Thursday 4 May 2023

Listas fechadas, números equivocados e transparência

Eu a tentar fazer sentido das listas
(mas sem fato e com menos cabelo)
A semana passada os membros da agora ex-Comissão Independente para o estudo dos abusos sexuais na Igreja Católica reuniram-se com representantes das ordens e institutos religiosos, a quem fizeram chegar também listas de nomes de alegados abusadores.

Apesar de ter sido muito menos mediático do que a entrega das listas aos bispos, este foi um momento importantíssimo, pois fecha, de certa forma, o capítulo da Comissão Independente em toda esta “novela” que, porém, continuará a ter mais episódios.

Talvez a maior surpresa tenha sido o facto de a lista entregue aos membros da Conferência dos Institutos Religiosos de Portugal (CIRP) conter tão poucos nomes. Eu estava à espera que pudessem até ser mais do que os que foram entregues às dioceses, tendo em conta que muitas das ordens desempenham um papel importantíssimo na educação e, por outro lado, tendem a ser realidades mais opacas do que as dioceses. Contudo, foram apenas 17 os nomes, sendo que mais de metade são pessoas que já morreram.

Página 187 do relatório
Mas o caso torna-se mais estranho quando comparamos este número com os próprios dados apresentados pela Comissão Independente no seu relatório. Ora, juntando os dados para as ordens masculinas e femininas, temos um total de 69 casos, entre religiosos e leigos, sendo 59 das ordens masculinas e 10 das ordens femininas. Como é que estes 69 se transformam em 17? Nem se pode usar o argumento de terem excluído os mortos, porque já vimos que não o fizeram.

Nalguns casos a discrepância é gritante. Segundo o relatório, só nos salesianos houve 18 religiosos nomeados por testemunhas. Mas a lista que foi entregue aos salesianos continha apenas dois nomes, sendo que um já tinha morrido e o outro é desconhecido.

A meu ver, pode haver algumas explicações para isto. Uma é que a CI optou por considerar apenas os casos de alegados abusadores que estavam vivos ou cujas vítimas ainda possam estar vivas, mas quase todos os casos do relatório derivam de testemunhos validados pela própria comissão, pelo que isso não parece explicar a diferença.

Outra explicação é de que, tendo tido mais tempo, os membros da CI tenham tido também outras possibilidades de trabalhar a lista e excluir casos que levantassem mais dúvidas. A ser isto, confirma algo que eu tenho dito há muito: que todos teríamos ganho se a Comissão tivesse mais tempo para trabalhar, nomeadamente para tratar os dados de que dispunha com mais rigor, permitindo ainda à Comissão Histórica trabalhar de forma mais folgada.

Números finais

Com a entrega dos 17 nomes aos institutos, temos agora números finais em relação à famosa lista de abusadores “no activo” mas que afinal não estão todos no activo… Assim, as duas listas somadas dão um total de 114 nomes. Deveria dar 115, porque o total de nomes da lista das dioceses era 98, mas mais abaixo explico porque é que afinal são apenas 97.

Destes 114 nomes, 45 são pessoas que já morreram e 9 são desconhecidos. Isto corresponde a cerca de 47% do total.

Há ainda 16 padres/religiosos que estão indicados como estando sem nomeação, ou sem cargo e outros 14 que já tinham visto os seus processos – civis e/ou canónicos – concluídos quando a lista saiu, e que ou já tinham sofrido sanções ou tinham sido ilibados, ou visto os processos arquivados. Sobre este ponto é importante sublinhar que há alguma discrepância na forma como as dioceses comunicaram a informação. Sei de pelo menos um caso de um padre que foi indicado como estando sem nomeação, o que não deixa de ser verdade, mas está simplesmente à espera de ser nomeado novamente depois de ter visto o seu processo arquivado, uma vez que tanto Roma como o Ministério Público consideraram que não havia factos que constituíssem crime. Em bom rigor, embora não seja mentira que ele esteja sem nomeação, faria mais sentido, a meu ver, que ele estivesse na lista dos que já viram os seus processos concluídos. Contudo, segui a informação oficial da lista, até porque eu tive conhecimento dos outros detalhes por via não oficial.

Há ainda a reter a existência de quatro leigos vivos, uma vez que um quinto já terá morrido e está por isso contabilizado com os mortos.

Naturalmente, o dado mais importante é o número de padres/religiosos no activo que estavam nas listas, que no total pode chegar a 27. Estes incluem 15 que já sabemos que estão preventivamente afastados do ministério enquanto decorrem os seus processos. Na maioria foram afastados no seguimento de aparecerem os nomes nas listas, mas pelo menos um já estava afastado antes disso.

