Os ditos, frequentemente
simples, de Cristo, são tão grandiosos que mesmo uma multidão de teólogos,
filósofos, santos, místicos, mártires, padres, bispos e até papas, ao longo de
milénios, só conseguiram começar a compreender o que Ele disse. E, porém, ao
mesmo tempo, as suas palavras têm atingido os corações de pessoas comuns, não
só nos tempos dele, mas ao longo dos tempos, nas mais diversas culturas, apesar
de obstáculos aparentemente inultrapassáveis. São Tomás de Aquino acreditava
que um dos maiores milagres do Cristianismo era o facto de um grupo de homens
humildes, de uma província longínqua, terem conseguido converter o maior
império daqueles tempos, Roma. Trata-se de um mero facto histórico, e foi dito
muito antes de a fé ter chegado à América, à maior parte de África, Ásia e ao
mundo inteiro.
Esse facto é particularmente
reconfortante agora que tudo parece estar ameaçado, pois sugere que por mais
que as coisas pareçam ensombradas agora, tanto na Igreja como no mundo, o
Evangelho tem mostrado ter um poder escondido e imprevisível. Sempre excedeu o
que poderíamos “razoavelmente” esperar. E pode voltar a fazê-lo, a qualquer momento,
ainda hoje.
Por outro lado, parece justo
preocupar-nos com esta geração que parece não só estar submerso no lodo
habitual de pecado e ignorância. A nossa incultura ocidental parece apostada em
não só opor-se, como apagar mesmo a memória dos melhores dos nossos antepassados,
que fizeram de nós quem somos.
Chega a pintar o passado como
um conto irrepetível de opressão – escravatura, patriarcado, colonialismo,
“privilégio branco”, etc. Mas todas essas acusações, embora parcialmente
verdadeiras, estão a ser usadas não apenas para criticar elementos do passado,
mas para obliterar o conhecimento da nossa tradição, que é uma combinação
valiosíssima de elementos greco-romanos, bíblicos, medievais, renascentistas,
iluministas e modernos. As nossas escolas e universidades dão a impressão de
que não vale a pena ensiná-la, quanto mais recordá-la. Todas as culturas são
agora “afirmadas” – excepto uma. Nunca aconteceu nada deste género.
Quando as coisas parecem estar
mesmo mal, existe uma tentação humana de considerar que é uma situação sem
precedentes. Mas esse parece ser mesmo o caso actual. Vale a pena, contudo,
recordar um dos ditos de Jesus que parece referir-se ao passado, mas como em
tudo o que ele diz, também se aplica a nós. “A que podemos comparar esta
geração?” (Mt. 11, 16) No seu tempo, diz ele, as pessoas nem regozijam como
deve ser perante as boas notícias, nem lamentam as más. As suas visões das
coisas, e por isso as reações às mesmas, estavam distorcidas.
Também o nosso tempo revela
reacções estranhas, de um tipo de que vale a pena tomar nota. Chesterton já
tinha reparado em parte nisto há um século:
Quando se estilhaça um
esquema religioso (como o Cristianismo foi estilhaçado com a Reforma) não são
apenas os vícios que ficam à solta. Os vícios ficam, de facto, à solta, e
deambulam, e prejudicam. Mas as virtudes também são libertadas; e as virtudes
deambulam ainda mais, e as virtudes causam prejuízo ainda maior. O mundo
moderno está cheio das antigas virtudes cristãs enlouquecidas. As virtudes
enlouqueceram porque se isolaram umas das outras e estão a deambular sozinhas. Assim,
alguns cientistas preocupam-se com a verdade; e a sua verdade não tem
misericórdia. Assim, alguns humanitários preocupam-se apenas com a
misericórdia, e a sua misericórdia (lamento dizê-lo) frequentemente não é
verdadeira. Chesterton
Isso explica muita da actual
cultura “woke” e de “sinalização de virtudes”. Há muito que compreendemos que
nas questões morais, como diz Santo Agostinho, o mal é a ausência de algum bem,
qualquer coisa que devia estar presente mas não está, ou que está, mas num grau
demasiado grande ou demasiado pequeno. Por outras palavras, é um afastamento da
ordem plena do nosso universo. A Igreja é “Católica” precisamente porque é
universal, “kata-holos”, em grego, “de acordo com o todo”.
Um excelente contraexemplo é a
actual loucura do movimento “trans”. Trata-se de mais do que grupos e
indivíduos radicais a promover a mutilação infantil sob o disfarce de “cuidados
de afirmação de género”. Uma virtude – a compaixão por jovens com ideias
confusas sobre género – cresceu e atingiu proporções tão monstruosas que
eclipsou tudo, desde os simples factos da bilogia até milhares de anos de
experiência humana. Basta pensar no que significa quando pessoal com formação
médica fala em “género atribuído à nascença”, como se a observação normal de
que um recém-nascido é rapaz ou rapariga fosse uma mera convenção, notada por
um burocrata desconhecido e porventura tendencioso.
Seria fácil gozar com tudo
isto, não fosse o facto de haver crianças a serem cirurgicamente desfiguradas
ou a levar doses cavalares de químicos para evitar que os seus corpos se
desenvolvam de acordo com as suas naturezas.
E é por isso que me parece que
há outro factor em jogo, para além do enlouquecimento das virtudes, de que fala
Chesterton. É cada vez mais evidente que há um elemento demoníaco em tudo isto.
O Demónio não tem nada de seu
para nos propor, por assim dizer. Apenas pode recorrer aos bens criados pelo
Criador para tentar criar desordem na criatura. Um dos grandes desafios para os
cristãos na presente geração é conseguir identificar e resistir às virtudes
desordenadas, e poder resistir às ofensas sobre preconceitos e ódio,
reafirmando antes a plenitude da verdade – e do amor. Não é tarefa pequena, nem
fácil. Mas foi a ela que a Divina Providência nos chamou.
Robert Royal é editor de The Catholic Thing e
presidente do Faith and Reason Institute em Washington D.C. O seu mais recente
livro é A Deeper Vision: The Catholic
Intellectual Tradition in the Twentieth Century, da Ignatius Press. The God That Did Not Fail: How
Religion Built and Sustains the West está também disponível pela Encounter
Books.
(Publicado pela primeira vez
na Segunda-feira, 15 de Maio de 2023 em The
Catholic Thing)
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