Wednesday, 27 September 2023

Eis o Homem

Costuma-se dizer, embora não tanto como se deve, que um dos males dos nossos dias é a perda do sentido de pecado. O Papa Pio XII disse isto mesmo num famoso discurso radiofónico aos catequistas, em 1946, e o Papa Francisco já repetiu a mesma ideia mais que uma vez, comparando a hipocrisia de alguns cristãos à do Rei David, incapaz de ver o seu próprio pecado até que o profeta Natã o colocou diante dos olhos: “Esse homem és tu!”

De tempos a tempos todos nós precisamos de ser abanados e acordados da nossa própria cegueira e complacência. Nas palavras do Papa Francisco: “Que o Senhor nos dê a graça de enviar sempre um profeta – pode ser um vizinho, um filho ou filha, uma mãe ou um pai – para nos dar umas palmadinhas quando cairmos para um mundo em que tudo parece ser legítimo.”

É isto mesmo.

Talvez possamos ir mais longe e aplicar isto não só ao reconhecimento da nossa cegueira para com as nossas próprias falhas, mas também à sabedoria para rezar por correcção. Ser cego por causa dos nossos pecados, incapaz de os ver, como David, é uma coisa. Mas perder a noção de que as nossas acções podem ser julgadas por alguém, de acordo com um qualquer padrão que nos ultrapassa, é outra.

A correcção fraterna pressupõe a existência de fraternidade. Este tipo de correcção requer um sentido de responsabilidade e confiança mútua entre as partes (como se esperaria encontrar entre irmãos). Mas a um nível mais básico (quase pedante), a correcção fraternal pressupõe um sentido partilhado da própria natureza e fonte da fraternidade: os irmãos são-no porque partilham um mesmo pai.

Por isso, um cristão poderá ser convencido da necessidade de se arrepender quando lhe forem reveladas as formas como se desviou da lei de Deus ou da lei da Igreja. Mas isso depende do reconhecimento prévio por parte do pecador da existência dessas mesmas leis, e um desejo, por mais imperfeito que seja, de viver de acordo com elas.

E a pessoa que não reconhece tais leis, ou a autoridade que as sustenta? E a pessoa que acredita que o mal é na verdade o bem? E a pessoa que não conhece o Pai e nega os ensinamentos da nossa Mãe, a Igreja? Tal pessoa não está para além da esperança da misericórdia e do arrependimento, como é evidente, mas o apelo à lei (a lei de Deus, a lei da natureza, a lei da Igreja ou até a lei do homem), cuja autoridade ele não reconhece, dificilmente a levará ao arrependimento.

Em tais casos a perda do sentido do pecado não é apenas a incapacidade de ver o meu próprio pecado, mas a perda da possibilidade de reconhecer que o pecado é pecado sequer. Se perdemos Deus de vista, se perdemos de vista o bem do qual o pecado é um afastamento ou uma negação, então a própria categoria de pecado (para não falar de fraternidade) deixa de ter qualquer sentido.

É interessante notar como chegámos à beira daquilo que Nietzsche entendeu quando observou que “se nada é verdade, tudo é permitido”, razão pela qual descrevia o seu projecto filosófico – aliás, a si mesmo – como “Dionísio versus o Crucificado”.

E isto parece-me ser muito mais próximo daquilo que o Papa Pio XII tinha em mente quando falou da perda do sentido de pecado nos meses imediatamente a seguir aos horrores da Segunda Guerra Mundial. O remédio que o Papa Pio propôs não era, pelo menos numa primeira instância, recordar o mundo da lei moral de que se tinha esquecido, ou que tinha negado. Antes, o remédio encontrar-se-ia no Cristo Crucificado. Nele, a realidade do pecado é colocada em bruto contraste com aquele amor que todo o pecado ofende.

Vale a pena voltar a olhar para o discurso de Pio XII de 1946, onde regista o seu lamento pela perda do sentido de pecado exactamente neste contexto:

Conhecer Jesus crucificado é conhecer o horror de Deus ao pecado; a sua culpa apenas pôde ser purificada no precioso sangue do Filho unigénito de Deus, feito homem.


