Wednesday 17 May 2023

A que devemos comparar esta geração?

Robert Royal

Um dos aspectos mais impressionantes dos Evangelhos é a facilidade com que Jesus profere frases inesquecíveis, do género que grandes pensadores e poetas só muito raramente conseguem produzir. O escritor americano Randall Jarrell disse que: “Um bom poeta é alguém que, numa vida inteira de se colocar no meio de tempestades, consegue ser atingido cinco ou seis vezes por relâmpagos. Se for uma ou duas dezenas de vezes, então é verdadeiramente grande”. Jesus era – claramente – muito mais que um poeta. Mas não deixa de ser incrível que ele possa ter dito mais coisas memoráveis em poucos minutos de um dia normal do que qualquer outra figura na história. Coitados dos biblistas míopes – ou os muitos por eles influenciados – que crêem que uma boa parte daquilo foi inventada por um bando de pescadores, cobradores de impostos e pregadores itinerantes.

Os ditos, frequentemente simples, de Cristo, são tão grandiosos que mesmo uma multidão de teólogos, filósofos, santos, místicos, mártires, padres, bispos e até papas, ao longo de milénios, só conseguiram começar a compreender o que Ele disse. E, porém, ao mesmo tempo, as suas palavras têm atingido os corações de pessoas comuns, não só nos tempos dele, mas ao longo dos tempos, nas mais diversas culturas, apesar de obstáculos aparentemente inultrapassáveis. São Tomás de Aquino acreditava que um dos maiores milagres do Cristianismo era o facto de um grupo de homens humildes, de uma província longínqua, terem conseguido converter o maior império daqueles tempos, Roma. Trata-se de um mero facto histórico, e foi dito muito antes de a fé ter chegado à América, à maior parte de África, Ásia e ao mundo inteiro.

Esse facto é particularmente reconfortante agora que tudo parece estar ameaçado, pois sugere que por mais que as coisas pareçam ensombradas agora, tanto na Igreja como no mundo, o Evangelho tem mostrado ter um poder escondido e imprevisível. Sempre excedeu o que poderíamos “razoavelmente” esperar. E pode voltar a fazê-lo, a qualquer momento, ainda hoje.

Por outro lado, parece justo preocupar-nos com esta geração que parece não só estar submerso no lodo habitual de pecado e ignorância. A nossa incultura ocidental parece apostada em não só opor-se, como apagar mesmo a memória dos melhores dos nossos antepassados, que fizeram de nós quem somos.

Chega a pintar o passado como um conto irrepetível de opressão – escravatura, patriarcado, colonialismo, “privilégio branco”, etc. Mas todas essas acusações, embora parcialmente verdadeiras, estão a ser usadas não apenas para criticar elementos do passado, mas para obliterar o conhecimento da nossa tradição, que é uma combinação valiosíssima de elementos greco-romanos, bíblicos, medievais, renascentistas, iluministas e modernos. As nossas escolas e universidades dão a impressão de que não vale a pena ensiná-la, quanto mais recordá-la. Todas as culturas são agora “afirmadas” – excepto uma. Nunca aconteceu nada deste género.

Quando as coisas parecem estar mesmo mal, existe uma tentação humana de considerar que é uma situação sem precedentes. Mas esse parece ser mesmo o caso actual. Vale a pena, contudo, recordar um dos ditos de Jesus que parece referir-se ao passado, mas como em tudo o que ele diz, também se aplica a nós. “A que podemos comparar esta geração?” (Mt. 11, 16) No seu tempo, diz ele, as pessoas nem regozijam como deve ser perante as boas notícias, nem lamentam as más. As suas visões das coisas, e por isso as reações às mesmas, estavam distorcidas.

Também o nosso tempo revela reacções estranhas, de um tipo de que vale a pena tomar nota. Chesterton já tinha reparado em parte nisto há um século:

Chesterton
Quando se estilhaça um esquema religioso (como o Cristianismo foi estilhaçado com a Reforma) não são apenas os vícios que ficam à solta. Os vícios ficam, de facto, à solta, e deambulam, e prejudicam. Mas as virtudes também são libertadas; e as virtudes deambulam ainda mais, e as virtudes causam prejuízo ainda maior. O mundo moderno está cheio das antigas virtudes cristãs enlouquecidas. As virtudes enlouqueceram porque se isolaram umas das outras e estão a deambular sozinhas. Assim, alguns cientistas preocupam-se com a verdade; e a sua verdade não tem misericórdia. Assim, alguns humanitários preocupam-se apenas com a misericórdia, e a sua misericórdia (lamento dizê-lo) frequentemente não é verdadeira.

Isso explica muita da actual cultura “woke” e de “sinalização de virtudes”. Há muito que compreendemos que nas questões morais, como diz Santo Agostinho, o mal é a ausência de algum bem, qualquer coisa que devia estar presente mas não está, ou que está, mas num grau demasiado grande ou demasiado pequeno. Por outras palavras, é um afastamento da ordem plena do nosso universo. A Igreja é “Católica” precisamente porque é universal, “kata-holos”, em grego, “de acordo com o todo”.

Um excelente contraexemplo é a actual loucura do movimento “trans”. Trata-se de mais do que grupos e indivíduos radicais a promover a mutilação infantil sob o disfarce de “cuidados de afirmação de género”. Uma virtude – a compaixão por jovens com ideias confusas sobre género – cresceu e atingiu proporções tão monstruosas que eclipsou tudo, desde os simples factos da bilogia até milhares de anos de experiência humana. Basta pensar no que significa quando pessoal com formação médica fala em “género atribuído à nascença”, como se a observação normal de que um recém-nascido é rapaz ou rapariga fosse uma mera convenção, notada por um burocrata desconhecido e porventura tendencioso.

Seria fácil gozar com tudo isto, não fosse o facto de haver crianças a serem cirurgicamente desfiguradas ou a levar doses cavalares de químicos para evitar que os seus corpos se desenvolvam de acordo com as suas naturezas.

E é por isso que me parece que há outro factor em jogo, para além do enlouquecimento das virtudes, de que fala Chesterton. É cada vez mais evidente que há um elemento demoníaco em tudo isto.

O Demónio não tem nada de seu para nos propor, por assim dizer. Apenas pode recorrer aos bens criados pelo Criador para tentar criar desordem na criatura. Um dos grandes desafios para os cristãos na presente geração é conseguir identificar e resistir às virtudes desordenadas, e poder resistir às ofensas sobre preconceitos e ódio, reafirmando antes a plenitude da verdade – e do amor. Não é tarefa pequena, nem fácil. Mas foi a ela que a Divina Providência nos chamou.


Robert Royal é editor de The Catholic Thing e presidente do Faith and Reason Institute em Washington D.C. O seu mais recente livro é A Deeper Vision: The Catholic Intellectual Tradition in the Twentieth Century, da Ignatius Press. The God That Did Not Fail: How Religion Built and Sustains the West está também disponível pela Encounter Books.

(Publicado pela primeira vez na Segunda-feira, 15 de Maio de 2023 em The Catholic Thing)

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