Podemos pensar num bispo como uma mera figura de proa
para um sistema bastante bem montado, e que até pode funcionar sozinho – afinal
de contas, Setúbal está há quase dois anos com um administrador apostólico em
vez de um bispo e as coisas vão andando – mas isso seria um terrível erro. Ou pelo
menos devia ser.
Um bispo faz muita falta a uma diocese, como ponto de referência
para os seus fiéis e, sobretudo, como ponto de referência e de concórdia para
os seus padres. Faz falta quem determine um rumo; faz falta quem congregue as
ovelhas, que de outro modo tendem a dispersar.
Sem ir mais longe, reparemos que Setúbal esteve sem bispo
durante todo este tempo em que a Igreja teve de enfrentar a crise dos abusos
sexuais, quando mais era preciso haver vozes firmes para conduzir uma Igreja
local ferida, magoada, revoltada e com medo. Quando mais era preciso colocar
alguma ordem, precisamente nesse assunto, cujo tratamento em Setúbal tem
deixado muito a desejar.
Também por todas as razões elencadas acima, não basta uma
diocese ter um bispo, tem de ser um bom bispo. Um bispo que não seja apenas um
burocrata. Setúbal, depois de tudo o que passou, merece um bispo activo, capaz
e comprometido com o seu rebanho.
D. Américo tem potencial para fazer um bom trabalho em
Setúbal e para ser essa figura, e assim espero que seja.
É verdade que ele não é a pessoa mais consensual do
mundo, mas há boas razões para pensar que as dificuldades que sentiu em Lisboa não
se repetirão na sua nova diocese.
D. Américo entrou em Lisboa como o braço direito de D.
Manuel Clemente, que trabalhou com ele quando foi bispo do Porto. Ao contrário
de D. Manuel, que regressava a uma casa onde era já conhecido e estimado, o
então Padre Américo vinha de fora com aura de protegido e com atitude de cão de
guarda do pastor (o termo é dele, e não meu). Isso não caiu bem entre muito do
clero lisboeta.
Desde cedo começou a coleccionar cargos. Desde presidente
do Conselho de Administração da Renascença – uma máquina influente e enorme,
mas fragilizada e a precisar de reformas corajosas e urgentes – a homem de
ponta para lidar com a crise dos abusos e, mais tarde, arquitecto daquele que
foi simplesmente o maior evento que Portugal alguma vez recebeu, e alguma vez
receberá.
Entretanto foi nomeado bispo auxiliar de Lisboa. Bispo auxiliar
é um cargo complicado, não é carne, nem é peixe. É bispo, certo, mas não é a
cabeça da diocese, nem é visto como tal pelo clero. Sei que muitos padres
ficaram desagradados com a forma como ele exerceu esse cargo, nomeadamente na
relação com o clero, agindo como seu superior – que era, hierarquicamente – o
que foi interpretado por alguns como uma usurpação da autoridade do Patriarca.
Agora D. Américo não terá esse problema. É ele o pastor
de Setúbal e espera-se mesmo que se comporte como tal. Sobretudo porque Setúbal
precisa urgentemente de alguém que ponha ordem na diocese e consiga resolver
problemas complicados, incluindo financeiros, que ela enfrenta. D. Américo pode
ter muitos defeitos, mas é um homem de acção e que gosta de ter a “mão na massa”,
o que aqui será um enorme benefício.
O novo bispo de Setúbal chega “em alta”, tendo sido a face do enorme sucesso que foi a Jornada Mundial da Juventude e entrará oficialmente na diocese já como cardeal, o que não deixa de constituir uma enorme honra para uma diocese que tem menos de 50 anos.
O que nos leva à segunda questão. Então e Roma?
Durante meses era dado como certo que D. Américo estaria
a caminho de um cargo na cúria romana, a pedido específico do Papa Francisco. O
que é que terá acontecido? Não sei, mas não se pode excluir que o próprio D.
Américo tenha preferido ficar em Portugal, numa diocese onde pode desenvolver
uma acção mais directa e no terreno, do que num gabinete no Vaticano. Se assim
for é bom sinal, pois revela ausência de carreirismo.
Pode ter contribuído para isso o facto de o futuro
cardeal não dominar línguas estrangeiras, nomeadamente o italiano, que é
essencial para conseguir trabalhar em Roma.
O que espero, sinceramente, é que D. Américo não esteja a
prazo em Setúbal. Não digo que tenha de lá ficar a cumprir o mandato até aos 75
anos, mas pelo menos tempo suficiente para traçar um plano de acção e o concretizar,
tempo para lançar raízes e deixar trabalho feito. A passagem relâmpago de D. José
Ornelas não deixou especiais saudades aos setubalenses e a última coisa de que
precisam é de um bispo que dê ares de estar simplesmente a pousar antes de
partir para voos mais altos.
D. Américo é novo, só faz 50 anos em Dezembro. Tem mais
que tempo, ainda, para fazer um bom trabalho na sua nova diocese. E o facto de
ser cardeal significa que certamente terá também cargos em Roma que o obriguem
a viajar e a pôr a render os talentos que Francisco reconheceu nele.
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