Talvez o maior pecado no mundo hoje seja o facto de os homens terem começado a perder o sentido do pecado. Se isso for abafado, entorpecido – porque não pode ser totalmente extirpado do coração do homem – se for impedido de ser despertado por qualquer vislumbre do Deus-homem a morrer na cruz do Calvário para pagar a pena do pecado, que restará para impedir as hordas dos inimigos de Deus de dominarem o egoísmo, orgulho, sensualidade e ambições desmedidas do homem pecaminoso? Bastará a mera legislação humana? Os acordos ou os tratados?

Não vivemos num mundo em que os corações e as consciências do homem podem ser facilmente tocados pelos apelos à autoridade, nem mesmo à autoridade de Deus. Mesmo dentro da Igreja, entre os baptizados, nem sempre é eficiente apelar à autoridade da doutrina ou à Divina Revelação. Poderíamos desejar que não fosse assim, mas é.

O que nos resta, portanto, é proclamar a Boa Nova de uma forma que o mundo ainda consiga entender. Se os apelos à autoridade não tiverem adesão, então resta um caminho que é tão convincente hoje como sempre foi. Ouçamos novamente Pio XII.

No Sermão da Montanha, o divino Redentor iluminou o caminho que conduz à vontade do Pai e à vida eterna; mas do cadafalso do Calvário flui a torrente sempre plena e constante de graças, de força e de coragem, a única que permite ao homem trilhar esse caminho com um andar firme e certo. 

Esse percurso é nos revelado por aquele que o trilhou antes de nós – embora ele não tenha precisado de um Natã para o corrigir – aquele sobre quem Pilatos falava quando clamou: “Eis o Homem”. Nada condena mais o pecador que o amor incomensurável de Deus. Nada penetra até ao cerne da consciência do homem mais do que a própria misericórdia de Deus. E a força e a coragem para percorrer esse caminho jorram até nós desde cima.


Stephen P. White é investigador em Estudos Católicos no Centro de Ética e de Política Pública em Washington.

(Publicado em The Catholic Thing na Quinta-feira, 21 de Setembro de 2023)

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Tragédia em casamento cristão no Iraque

Mais de 100 pessoas morreram num incêndio que deflagrou durante uma festa de casamento no norte do Iraque, na terça-feira, e outras 150 ficaram feridas.

A tragédia aconteceu na cidade de Qaraqosh, também conhecida como Baghdeda, ou Bakhtida, que tem a particularidade de ser a única cidade 100% cristã do Iraque. Embora existam cristãos de diferentes ritos e igrejas na cidade, este parece ter sido um evento da comunidade Siríaca Católica (e não a ortodoxa, como erradamente afirmei de início).

Um acidente destes é sempre uma enorme tragédia, não há vidas mais valiosas que outras, mas este incidente tem a dimensão acrescida de representar mais um grave golpe contra a comunidade cristã do Iraque.

Qaraqosh sempre foi um símbolo para a comunidade cristã deste país. O facto de serem maioria permitiu aos cristãos daqui manterem as suas tradições e costumes durante os anos de caos que se seguiram à invasão americana de 2003. Podiam praticar a sua religião sem qualquer medo ou restrição.

O primeiro grande teste para Qaraqosh veio com a ascensão do Estado Islâmico. A cidade foi ocupada pelos jihadistas quando varreram a região em torno de Mossul, mas todos os cristãos conseguiram fugir. Contudo, a instabilidade geral e o medo de que a situação se possa repetir no futuro levaram muitos cristãos a preferir emigrar, ou a permanecer no Curdistão Iraquiano, que é mais seguro e estável.

Os cristãos que regressaram a Qaraqosh são aqueles que resistiram, são aqueles que não quiseram, ou não puderam, sair do país. São, numa palavra, a esperança para o futuro do Cristianismo no Iraque.

Que 100, ou mais, dos membros dessa comunidade tenham morrido num acidente desta natureza é mais do que um desperdício de vidas, é um ataque a essa mesma esperança, mais uma razão na já longa lista de razões para simplesmente desistirem e saírem para a Europa, América do Norte ou Austrália, onde de geração em geração os seus costumes, práticas, língua e espiritualidade se vão dissipando.

Rezemos pelos cristãos do Iraque que, mais uma vez, enfrentam o desespero e a morte. Que Deus lhes dê coragem para resistir, que a luz do Evangelho se mantenha naquele país. E que Deus dê eterno descanso às vítimas deste incêndio, e a graça da recuperação aos feridos.