Depois, há 11 que estão no activo, sobre os quais foi pedida mais informação pelas dioceses ou ordens religiosas. Vale a pena escrutinar um pouco este número. Quatro desses 11 são do Porto e sabemos que o bispo encaminhou os seus processos para Roma, mas optou por não os afastar preventivamente, ao contrário do que tinha feito com outros três. Contudo, a informação de que disponho é de que não houve grande base para essa decisão, isto é, o facto de uns terem sido afastados e outros não, não traduz uma gravidade maior de uns casos em relação a outros, ou maior credibilidade de uns ou de outros.

Há ainda o estranho caso de Coimbra. A diocese recebeu o nome de um padre no activo mas, quando obteve mais informação da Comissão Independente verificou que afinal não se tratava de um caso de abusos. Pelo que percebi, foi aberto um processo preliminar na mesma, mas o mais natural é o caso vir a ser arquivado.

Depois temos dois padres de Setúbal, sobre os quais não temos mais informação até agora. Ainda hoje confirmei que a própria diocese ainda espera por mais informação da CI, que tarda em chegar, mas que sem essa informação, e por não ter nenhum dado em arquivo, manteve os padres em actividade.  

Há ainda uma religiosa das Reparadoras de Nossa Senhora de Fátima. Tentei obter mais informação sobre esse caso, mas não obtive qualquer resposta da ordem até agora.

Finalmente, temos os casos de Lamego. Esta diocese começou por comunicar que tinha dois nomes na lista, sobre os quais tinha sido pedida mais informação. Depois de várias tentativas de obter mais detalhes, ao longo da última semana, consegui saber que os processos desses padres foram encaminhados para Roma, mas ninguém me soube dizer se os sacerdotes estão preventivamente afastados do ministério, ou não. Contudo, entretanto, soube que um dos padres que tinha sido indicado na lista de Bragança, mas que a diocese comunicou ser de outra diocese, afinal era de Lamego. A minha fonte não me soube dizer mais detalhes sobre o padre, por isso não posso garantir que ele esteja no activo, mas havendo essa possibilidade ele será o 11º.

Onze mais 15 dá 26. Quem pode ser o outro? Se bem se recordam, nos comunicados das dioceses, depois de receberem as listas, vinha a indicação de mais dois padres que tinham ido parar à lista errada. Setúbal disse que tinha um padre na sua lista que estava sob outra jurisdição e Vila Real disse que tinha um padre que estando a trabalhar nessa diocese, era na verdade de outra, mas tinha sido preventivamente afastado do ministério em Vila Real enquanto a sua diocese de origem era informada. Ora, qual não foi a minha surpresa quando soube que afinal trata-se da mesma pessoa. Isto significa que esse nome está repetido na lista, e por isso o número das listas das dioceses é 97 e não 98, como previamente se pensava, logo o número das dioceses e das ordens religiosas, em conjunto, dá 114. Mas significa também que as duas dioceses claramente não se entendem sobre quem é de facto responsável pelo sacerdote. Isto terá naturalmente dimensões de direito canónico que me escapam, mas para uma questão de organização da minha informação, e uma vez que a pessoa em causa está fisicamente em Vila Real, estou a contá-la como sendo dessa diocese.

Transparência

Por fim, uma das coisas que tenho dito desde o início desta polémica é que a Igreja tem mesmo de apostar na transparência para melhorar a forma como lida com esta questão e iniciar um novo paradigma de boas práticas. Ora, basta ler o ponto acima para perceber que para muitas dioceses a transparência apenas existiu enquanto os olhos mediáticos estavam postos na questão dos abusos, nomeadamente por causa das listas. Depois disso, voltaram a não revelar qualquer informação, ou quando o fizeram foi de forma pouco clara. O mesmo aconteceu agora com algumas das ordens ou institutos religiosos, embora outros se tenham apressado a divulgar a informação de que dispunham.

É importante os responsáveis pelas dioceses e pelas ordens perceberem que embora possa custar, todos temos a ganhar com a maior transparência possível – dentro do bom-senso – nesta matéria.

Da minha parte continuarei a acompanhar estes casos na medida do possível, para vos trazer os dados mais completos e mais rigorosos, mesmo quando o resto da imprensa só quiser saber de Galambas e afins.

Recordo que podem ver aqui todos os detalhes sobre as listas que foram entregues à CEP e à CIRP, com uma análise mais estatística dos dados conhecidos e que aqui podem encontrar uma lista com todos os casos até agora conhecidos, pré e pós relatório, dividios por estatuto e por diocese ou ordem religiosa. Por fim, aqui têm a cronologia que mantenho sobre este assunto desde 2012. 

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