Francis X. Maier |
O enredo é bastante simples. Neo (um anagrama para “One”,
o escolhido) é um programador e hacker que sente que há algo indefinível de
errado no tecido da vida diária. Neo é contactado online por membros de uma
resistência humana que procuram destruir as máquinas. Estes dão-lhe a escolher
entre dois comprimidos. O azul levá-lo-á de volta aos prazeres da sua realidade
imaginada, sem qualquer memória do que se passou. O encarnado abre-lhe os olhos
para a dura verdade. Neo toma o comprimido encarnado e liberta a sua mente.
Acabará por se tornar, para todos os efeitos, o salvador da humanidade.
Escrito e realizado pelos Irmãos Wachowski (actualmente,
graças ao “milagre” dos medicamentos hormonais e de cirurgia, as Irmãs
Wachowski) o filme é uma mistela de génio imaginativo, messianismo bíblico e
misticismo oriental, que captura de forma perfeita o custo de o homem brincar
ao Aprendiz de Feiticeiro; o custo de sobrestimar a nossa sabedoria e
subestimar as consequências das ferramentas que criamos.
Aquilo a que chamamos progresso vem sempre com um senão.
Se a tecnologia nos dá, também nos tira. A escrita permite gravar os nossos
pensamentos, mas como Platão argumentou, também enfraquece a memória. O
automóvel transporta-nos mais depressa, mas também polui a atmosfera. É o mesmo
com qualquer nova tecnologia.
E no mundo do Matrix esta nova ferramenta tira
tudo, a começar pela liberdade e dignidade humana. As máquinas alimentam-se,
literalmente, da vida e da energia das suas vítimas iludidas, tal como os
ídolos pagãos, naturalmente vazios, vampirizam a vida dos seus idólatras.
Claro que o Matrix é ficção científica. É apenas
uma história, muito longe do mundo em que vivemos aqui e agora. Mas talvez não
tão longe como gostaríamos de pensar. Consideremos o seguinte trecho, escrito à
menos de dois anos:
Às vezes fico acordado à noite, ou deambulo pelo campo
atrás da minha casa, ou passeio pela rua da vila em que vivo e penso que a
consigo ver toda a volta: a rede. As veias e tendões da máquina que nos rodeia,
que nos paralisa e que agora nos sustenta e nos define. Imagino uma espécie de
rede de fios luminosos no ar, brilhando como uma teia de aranha coberta de
orvalho ao nascer do sol. Imagino os cabos e as ligações de satélites, os
filmes e as palavras e os discos e as opiniões, os nós e os centros de dados
que rastreiam e registam os detalhes da minha vida. Imagino a malha criada
pelas transacções bancárias e as compras, os pedidos de passaporte e as
mensagens enviadas. Vejo esta coisa, seja o que for, a ser construída, a
construir-se à minha volta, vejo-a a erguer-se e a apertar o punho, e vejo que
nenhum de nós a pode impedir de evoluir para se tornar o que seja que se está a
tornar.
Vejo a Máquina, a zumbir gentilmente para si mesmo
enquanto nos prende com as suas ofertas, seduzindo-nos com as suas promessas enquanto
nos puxa devagarinho para dentro. Penso sobre as partes com que interagimos
diariamente, a interface brilhante e branca à qual revelamos voluntariamente
cada detalhe das nossas vidas em troca de informação, ou prazeres, ou histórias
contadas por corporações globais de entretenimento que mercantilizam a nossa
cultura para no-la revender. Penso nas palavras que usamos para descrever esta
interface, que carregamos nos nossos bolsos para todo o lado, que nos rastreia
em cada rua, em cada floresta que ainda existe: a teia [web], a rede.
E penso: Isto são coisas concebidas para apanhar
presas.
Devemos evitar a tentação de achar que Kingsnorth está
meramente a ser alarmista ou excessivo. O grande filósofo e teólogo protestante
francês Jacques Ellul disse o mesmo e ainda mais em A Sociedade Tecnológica,
há quase 70 anos.
Ellul argumentava que a adição moderna à tecnologia
enquanto panaceia leva inevitavelmente o “estado a tornar-se totalitário, a
absorver completamente as vidas dos seus cidadãos. Mesmo quando o estado é
liberal e democrático, não pode se não tornar-se totalitário. Pode fazê-lo
directamente, ou como no caso dos Estados Unidos, através de interpostas
pessoas. Mas independentemente das diferenças, todos os sistemas acabam por
chegar ao mesmo resultado.” O adolescente médio americano passa agora até nove
horas por dia a olhar para ecrãs. Isso tem consequências psicológicas, logo
sociais, logo políticas.
No Matrix o despertar de Neo para a realidade
implica desligar-se literalmente das máquinas e suportar uma recuperação
dolorosa, embora salvífica. Paul Kingsnorth livrou a vida diária da sua família
de grande parte do casulo narcótico de alta tecnologia. (Não deixou de escrever
no computador, não é propriamente chanfrado).
E está mais feliz por isso – por uma boa razão. Não
podemos ser as criaturas de dignidade que Deus quis; não podemos ser fermento
neste mundo; não podemos servir Jesus Cristo e ver claramente aquilo que deve
ser feito no mundo, se formos apenas montes de detrito adormecidos. Fomos
feitos para mais do que isso. Como escreve São Paulo, fomos feitos para ser
filhos e filhas da luz, por isso, “não durmamos, pois, como os demais, antes
vigiemos e sejamos sóbrios” (Tess. 5,6).
Por outras palavras: Toma o comprimido.
Francis X. Maier é conselheiro e assistente especial do
arcebispo Charles Chaput há 23 anos. Antes serviu como Chefe de Redação do
National Catholic Register, entre 1978-93 e secretário para as comunidades da
Arquidiocese de Denver entre 1993-96.
Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na quinta-feira, 14 de Setembro de
2023)
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