Friday, 22 September 2023

D. Américo em Setúbal e Adeus Nagorno Karabakh

Acaba de ser anunciada oficialmente a nomeação de D. Américo Aguiar para bispo de Setúbal. Aqui encontram a minha análise a esta nomeação, e aqui podem ver o novo brasão do futuro cardeal.

As autoridades de Nagorno Karabakh apresentaram ontem a sua rendição às forças do Azerbaijão que sitiavam o território há meses e que nos últimos dias lançaram ataques em larga escala. Salvam-se assim muitas vidas, que sem dúvida se perderiam se a guerra continuasse, mas a perda em termos de património histórico e cultural é incalculável. Este é um tema que me é caro porque eu já estive em Nagorno Karabakh. Andei pelas trincheiras que agora foram ocupadas, visitei monumentos que agora muito provavelmente serão destruídos, conheci pessoas que estão agora a ver se conseguem fugir. Neste texto tentei retratar um pouco do que se está a passar, explicando, por exemplo, porque é que isto é uma derrota também para a Rússia e até, de certa forma, para o Vaticano.

De Moçambique chega a notícia de mais um massacre de cristãos na província de Cabo Delgado.

E por tudo isto, pela Ucrânia, por Nagorno Karabakh, por Moçambique e tantos outros sítios onde as armas não se calam e o ódio move as pessoas, devemos unir-nos mais uma vez à iniciativa da fundação Ajuda à Igreja que Sofre de pôr um milhão de crianças a rezar o terço, no dia 18 de Outubro. Todos os anos chega-se um pouco mais perto desse número. Desafie os seus filhos, netos e amigos. Toda a informação aqui.

Não percam ainda o artigo desta semana do The Catholic Thing, no qual Francis X. Maier nos desafia a desligar-nos um pouco mais das redes, libertando-nos da dependência da tecnologia que nos rodeia. Tomem o comprimido encarnado.

Thursday, 21 September 2023

D. Américo nomeado bispo de Setúbal

Foi hoje anunciada oficialmente a nomeação de D. Américo Aguiar para bispo de Setúbal. Chegam assim ao fim duas sagas: a de saber para onde iria, afinal de contas, o futuro cardeal, e a da diocese de Setúbal, que está sem pastor há mais de 600 dias.

Podemos pensar num bispo como uma mera figura de proa para um sistema bastante bem montado, e que até pode funcionar sozinho – afinal de contas, Setúbal está há quase dois anos com um administrador apostólico em vez de um bispo e as coisas vão andando – mas isso seria um terrível erro. Ou pelo menos devia ser.

Um bispo faz muita falta a uma diocese, como ponto de referência para os seus fiéis e, sobretudo, como ponto de referência e de concórdia para os seus padres. Faz falta quem determine um rumo; faz falta quem congregue as ovelhas, que de outro modo tendem a dispersar.

Sem ir mais longe, reparemos que Setúbal esteve sem bispo durante todo este tempo em que a Igreja teve de enfrentar a crise dos abusos sexuais, quando mais era preciso haver vozes firmes para conduzir uma Igreja local ferida, magoada, revoltada e com medo. Quando mais era preciso colocar alguma ordem, precisamente nesse assunto, cujo tratamento em Setúbal tem deixado muito a desejar.

Também por todas as razões elencadas acima, não basta uma diocese ter um bispo, tem de ser um bom bispo. Um bispo que não seja apenas um burocrata. Setúbal, depois de tudo o que passou, merece um bispo activo, capaz e comprometido com o seu rebanho.

D. Américo tem potencial para fazer um bom trabalho em Setúbal e para ser essa figura, e assim espero que seja.

É verdade que ele não é a pessoa mais consensual do mundo, mas há boas razões para pensar que as dificuldades que sentiu em Lisboa não se repetirão na sua nova diocese.

D. Américo entrou em Lisboa como o braço direito de D. Manuel Clemente, que trabalhou com ele quando foi bispo do Porto. Ao contrário de D. Manuel, que regressava a uma casa onde era já conhecido e estimado, o então Padre Américo vinha de fora com aura de protegido e com atitude de cão de guarda do pastor (o termo é dele, e não meu). Isso não caiu bem entre muito do clero lisboeta.

