Um dos aspectos mais curiosos
e inesperados da guerra na Ucrânia é o facto de o Papa Francisco estar a ser visto
por muitos como sendo de alguma forma pró-russo, ou pelo menos russófilo.
Porque é que isto tem acontecido,
e será justa a sugestão?
Recentemente os bispos da
Igreja Greco-Católica Ucraniana estiveram em Roma para o seu sínodo, e
encontraram-se com o Papa, tendo o seu líder, o arcebispo-maior Sviatoslav
Shevchuk, aproveitado a ocasião para dizer francamente a Francisco que o seu
povo está magoado com ele.
O último incidente foi a mensagem por vídeo que o Papa fez aos jovens católicos da Rússia, em que apelou que
estes sejam fiéis à herança intelectual e espiritual dos seus antepassados,
referindo como exemplos figuras históricas da Rússia como Pedro o Grande e
Catarina II. Os ucranianos sentiram-se ofendidos com essas palavras, recordando
que esses imperadores cometeram crimes contra vários povos, incluindo os ucranianos.
(As palavras polémicas foram ditas de improviso, no final do discurso, e não
aparecem no discurso oficial publicado no site do Vaticano.)
Mas este foi apenas mais um
caso. Antes tinha havido dois episódios nas vias sacras de Roma, na Sexta-feira
Santa, em que o Vaticano pediu a russos e ucranianos para carregarem a cruz
juntos. No primeiro caso eram duas mães, uma de cada nação, e no segundo eram
duas crianças que tinham perdido os pais na guerra, um de cada lado. Em ambas
as situações os ucranianos ficaram lívidos, acusando o Vaticano de estar a
equiparar o sofrimento e a condição das vítimas e dos agressores.
Tivemos ainda a ocasião em que
o Papa pareceu dar a entender que a Rússia tinha sido provocada pela aproximação
da NATO às suas fronteiras.
Sejamos claros, há aqui sérias
falhas de comunicação por parte do Vaticano, e mais especificamente do Papa.
Referir Pedro e Catarina era desnecessário e o próprio Francisco lamentou-o no
final da sua viagem à Mongólia; e depois de no primeiro ano a ideia da Via Sacra
ter caído tão mal na Ucrânia – foi a primeira vez em mais de uma década que a televisão
católica ucraniana não a transmitiu em directo – é incompreensível que o tenham
feito outra vez no ano seguinte. Pior, sei que queriam repetir o gesto na JMJ,
mas a organização portuguesa conseguiu evitá-lo.
Mas estamos também perante um
problema de interpretação. Há muito de subjectivo na forma como interpretamos
palavras, ou até falhas de comunicação. É sempre possível fazê-lo pela pior
lente possível, e parece ser isso o que se está a passar aqui.
O Papa Francisco não é
militar, nem é apenas o Papa dos ucranianos, apesar de haver mais católicos na
Ucrânia do que na Rússia. Ele é o Papa, ponto final, e a sua obrigação é pugnar
pela justiça, sim, e pela paz, certamente, mas não pode, em prol disso,
sacrificar as relações com toda uma nação, sobretudo uma nação como a Rússia
que, por mais que esteja corrompida a sua chefia, tem uma das Igrejas ortodoxas
mais importantes do mundo.
Isso significa que sempre que
Francisco age neste campo ele está a levar a cabo uma operação de equilibrismo
complexa, em várias frentes. É importante que a guerra acabe, mas a guerra deve
acabar sem uma paz justa que devolva à Ucrânia todo o seu território e, já
agora, as centenas de milhares de crianças que os russos raptaram? E defender
explicitamente essa vitória total não é, de certa forma, defener o prolongar da
guerra e, por conseguinte, mais mortes? É importante denunciar o agressor nesta
guerra, mas como fazê-lo sem virar a Rússia ainda mais contra o ocidente e
contra a Igreja Católica do que já está?
