Wednesday, 10 May 2023

A Instrutiva Obscuridade das Escrituras

Quando as pessoas descobrem que eu já fui um seminarista calvinista, a reacção típica é perguntar-me porque é que decidi tornar-me católico. A razão inclui referências a uma doutrina de que a maioria dos católicos – e mesmos os protestantes – nunca ouviu falar: perspicuidade, também conhecida como claridade.

A perspicuidade não é uma das cinco “solas” que compõem as doutrinas centrais da Reforma Protestante: sola scriptura, sola fide, sola gratia, solus Christus, e soli deo gloria. Não obstante, ela foi afirmada por todos os principais pensadores da Reforma, Lutero, Calvino, Zwingli e Cranmer. E, ainda que não seja frequentemente pregada a partir dos púlpitos protestantes, ela é a doutrina que destranca todas as outras doutrinas protestantes, como defendo no meu novo livro “The Obscurity of Scripture”. Passo a explicar.

Pese embora não exista uma definição única sobre a qual todos os protestantes concordam, a perspicuidade significa, de forma geral, que a Bíblia é clara. Alguns defendem que a Bíblia é clara no que diz respeito às “verdades essenciais da fé cristã”, outros que é clara no que diz respeito ao Evangelho e outros ainda que é clara em todo o seu conteúdo.

Em todo o caso, a definição mais comum de perspicuidade é aquela que se lê na Confissão de Fé de Westminster, um documento dos presbiterianos ingleses, publicado em 1647, onde se lê:

Na Escritura não são todas as coisas igualmente claras em si, nem do mesmo modo evidentes a todos; contudo, as coisas que precisam ser obedecidas, cridas e observadas para a salvação, em um ou outro passo da Escritura são tão claramente expostas e explicadas, que não só os doutos, mas ainda os indoutos, no devido uso dos meios ordinários, podem alcançar uma suficiente compreensão delas.

Por outras palavras, a Bíblia é clara pelo menos no que diz respeito ao que é necessário para a salvação. A primeira vez que encontrei esta doutrina foi na universidade, quando estava a ler as obras do pensador reformado R.C. Sproul. A ideia fez imediatamente sentido para mim: se nós, protestantes, acreditamos que a Escritura é a única medida infalível da fé, então claro que deve haver algum princípio que o torna acessível ao cristão individual. De outra forma regressaríamos ao paradigma em que precisaríamos de recorrer a alguma autoridade externa. Mas não era precisamente isso que a primeira geração da reforma estava a repudiar na sua revolta contra Roma?

Mas havia um dilema: os protestantes discordam sobre quase tudo, incluindo aquilo que é necessário para a salvação. É verdade que isto pode parecer um problema fácil de resolver, mas algumas interpretações protestantes parecem contradizer não só o pensamento dos primeiros reformistas, como até mesmo o direito natural. O meu curso sobre as Epístolas de São Paulo, por exemplo, incluía um livro com interpretações pró-LGBTQ, o que me pareceu altamente improvável.

Mas outros debates entre protestantes eram um pouco mais complicados. Nos meus estudos religiosos na Universidade de Virgínia, e depois no seminário calvinista, aprendi sobre algo chamado “Nova Perspectiva sobre Paulo” (NPP), cujos defensores questionavam (se é que não atacavam abertamente) a doutrina de sola fide como não sendo bíblica. Enquanto defensor da sola fide, eu não gostava da NPP, mas este não era um qualquer movimento académico politizado que pudesse ser facilmente descartado. Mesmo o bispo N.T. Wright, um bispo anglicano e bastião da ortodoxia em assuntos como a veracidade da ressurreição, estava no campo da NPP.

Tentei chegar ao fundo da questão sobre a NPP, li livros a favor e contra, tentei aprender grego bíblico para poder interpretar sozinho as cartas de Paulo, e passei literalmente anos a tentar adquirir a certeza completa de que os defensores da NPP estão errados.

Mas quando cheguei ao verão de 2010 estava num impasse. Não estava mais próximo de determinar se os académicos da NPP estavam certos ou errados sobre São Paulo (e por extensão sobre a sola fide e todo o projecto da Reforma Protestante). Os académicos de ambos os lados eram mais instruídos do que eu, mais inteligentes do que eu e tinham pensado muito mais a fundo sobre São Paulo do que eu alguma vez poderia.