Desde cedo começou a coleccionar cargos. Desde presidente do Conselho de Administração da Renascença – uma máquina influente e enorme, mas fragilizada e a precisar de reformas corajosas e urgentes – a homem de ponta para lidar com a crise dos abusos e, mais tarde, arquitecto daquele que foi simplesmente o maior evento que Portugal alguma vez recebeu, e alguma vez receberá.

Entretanto foi nomeado bispo auxiliar de Lisboa. Bispo auxiliar é um cargo complicado, não é carne, nem é peixe. É bispo, certo, mas não é a cabeça da diocese, nem é visto como tal pelo clero. Sei que muitos padres ficaram desagradados com a forma como ele exerceu esse cargo, nomeadamente na relação com o clero, agindo como seu superior – que era, hierarquicamente – o que foi interpretado por alguns como uma usurpação da autoridade do Patriarca.

Agora D. Américo não terá esse problema. É ele o pastor de Setúbal e espera-se mesmo que se comporte como tal. Sobretudo porque Setúbal precisa urgentemente de alguém que ponha ordem na diocese e consiga resolver problemas complicados, incluindo financeiros, que ela enfrenta. D. Américo pode ter muitos defeitos, mas é um homem de acção e que gosta de ter a “mão na massa”, o que aqui será um enorme benefício.

O novo bispo de Setúbal chega “em alta”, tendo sido a face do enorme sucesso que foi a Jornada Mundial da Juventude e entrará oficialmente na diocese já como cardeal, o que não deixa de constituir uma enorme honra para uma diocese que tem menos de 50 anos. 

Todos os caminhos iam dar a Roma…

O que nos leva à segunda questão. Então e Roma?

Durante meses era dado como certo que D. Américo estaria a caminho de um cargo na cúria romana, a pedido específico do Papa Francisco. O que é que terá acontecido? Não sei, mas não se pode excluir que o próprio D. Américo tenha preferido ficar em Portugal, numa diocese onde pode desenvolver uma acção mais directa e no terreno, do que num gabinete no Vaticano. Se assim for é bom sinal, pois revela ausência de carreirismo.

Pode ter contribuído para isso o facto de o futuro cardeal não dominar línguas estrangeiras, nomeadamente o italiano, que é essencial para conseguir trabalhar em Roma.

O que espero, sinceramente, é que D. Américo não esteja a prazo em Setúbal. Não digo que tenha de lá ficar a cumprir o mandato até aos 75 anos, mas pelo menos tempo suficiente para traçar um plano de acção e o concretizar, tempo para lançar raízes e deixar trabalho feito. A passagem relâmpago de D. José Ornelas não deixou especiais saudades aos setubalenses e a última coisa de que precisam é de um bispo que dê ares de estar simplesmente a pousar antes de partir para voos mais altos.

D. Américo é novo, só faz 50 anos em Dezembro. Tem mais que tempo, ainda, para fazer um bom trabalho na sua nova diocese. E o facto de ser cardeal significa que certamente terá também cargos em Roma que o obriguem a viajar e a pôr a render os talentos que Francisco reconheceu nele.

Adeus Artsakh

Em 2016 viajei com um grupo de jornalistas para o enclave de Nagorno Karabakh. Fomos primeiro para Yerevan, na Arménia, e de lá era suposto seremos levados de helicóptero para Stepanakert. Por causa do mau tempo, porém, tivemos de partir de autocarro por volta da 1h00, para fazer quase cinco horas de estrada, sempre com curvas e a subir montanhas.

Chegámos de madrugada à autoproclamada República de Artsakh, um território historicamente povoado por arménios, dentro do Azerbaijão. Quando a União Soviética se desintegrou, os Arménios de Karabakh, que era administrada pelo Azerbaijão, declararam independência, o que conduziu a uma guerra. Foram cometidas atrocidades de parte a parte, morreram famílias inteiras, mas os arménios venceram e consolidaram o seu controlo sobre a região. Declararam uma independência que nunca foi reconhecida por ninguém, nem sequer pela Arménia, e assim viveram durante 30 anos, rodeados de inimigos, ligados ao mundo exterior apenas pelo corredor de Lachin, que lhes permitia ter acesso à Arménia.

