Thursday 21 September 2023

Adeus Artsakh

Em 2016 viajei com um grupo de jornalistas para o enclave de Nagorno Karabakh. Fomos primeiro para Yerevan, na Arménia, e de lá era suposto seremos levados de helicóptero para Stepanakert. Por causa do mau tempo, porém, tivemos de partir de autocarro por volta da 1h00, para fazer quase cinco horas de estrada, sempre com curvas e a subir montanhas.

Chegámos de madrugada à autoproclamada República de Artsakh, um território historicamente povoado por arménios, dentro do Azerbaijão. Quando a União Soviética se desintegrou, os Arménios de Karabakh, que era administrada pelo Azerbaijão, declararam independência, o que conduziu a uma guerra. Foram cometidas atrocidades de parte a parte, morreram famílias inteiras, mas os arménios venceram e consolidaram o seu controlo sobre a região. Declararam uma independência que nunca foi reconhecida por ninguém, nem sequer pela Arménia, e assim viveram durante 30 anos, rodeados de inimigos, ligados ao mundo exterior apenas pelo corredor de Lachin, que lhes permitia ter acesso à Arménia.

Em Karabakh assistimos às comemorações dos 25 anos da "independência", junto ao cemitério militar. Uma das coisas mais impressionantes da viagem foi mesmo ver as inúmeras campas de soldados mortos ao longo dos anos a defender aquela terra. Num caso em particular estavam três irmãos que morreram na mesma batalha, outros tinham imagens gravadas no mármore dos mortos fardados e de arma na mão; visitámos ainda a linha da frente, onde recebi de um oficial um Novo Testamento arménio, camuflado, e fomos ao famoso monumento "Nós somos as nossas montanhas" que é o símbolo de Artsakh. Os arménios de Karabakh queriam mostrar-nos que estavam a defender mais que um país, estavam a lutar por uma herança, pela terra onde tinham vivido e morrido os seus antepassados, ao longo de séculos, e que contra todas as expectativas estavam a conseguir fazê-lo.

Tudo isso acabou ontem.

Depois de anos a rearmar-se e a incentivar um ódio étnico e cultural aos arménios, e com o apoio imprescindível da Turquia, o Azerbaijão voltou a atacar Karabakh, como tem feito sempre por esta altura do ano, ao longo dos últimos dois anos. Desta vez, com o corredor de Lachin bloqueado por alegados activistas ambientais, sabendo que a Arménia não se iria comprometer com uma guerra total contra os azeris, e sem o apoio da Rússia, as autoridades de Nagorno Karabakh anunciaram a sua rendição. Artsakh morreu.

Estão neste momento a ser negociadas as condições da rendição, mas o que se avizinha é previsível. A perseguição dos arménios que não fugirem – do aeroporto de Stepanakert já chegam as imagens de caos que acompanha sempre estes momentos – e o apagamento sistemático da milenar herança cultural e religiosa arménia da região.

Quando a Rússia invadiu a Ucrânia, perguntei neste texto o que aconteceria se Moscovo perdesse a guerra, acrescentando que perder a guerra, neste contexto, era tudo o que ficasse aquém da ocupação de Kiev em três dias. Uma das minhas previsões era exactamente a tragédia que agora se está a desenrolar à nossa frente.

Mas esta é também, de certa forma, uma derrota diplomática para o Vaticano. Em 2016 Francisco visitou tanto a Arménia como o Azerbaijão. O objectivo era tentar promover a pacificação. Mais recentemente o cardeal Parolin também esteve em missão entre os dois estados para tentar impedir o recrudescimento do conflito. Ao menos tentaram, mas sem sucesso.

Karabakh não é apenas mais um território. É para os arménios o que Guimarães é para Portugal, o que o Kosovo é para os Sérvios (outros cuja dependência do amigo Putin de pouco lhes tem valido). Independentemente do direito internacional, que de facto reconhece a região como parte do Azerbaijão, o que se está a passar ali é uma dor de alma. É o coração de um povo que está a ser arrancado e esmagado diante dos seus olhos.

É também o recordar de tragédias colectivas do passado. Os azeris são turcomanos, e existe uma expressão na Turquia e no Azerbaijão: Um povo, dois estados. Por isso mesmo, e pela importância da mão de Erdogan nisto tudo, os arménios sentem que este é apenas mais um capítulo do terrível genocídio de 1915.

Como me disse um arménio quando estive lá em 2016: “Em 1915 mataram os arménios ocidentais, agora querem acabar o trabalho”.

"They protect the land" - Música dedicada a Nagorno Karabakh pela banda System of a Down, constituída por arménios americanos

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