Foi então que me ocorreu. O ponto do protestantismo não era de que as verdades bíblicas essenciais, aquelas que dizem respeito à salvação, são claras, até para os cristãos menos instruídos, desde que as abordem como humildade e procurem a ajuda do Espírito Santo? Mas aqui estava eu, imerso num debate cultural, histórico e arqueológico sofisticado, para não falar da tentativa de compreender o vernáculo para compreender uma Bíblia supostamente “clara”.

E isto era só a ponta do icebergue. Os calvinistas discordam sobre se os bebés devem ser baptizados (os presbiterianos dizem que sim, os baptistas reformados que não). Lutero e Zwingli tiveram uma discussão muito pública (e muito feia) sobre o significado da Eucaristia no Colóquio de Marburgo. O baptismo e a Eucaristia não são também doutrinas essenciais? Segundo algumas tradições cristãs são essenciais para a salvação.

Foi então que, para mim, o protestantismo colapsou enquanto sistema coerente e intelectualmente defensável. Claramente a Bíblia não é clara sobre aquilo que é necessário para a salvação. Os protestantes não estão apenas em desacordo com os católicos sobre estas coisas, estão em desacordo uns com os outros.

Mas sem a perspicuidade, a doutrina que permite ao cristão individual fazer sentido da Bíblia, esse mesmo cristão precisaria de recorrer a alguma autoridade interpretativa. Compreendi então que no seu cerne, o protestantismo é individualista. Estava por minha conta na compreensão do Cristianismo, livre para decidir o que significa e o que constitui o Cristianismo autêntico, mas já não sentia confiança para o fazer. Que mandato é que Cristo me tinha dado a mim, Casey Chalk, de Virginia, para exercer autoridade infalível sobre a interpretação da Bíblia?

Mas sabia que havia uma instituição que reivindicava, de forma pelo menos plausível, essa autoridade. Tratava-se da instituição religiosa em que eu tinha sido formado. Essa instituição, a Igreja Católica, afirmava ter uma autoridade interpretativa extra-bíblica, uma que eu poderia avaliar sem afirmar ser o juiz final do significado da Bíblia.

Nesse mesmo ano estudei essa posição. Em Setembro de 2020 tinha-me decidido a regressar à Igreja da minha infância. A claridade, compreendi eu, não era clara. Mas a Igreja Católica, possuindo aprovação divina – algo em que podemos confiar através daquilo que o Catecismo apelida de “motivos de credibilidade” – podia dizer-me o que a Bíblia significa verdadeiramente. Confiando nos seus motivos de credibilidade, nunca mais olhei para trás.


Casey Chalk escreve para a Crisis MagazineThe American Conservative e a New Oxford ReviewÉ licenciado em história e ensino pela Universidade de Virgínia em tem um mestrado em Teologia da Cristendom College.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing no Domingo, 7 de Maio de 2023)

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4 comments:

  1. Muito bom! Clara mesmo é a doutrina da infabilidade. Negá-la é negar algo muito arreigado na Bíblia e na cultura judaica. Não é preciso sequer ir ao tempo de Moisés, onde as citações são muitas e precisas. Basta pegar nos Evangelhos, para ver que o sumo-sacerdote profetizou acerca de Jesus precisamente por ser sumo-sacerdote, diz João... A Torá sempre recorreu a autoridades divinamente estabelecidas para acertar pontos doutrinais. A Igreja Católica, neste e em muitos outros pontos recusados pelos Protestantes, não faz mais do que cumprir - em sentido bíblico - o Judaísmo. Podemos afirmar, sem errar, que o Judaísmo bíblico se cumpre na Igreja Católica! E pronto, Filipe, não quero também aqui entrar em debate, no meu caso por falta de tempo :)

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  2. Bernardo Vidal Pimentel15 May 2023 at 00:29

    Muito bom. Entre várias coisas, esta realmente é uma que torna o protestantismo difícil de defender sem varrer o pó para debaixo da Cruz. Outra que acho bastante difícil de defender é a dupla predestinação.Tenho muita dificuldade em perceber como possa ser sustentada dentro duma perspectiva teísta cristã.

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  3. que artigo, tao bom que só teve dois comentarios. sola escrituras. sola Cristo, sola fé, ...

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    1. O número de comentários não significa absolutamente nada. Zero. Ainda não se deu conta?

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