Em Karabakh assistimos às comemorações dos 25 anos da "independência", junto ao cemitério militar. Uma das coisas mais impressionantes da viagem foi mesmo ver as inúmeras campas de soldados mortos ao longo dos anos a defender aquela terra. Num caso em particular estavam três irmãos que morreram na mesma batalha, outros tinham imagens gravadas no mármore dos mortos fardados e de arma na mão; visitámos ainda a linha da frente, onde recebi de um oficial um Novo Testamento arménio, camuflado, e fomos ao famoso monumento "Nós somos as nossas montanhas" que é o símbolo de Artsakh. Os arménios de Karabakh queriam mostrar-nos que estavam a defender mais que um país, estavam a lutar por uma herança, pela terra onde tinham vivido e morrido os seus antepassados, ao longo de séculos, e que contra todas as expectativas estavam a conseguir fazê-lo.

Tudo isso acabou ontem.

Depois de anos a rearmar-se e a incentivar um ódio étnico e cultural aos arménios, e com o apoio imprescindível da Turquia, o Azerbaijão voltou a atacar Karabakh, como tem feito sempre por esta altura do ano, ao longo dos últimos dois anos. Desta vez, com o corredor de Lachin bloqueado por alegados activistas ambientais, sabendo que a Arménia não se iria comprometer com uma guerra total contra os azeris, e sem o apoio da Rússia, as autoridades de Nagorno Karabakh anunciaram a sua rendição. Artsakh morreu.

Estão neste momento a ser negociadas as condições da rendição, mas o que se avizinha é previsível. A perseguição dos arménios que não fugirem – do aeroporto de Stepanakert já chegam as imagens de caos que acompanha sempre estes momentos – e o apagamento sistemático da milenar herança cultural e religiosa arménia da região.

Quando a Rússia invadiu a Ucrânia, perguntei neste texto o que aconteceria se Moscovo perdesse a guerra, acrescentando que perder a guerra, neste contexto, era tudo o que ficasse aquém da ocupação de Kiev em três dias. Uma das minhas previsões era exactamente a tragédia que agora se está a desenrolar à nossa frente.

Mas esta é também, de certa forma, uma derrota diplomática para o Vaticano. Em 2016 Francisco visitou tanto a Arménia como o Azerbaijão. O objectivo era tentar promover a pacificação. Mais recentemente o cardeal Parolin também esteve em missão entre os dois estados para tentar impedir o recrudescimento do conflito. Ao menos tentaram, mas sem sucesso.

Karabakh não é apenas mais um território. É para os arménios o que Guimarães é para Portugal, o que o Kosovo é para os Sérvios (outros cuja dependência do amigo Putin de pouco lhes tem valido). Independentemente do direito internacional, que de facto reconhece a região como parte do Azerbaijão, o que se está a passar ali é uma dor de alma. É o coração de um povo que está a ser arrancado e esmagado diante dos seus olhos.

É também o recordar de tragédias colectivas do passado. Os azeris são turcomanos, e existe uma expressão na Turquia e no Azerbaijão: Um povo, dois estados. Por isso mesmo, e pela importância da mão de Erdogan nisto tudo, os arménios sentem que este é apenas mais um capítulo do terrível genocídio de 1915.

Como me disse um arménio quando estive lá em 2016: “Em 1915 mataram os arménios ocidentais, agora querem acabar o trabalho”.

"They protect the land" - Música dedicada a Nagorno Karabakh pela banda System of a Down, constituída por arménios americanos

Wednesday, 20 September 2023

Toma o Comprimido

Francis X. Maier
O momento mais icónico do cinema do final dos anos 90 é a escolha que Neo tem de fazer no primeiro filme da série Matrix. Para quem não se lembra, o Matrix retrata um futuro em que os seres humanos vivem num mundo ilusório de aparente normalidade, mas na realidade cada pessoa está a flutuar num banho de narcóticos, administrado por máquinas sencientes. Os humanos criaram as máquinas e dotaram-nas de inteligência. Depois as máquinas escravizaram os humanos, que agora são usados como fontes vivas e anestesiadas de energia.

O enredo é bastante simples. Neo (um anagrama para “One”, o escolhido) é um programador e hacker que sente que há algo indefinível de errado no tecido da vida diária. Neo é contactado online por membros de uma resistência humana que procuram destruir as máquinas. Estes dão-lhe a escolher entre dois comprimidos. O azul levá-lo-á de volta aos prazeres da sua realidade imaginada, sem qualquer memória do que se passou. O encarnado abre-lhe os olhos para a dura verdade. Neo toma o comprimido encarnado e liberta a sua mente. Acabará por se tornar, para todos os efeitos, o salvador da humanidade.

