Thursday, 14 September 2023

O Papa e a Ucrânia: uma sucessão de falhas de comunicação e interpretações mal-intencionadas?

Um dos aspectos mais curiosos e inesperados da guerra na Ucrânia é o facto de o Papa Francisco estar a ser visto por muitos como sendo de alguma forma pró-russo, ou pelo menos russófilo.

Porque é que isto tem acontecido, e será justa a sugestão?

Recentemente os bispos da Igreja Greco-Católica Ucraniana estiveram em Roma para o seu sínodo, e encontraram-se com o Papa, tendo o seu líder, o arcebispo-maior Sviatoslav Shevchuk, aproveitado a ocasião para dizer francamente a Francisco que o seu povo está magoado com ele.

O último incidente foi a mensagem por vídeo que o Papa fez aos jovens católicos da Rússia, em que apelou que estes sejam fiéis à herança intelectual e espiritual dos seus antepassados, referindo como exemplos figuras históricas da Rússia como Pedro o Grande e Catarina II. Os ucranianos sentiram-se ofendidos com essas palavras, recordando que esses imperadores cometeram crimes contra vários povos, incluindo os ucranianos. (As palavras polémicas foram ditas de improviso, no final do discurso, e não aparecem no discurso oficial publicado no site do Vaticano.)

Mas este foi apenas mais um caso. Antes tinha havido dois episódios nas vias sacras de Roma, na Sexta-feira Santa, em que o Vaticano pediu a russos e ucranianos para carregarem a cruz juntos. No primeiro caso eram duas mães, uma de cada nação, e no segundo eram duas crianças que tinham perdido os pais na guerra, um de cada lado. Em ambas as situações os ucranianos ficaram lívidos, acusando o Vaticano de estar a equiparar o sofrimento e a condição das vítimas e dos agressores.

Tivemos ainda a ocasião em que o Papa pareceu dar a entender que a Rússia tinha sido provocada pela aproximação da NATO às suas fronteiras.

Sejamos claros, há aqui sérias falhas de comunicação por parte do Vaticano, e mais especificamente do Papa. Referir Pedro e Catarina era desnecessário e o próprio Francisco lamentou-o no final da sua viagem à Mongólia; e depois de no primeiro ano a ideia da Via Sacra ter caído tão mal na Ucrânia – foi a primeira vez em mais de uma década que a televisão católica ucraniana não a transmitiu em directo – é incompreensível que o tenham feito outra vez no ano seguinte. Pior, sei que queriam repetir o gesto na JMJ, mas a organização portuguesa conseguiu evitá-lo.

Mas estamos também perante um problema de interpretação. Há muito de subjectivo na forma como interpretamos palavras, ou até falhas de comunicação. É sempre possível fazê-lo pela pior lente possível, e parece ser isso o que se está a passar aqui.

O Papa Francisco não é militar, nem é apenas o Papa dos ucranianos, apesar de haver mais católicos na Ucrânia do que na Rússia. Ele é o Papa, ponto final, e a sua obrigação é pugnar pela justiça, sim, e pela paz, certamente, mas não pode, em prol disso, sacrificar as relações com toda uma nação, sobretudo uma nação como a Rússia que, por mais que esteja corrompida a sua chefia, tem uma das Igrejas ortodoxas mais importantes do mundo.

Isso significa que sempre que Francisco age neste campo ele está a levar a cabo uma operação de equilibrismo complexa, em várias frentes. É importante que a guerra acabe, mas a guerra deve acabar sem uma paz justa que devolva à Ucrânia todo o seu território e, já agora, as centenas de milhares de crianças que os russos raptaram? E defender explicitamente essa vitória total não é, de certa forma, defener o prolongar da guerra e, por conseguinte, mais mortes? É importante denunciar o agressor nesta guerra, mas como fazê-lo sem virar a Rússia ainda mais contra o ocidente e contra a Igreja Católica do que já está?

O risco do equilibrismo é que inevitavelmente pode-se cair. E Francisco, ou a diplomacia da Santa Sé, já teve umas quedas, mas só cai quem lá está e a Igreja está lá porque quer mesmo, sinceramente, ver alcançada a paz na Ucrânia.