O risco do equilibrismo é que
inevitavelmente pode-se cair. E Francisco, ou a diplomacia da Santa Sé, já teve
umas quedas, mas só cai quem lá está e a Igreja está lá porque quer mesmo,
sinceramente, ver alcançada a paz na Ucrânia.
Para muitos ucranianos,
contudo, e incluindo os líderes religiosos, tudo o que não seja a defesa
incontestada de uma vitória ucraniana a todos os níveis é visto como uma facada
nas costas. E isso explica as reacções negativas por parte de muitos
ucranianos. Não me entendam mal… Acho que isto é completamente compreensível, e
simpatizo. Mas o papel do Papa não é ser cheerleader para a Ucrânia nesta
guerra, até porque se o fizer perde qualquer margem de manobra junto da Rússia,
e já vimos que o Papa tem conseguido alguns sucessos nesse campo, nomeadamente
a nível de trocas de prisioneiros.
Mas parece-me evidente que chegámos
ao ponto em que muito ucranianos já perderam a tolerância e por isso
interpretam sempre da pior forma possível tudo o que Francisco diz sobre este
assunto. Vejamos a tal mensagem que ele proferiu aos jovens católicos russos,
recordando que está a falar com pessoas que estão na Rússia, a viver debaixo do
regime de Putin. “Desejo-vos, jovens russos, a vocação de serdes artífices da
paz no meio de tantos conflitos, no meio de tantas polarizações de todos os
lados, que assolam o nosso mundo. Convido-vos a ser semeadores, a lançar
sementes de reconciliação, pequenas sementes que, neste inverno de guerra, não
brotarão, entretanto, no solo gelado, mas florescerão numa futura primavera.”
Isto são palavras de coragem,
é um desafio que embora não referindo especificamente a guerra da Ucrânia, foi
claramente compreendida como tal pelos ouvintes. Mas no meio disto, tudo o que
ficou para os críticos foi o elogio à herança russa e uma referência, mal
pensada é certo, aos imperadores Catarina e Pedro.
Para mim todos estes ataques
ao Papa parecem particularmente injustos uma vez que eu tive o trabalho meticuloso e muito desgastante de acompanhar todas as intervenções feitas
sobre a guerra na Ucrânia por líderes religiosos significativos. Só o fiz
durante o primeiro ano da guerra, mas foi tempo suficiente para perceber que
Francisco foi, mas de longe, o líder religioso não-ucraniano que mais falou da
Ucrânia. Só o líder da Igreja Greco-Católica da Ucrânia o superou, e isso é
porque ele publicava uma mensagem diária para os seus conterrâneos. Francisco falou
um total de 126 vezes sobre a Ucrânia em 365 dias.
Mas não foi só falar. O Papa condenou
a guerra, tendo sido dos primeiros líderes mundiais a dizer explicitamente que
se tratava de uma guerra e não de uma “operação militar”; nunca hesitou em
dizer que a Rússia é que era a responsável pela mesma e que a Ucrânia e os
ucranianos eram e são as vítimas; rompeu com o protocolo e foi pessoalmente à
embaixada da Rússia no Vaticano para pedir justificações aquando da invasão;
enviou representantes para os locais de massacres e matanças; recebeu e beijou
bandeiras ucranianas, vindas desses mesmos locais de massacres; apelidou os
ucranianos de “corajosos”, “atormentados”, “sofredores” e “mártires”; chamou ao
Patriarca de Moscovo acólito de Putin… A lista é enorme.
Quem acompanha o que o Papa
escreve e diz, e não apenas as polémicas que de vez em quando surgem quando diz
a coisa errada, não pode se não concluir que Francisco está firmemente do lado
do povo ucraniano e que deseja o melhor para ele. Que os ucranianos, que tanto
sofrem, sintam que isso não basta, porque queriam era ver o Papa a lançar anátemas
sobre toda a Rússia e a apelar a uma vitória militar, é compreensível, mas que pessoas
de fora, e boa parte da imprensa, alinhem nessa imagem distorcida é
perfeitamente injusto.