho, um filho ou filha, uma mãe ou um pai – para nos dar umas
palmadinhas quando cairmos para um mundo em que tudo parece ser legítimo.”
É isto mesmo.
Talvez possamos ir mais longe e aplicar isto não só ao
reconhecimento da nossa cegueira para com as nossas próprias falhas, mas também
à sabedoria para rezar por correcção. Ser cego por causa dos nossos pecados,
incapaz de os ver, como David, é uma coisa. Mas perder a noção de que as nossas
acções podem ser julgadas por alguém, de acordo com um qualquer padrão que nos
ultrapassa, é outra.
A correcção fraterna pressupõe a existência de fraternidade.
Este tipo de correcção requer um sentido de responsabilidade e confiança mútua
entre as partes (como se esperaria encontrar entre irmãos). Mas a um nível mais
básico (quase pedante), a correcção fraternal pressupõe um sentido partilhado
da própria natureza e fonte da fraternidade: os irmãos são-no porque
partilham um mesmo pai.
Por isso, um cristão poderá ser convencido da necessidade
de se arrepender quando lhe forem reveladas as formas como se desviou da lei de
Deus ou da lei da Igreja. Mas isso depende do reconhecimento prévio por parte
do pecador da existência dessas mesmas leis, e um desejo, por mais imperfeito
que seja, de viver de acordo com elas.
E a pessoa que não reconhece tais leis, ou a autoridade
que as sustenta? E a pessoa que acredita que o mal é na verdade o bem? E a
pessoa que não conhece o Pai e nega os ensinamentos da nossa Mãe, a Igreja? Tal
pessoa não está para além da esperança da misericórdia e do arrependimento,
como é evidente, mas o apelo à lei (a lei de Deus, a lei da natureza, a lei da
Igreja ou até a lei do homem), cuja autoridade ele não reconhece, dificilmente a
levará ao arrependimento.
Em tais casos a perda do sentido do pecado não é apenas a
incapacidade de ver o meu próprio pecado, mas a perda da possibilidade de
reconhecer que o pecado é pecado sequer. Se perdemos Deus de vista, se perdemos
de vista o bem do qual o pecado é um afastamento ou uma negação, então a
própria categoria de pecado (para não falar de fraternidade) deixa de ter
qualquer sentido.
É interessante notar como chegámos à beira daquilo que
Nietzsche entendeu quando observou que “se nada é verdade, tudo é permitido”,
razão pela qual descrevia o seu projecto filosófico – aliás, a si mesmo – como
“Dionísio versus o Crucificado”.
E isto parece-me ser muito mais próximo daquilo que o
Papa Pio XII tinha em mente quando falou da perda do sentido de pecado nos
meses imediatamente a seguir aos horrores da Segunda Guerra Mundial. O remédio
que o Papa Pio propôs não era, pelo menos numa primeira instância, recordar o
mundo da lei moral de que se tinha esquecido, ou que tinha negado. Antes, o
remédio encontrar-se-ia no Cristo Crucificado. Nele, a realidade do pecado é
colocada em bruto contraste com aquele amor que todo o pecado ofende.
Vale a pena voltar a olhar para o discurso de Pio XII de
1946, onde regista o seu lamento pela perda do sentido de pecado exactamente
neste contexto:
Conhecer Jesus crucificado é conhecer o horror de Deus
ao pecado; a sua culpa apenas pôde ser purificada no precioso sangue do Filho
unigénito de Deus, feito homem.
Não vivemos num mundo em que os corações e as
consciências do homem podem ser facilmente tocados pelos apelos à autoridade,
nem mesmo à autoridade de Deus. Mesmo dentro da Igreja, entre os baptizados,
nem sempre é eficiente apelar à autoridade da doutrina ou à Divina Revelação.
Poderíamos desejar que não fosse assim, mas é.
O que nos resta, portanto, é proclamar a Boa Nova de uma
forma que o mundo ainda consiga entender. Se os apelos à autoridade não tiverem
adesão, então resta um caminho que é tão convincente hoje como sempre foi.
Ouçamos novamente Pio XII.
No Sermão da Montanha, o divino Redentor iluminou o
caminho que conduz à vontade do Pai e à vida eterna; mas do cadafalso do
Calvário flui a torrente sempre plena e constante de graças, de força e de
coragem, a única que permite ao homem trilhar esse caminho com um andar firme e
certo.
Esse percurso é nos revelado por aquele que o trilhou
antes de nós – embora ele não tenha precisado de um Natã para o corrigir –
aquele sobre quem Pilatos falava quando clamou: “Eis o Homem”. Nada condena
mais o pecador que o amor incomensurável de Deus. Nada penetra até ao cerne da
consciência do homem mais do que a própria misericórdia de Deus. E a força e a
coragem para percorrer esse caminho jorram até nós desde cima.
Stephen P. White é investigador em Estudos Católicos no
Centro de Ética e de Política Pública em Washington.
(Publicado em The Catholic Thing na Quinta-feira, 21 de Setembro de
2023)
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