Escrito e realizado pelos Irmãos Wachowski (actualmente, graças ao “milagre” dos medicamentos hormonais e de cirurgia, as Irmãs Wachowski) o filme é uma mistela de génio imaginativo, messianismo bíblico e misticismo oriental, que captura de forma perfeita o custo de o homem brincar ao Aprendiz de Feiticeiro; o custo de sobrestimar a nossa sabedoria e subestimar as consequências das ferramentas que criamos.

Aquilo a que chamamos progresso vem sempre com um senão. Se a tecnologia nos dá, também nos tira. A escrita permite gravar os nossos pensamentos, mas como Platão argumentou, também enfraquece a memória. O automóvel transporta-nos mais depressa, mas também polui a atmosfera. É o mesmo com qualquer nova tecnologia. 

E no mundo do Matrix esta nova ferramenta tira tudo, a começar pela liberdade e dignidade humana. As máquinas alimentam-se, literalmente, da vida e da energia das suas vítimas iludidas, tal como os ídolos pagãos, naturalmente vazios, vampirizam a vida dos seus idólatras.

Claro que o Matrix é ficção científica. É apenas uma história, muito longe do mundo em que vivemos aqui e agora. Mas talvez não tão longe como gostaríamos de pensar. Consideremos o seguinte trecho, escrito à menos de dois anos:

Às vezes fico acordado à noite, ou deambulo pelo campo atrás da minha casa, ou passeio pela rua da vila em que vivo e penso que a consigo ver toda a volta: a rede. As veias e tendões da máquina que nos rodeia, que nos paralisa e que agora nos sustenta e nos define. Imagino uma espécie de rede de fios luminosos no ar, brilhando como uma teia de aranha coberta de orvalho ao nascer do sol. Imagino os cabos e as ligações de satélites, os filmes e as palavras e os discos e as opiniões, os nós e os centros de dados que rastreiam e registam os detalhes da minha vida. Imagino a malha criada pelas transacções bancárias e as compras, os pedidos de passaporte e as mensagens enviadas. Vejo esta coisa, seja o que for, a ser construída, a construir-se à minha volta, vejo-a a erguer-se e a apertar o punho, e vejo que nenhum de nós a pode impedir de evoluir para se tornar o que seja que se está a tornar.

Vejo a Máquina, a zumbir gentilmente para si mesmo enquanto nos prende com as suas ofertas, seduzindo-nos com as suas promessas enquanto nos puxa devagarinho para dentro. Penso sobre as partes com que interagimos diariamente, a interface brilhante e branca à qual revelamos voluntariamente cada detalhe das nossas vidas em troca de informação, ou prazeres, ou histórias contadas por corporações globais de entretenimento que mercantilizam a nossa cultura para no-la revender. Penso nas palavras que usamos para descrever esta interface, que carregamos nos nossos bolsos para todo o lado, que nos rastreia em cada rua, em cada floresta que ainda existe: a teia [web], a rede.

E penso: Isto são coisas concebidas para apanhar presas.

Trata-se de uma passagem da extraordinária série de ensaios The Tale of the Machine, escrito pelo autor britânico Paul Kingsnorth, que recentemente se tornou cristão (ortodoxo). Este ensaio em particular chama-se You Are Harvest, e foi publicado em Outubro de 2021. É leitura importante, como toda a série. O seu site no Substack, The Abbey of Misrule, está ao nível do The Upheaval de N.S. Lyon e de Archedelia de Matthew B. Crawford, alguns dos melhores comentários culturais disponíveis actualmente.

Devemos evitar a tentação de achar que Kingsnorth está meramente a ser alarmista ou excessivo. O grande filósofo e teólogo protestante francês Jacques Ellul disse o mesmo e ainda mais em A Sociedade Tecnológica, há quase 70 anos.