Para muitos ucranianos, contudo, e incluindo os líderes religiosos, tudo o que não seja a defesa incontestada de uma vitória ucraniana a todos os níveis é visto como uma facada nas costas. E isso explica as reacções negativas por parte de muitos ucranianos. Não me entendam mal… Acho que isto é completamente compreensível, e simpatizo. Mas o papel do Papa não é ser cheerleader para a Ucrânia nesta guerra, até porque se o fizer perde qualquer margem de manobra junto da Rússia, e já vimos que o Papa tem conseguido alguns sucessos nesse campo, nomeadamente a nível de trocas de prisioneiros.

Mas parece-me evidente que chegámos ao ponto em que muito ucranianos já perderam a tolerância e por isso interpretam sempre da pior forma possível tudo o que Francisco diz sobre este assunto. Vejamos a tal mensagem que ele proferiu aos jovens católicos russos, recordando que está a falar com pessoas que estão na Rússia, a viver debaixo do regime de Putin. “Desejo-vos, jovens russos, a vocação de serdes artífices da paz no meio de tantos conflitos, no meio de tantas polarizações de todos os lados, que assolam o nosso mundo. Convido-vos a ser semeadores, a lançar sementes de reconciliação, pequenas sementes que, neste inverno de guerra, não brotarão, entretanto, no solo gelado, mas florescerão numa futura primavera.”

Isto são palavras de coragem, é um desafio que embora não referindo especificamente a guerra da Ucrânia, foi claramente compreendida como tal pelos ouvintes. Mas no meio disto, tudo o que ficou para os críticos foi o elogio à herança russa e uma referência, mal pensada é certo, aos imperadores Catarina e Pedro.

Para mim todos estes ataques ao Papa parecem particularmente injustos uma vez que eu tive o trabalho meticuloso e muito desgastante de acompanhar todas as intervenções feitas sobre a guerra na Ucrânia por líderes religiosos significativos. Só o fiz durante o primeiro ano da guerra, mas foi tempo suficiente para perceber que Francisco foi, mas de longe, o líder religioso não-ucraniano que mais falou da Ucrânia. Só o líder da Igreja Greco-Católica da Ucrânia o superou, e isso é porque ele publicava uma mensagem diária para os seus conterrâneos. Francisco falou um total de 126 vezes sobre a Ucrânia em 365 dias.

Mas não foi só falar. O Papa condenou a guerra, tendo sido dos primeiros líderes mundiais a dizer explicitamente que se tratava de uma guerra e não de uma “operação militar”; nunca hesitou em dizer que a Rússia é que era a responsável pela mesma e que a Ucrânia e os ucranianos eram e são as vítimas; rompeu com o protocolo e foi pessoalmente à embaixada da Rússia no Vaticano para pedir justificações aquando da invasão; enviou representantes para os locais de massacres e matanças; recebeu e beijou bandeiras ucranianas, vindas desses mesmos locais de massacres; apelidou os ucranianos de “corajosos”, “atormentados”, “sofredores” e “mártires”; chamou ao Patriarca de Moscovo acólito de Putin… A lista é enorme.

Quem acompanha o que o Papa escreve e diz, e não apenas as polémicas que de vez em quando surgem quando diz a coisa errada, não pode se não concluir que Francisco está firmemente do lado do povo ucraniano e que deseja o melhor para ele. Que os ucranianos, que tanto sofrem, sintam que isso não basta, porque queriam era ver o Papa a lançar anátemas sobre toda a Rússia e a apelar a uma vitória militar, é compreensível, mas que pessoas de fora, e boa parte da imprensa, alinhem nessa imagem distorcida é perfeitamente injusto.

4 comments:

  1. O autor insiste numa visão unilateral do conflito. Sou católico e em nada consigo acompanhar o autor. A Rússia foi de facto e de direito provocada ao longo das últimas décadas, recorde-se que a Ucrânia atacou e dilacerou por anos povos russos, mas não é o foro próprio para estas conversas. Querer criticar a preocupação pelos dramas pessoais e familiares procurando a militância por um dos beligerantes é tudo quanto não importa à construção da paz.

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