Ellul argumentava que a adição moderna à tecnologia enquanto panaceia leva inevitavelmente o “estado a tornar-se totalitário, a absorver completamente as vidas dos seus cidadãos. Mesmo quando o estado é liberal e democrático, não pode se não tornar-se totalitário. Pode fazê-lo directamente, ou como no caso dos Estados Unidos, através de interpostas pessoas. Mas independentemente das diferenças, todos os sistemas acabam por chegar ao mesmo resultado.” O adolescente médio americano passa agora até nove horas por dia a olhar para ecrãs. Isso tem consequências psicológicas, logo sociais, logo políticas.

No Matrix o despertar de Neo para a realidade implica desligar-se literalmente das máquinas e suportar uma recuperação dolorosa, embora salvífica. Paul Kingsnorth livrou a vida diária da sua família de grande parte do casulo narcótico de alta tecnologia. (Não deixou de escrever no computador, não é propriamente chanfrado).

E está mais feliz por isso – por uma boa razão. Não podemos ser as criaturas de dignidade que Deus quis; não podemos ser fermento neste mundo; não podemos servir Jesus Cristo e ver claramente aquilo que deve ser feito no mundo, se formos apenas montes de detrito adormecidos. Fomos feitos para mais do que isso. Como escreve São Paulo, fomos feitos para ser filhos e filhas da luz, por isso, “não durmamos, pois, como os demais, antes vigiemos e sejamos sóbrios” (Tess. 5,6).

Por outras palavras: Toma o comprimido.


Francis X. Maier é conselheiro e assistente especial do arcebispo Charles Chaput há 23 anos. Antes serviu como Chefe de Redação do National Catholic Register, entre 1978-93 e secretário para as comunidades da Arquidiocese de Denver entre 1993-96.

Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na quinta-feira, 14 de Setembro de 2023)

© 2023 The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de reprodução contacte: info@frinstitute.org

The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing.

Friday, 15 September 2023

Português dirige "revista do Papa" e Setúbal continua sem bispo

Um dos temas das últimas semanas é o facto de os ucranianos, e mais especificamente os bispos católicos ucranianos, terem-se manifestado desgastados com as palavras e os gestos de Francisco sobre a guerra na Ucrânia. Este é um assunto sensível. Neste texto explico que os ucranianos têm algumas razões de queixa, mas que, bem vistas as coisas, as acusações de que Francisco é de alguma forma russófilo no que diz respeito a esta guerra são profundamente injustas, e não resistem a um escrutínio cuidadoso.

A semana passada dei-vos a feliz notícia da libertação, na Nigéria, de um padre e um seminarista que tinham sido raptados. Hoje, infelizmente, trago-vos a triste notícia da morte de mais um seminarista naquele país (na foto). Na’aman Danlami morreu carbonizado quando a casa paroquial em que estava foi atacada e incendiada. Dois padres que estavam na mesma casa conseguiram escapar com vida. Rezem pela Nigéria, para que o pesadelo termine.

E rezem também pelo Sudão do Sul. O apelo é da missionária portuguesa Beta Almendra.

De Roma chega a notícia de mais uma nomeação de um português para um cargo importante. O jesuíta Nuno Gonçalves, que chegou a ser sugerido como possível Patriarca de Lisboa, é a partir de agora director da revista Civiltà Cattolica. Recordo que a Civiltà Cattolica não é “apenas” uma revista dos jesuítas italianos. Cada edição é revista pessoalmente pelo Papa antes de ser publicada e é onde aparecem sempre publicadas as conversas do Papa com os jesuítas quando viaja. É, por isso, um órgão muito importante para se ir tomando o pulso ao pontificado.

O Papa está solidário com as vítimas dos desastres naturais que ocorreram em Marrocos e na Líbia.

O Bispo de Coimbra anunciou um sínodo para os jovens e o bispo de Angra diz que é preciso lutar contra a religião de sofá e de pijama. Quem não anunciou nada foi o bispo de Setúbal, isto porque Setúbal está sem bispo desde 28 de janeiro de 2022. São 595 dias de efectiva orfandade naquela diocese. É grave. Entretanto ouvi uns “zunzuns” de que a situação poderá ficar resolvida até ao fim do mês. Rezemos que sim!

Não deixem de ler o artigo desta semana do The Catholic Thing em que o padre Charles Fink, no seu primeiro texto neste site, fala de preconceito, racismo e tolerância cristã, recorrendo às memórias do seu avô e à sua própria experiência como militar na guerra do Vietname.

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