Wednesday, 30 August 2023

As Duas Árvores de Santo Agostinho

O dia 28 de Agosto foi a Solenidade de Santo Agostinho, bem como o dia de anos da minha mãe. Acho que ela nunca leu uma palavra de Agostinho, mas poderá ter ouvido falar das lágrimas que Santa Mónica verteu sobre o seu jovem filho (como se conta nas Confissões) e sentido uma ligação com as deambulações adolescentes do seu próprio filho. Em todo o caso, quando se lê Agostinho é quase impossível não ver paralelos com a nossa própria vida, de uma forma muito pessoal. São Tomás de Aquino é o grande mestre da mente, mas Agostinho é um guia apaixonado para o coração.

Logo na primeira página das Confissões lemos a frase muitas vezes citada: fecisti nos ad te et inquietem est cor nostrum donec requiescat in te (“Fizeste-nos, Senhor, para ti, e o nosso coração anda inquieto enquanto não descansar em ti”). Não há mal nenhum em ler isto como apenas uma expressão piedosa, embora eu avise sempre os meus alunos de que não devem presumir compreender o que Agostinho quer dizer aqui com a palavra “coração”. Mas se continuarmos a ler obtemos uma exposição profunda – por entre uma história de tentações e ambições mundanas, e confusões intelectuais e espirituais, que têm tanta força agora como tinham na altura – do que significam verdadeiramente essas palavras aparentemente tão simples.

Os comentadores costumam dizer que “o mundo perdeu a sua história”. O que querem dizer é que deixámos de saber porque é que existimos enquanto pessoas ou sociedades. No fundo, a história que perdemos é a visão bíblica da história. O resultado é que as narrativas com que a substituímos – o iluminismo, nacionalismo, progresso económico e até ciência – que na sua raiz dependiam da existência de um sentido e direcção para a vida, deixaram de ter verdadeira substância.

E isso vê-se nas tentativas desesperadas de estabelecer uma “identidade” através da raça ou de “comunidades” de género, no empenho em cruzadas políticas ou ambientais ou, por fim, nas manifestações modernas de corações inquietos.

De certa forma, mesmo uma obra hercúlea como “A Cidade de Deus”, que foi escrita para refutar a acusação de que foi o abandono dos deuses pagãos pelo Cristianismo que levou ao saque de Roma em 410 pelos Visigodos, reflecte a crença de Agostinho de que a confiança na nossa própria capacidade, independente de Deus, de estabelecer a justiça perfeita na terra não passa de uma ilusão para acalmar a nossa inquietude.

Nas Confissões, Agostinho começa por narrar o desnorte de quem perde a verdadeira história do mundo. Conta o drama da sua própria vida e conversão, intercalada com uma grande dose de filosofia, teologia e psicologia, introduzindo algumas das grandes personagens do seu tempo – filósofos proeminentes, líderes religiosos, políticos, Santo Ambrósio, até o Imperador Romano, bem como muitos amigos e até pessoas comuns.

Mas a sua história pessoal começa finalmente a fazer sentido apenas quando recupera a história macro, um assunto comum para autores de ficção. Louis de Wohl escreveu, há meio século, um romance sobre Agostinho, A Chama Inquieta, que ainda mantém o seu interesse, e a jovem concubina de Agostinho, que nas Confissões nunca é nomeada, foi tratada de forma imaginativa em As Confissões de X, de Suzanne Wolfe.

O Padre Aidan Nichols O.P. admite, com uma humildade que é rara entre os académicos, que “com a possível exceção de Cícero, sabe-se mais sobre Santo Agostinho do que sobre qualquer outra figura da Antiguidade. Sabemos demasiado sobre ele para que seja sequer possível lidar com esse conhecimento”.

Porém, o mesmo autor, em The Singing Masters: Church Fathers from Greek East and Latin West, lida maravilhosamente. (À nossa propria escala mais modesta, através dos cursos do The Catholic Thing, temos feito algumas introduções tanto às Confissões como à Cidade de Deus.)

Ainda assim, o que é que temos a aprender com um homem que morreu há 1600 anos, num local e num tempo tão diferentes que requer um esforço sério – quer de imaginação como de estudo – apenas para começar a compreender alguma coisa sobre ele?

Agostinho debaixo da Figueira
Bom, talvez a primeira coisa seja a compreensão de que apesar de todas essas diferenças há muita coisa que continua a tocar-nos de forma imediata, precisamente porque – não obstante os orgulhosos progressistas de todos os tempos – muitas das coisas humanas não mudam.

O Pe Nichols resume tudo na história das “duas árvores”.

A primeira árvore é a pereira da qual Agostinho e o seu bando de adolescentes roubavam fruta, como se lê cedo nas Confissões, não porque tinham fome ou porque as peras eram boas (não eram), mas por casual perversidade. A refutação mais profunda daquilo a que hoje se chama ser “woke” é a crença clássica cristã de que os corações dos homens – todos os homens, incluindo o mais woke – vacilam entre o bem e – para usar o termo correcto – o mal.

No mundo antigo as pessoas estavam tão cientes da existência do mal que surgiu uma religião – o Maniqueísmo – que defendia a existência de dois deuses, um bom e outro mau. Agostinho passou cerca de uma década envolto nesta falsa fé até conseguir pensar a coisa até ao fim, e sair. Mas muitos outros não saíram. Como escreve o Pe Nichols: “o maior conjunto de escritos maniqueus está em chinês, o que demonstra que a ‘Religião da Luz’ chegou tão longe no Oriente como no Ocidente. Da Argélia à China, este foi o principal concorrente do Cristianismo até ao surgimento do Islão.”

O episódio da pereira, tal como o da árvore da ciência do Bem e do Mal, conta uma história profunda. No final de contas não é a sociedade, ou as condições económicas, ou o contexto familiar que explica o nosso mau comportamento, porque as imperfeições que neles encontramos derivam da mesma fonte humana: corações inquietos atraídos pelo bem e pelo mal.

Mas existe outra árvore na história de Santo Agostinho. No momento da sua conversão, ele escreve: “mas eu, não sei como, me retirei para a sombra de uma figueira” (Livro VIII). O Pe Nichols repara aqui em algo que a muitos de nós poderá ter passado despercebido: que esta segunda árvore é uma figueira, e que foi das folhas de uma figueira que Adão e Eva teceram roupa depois de terem pecado, e se sentirem nus.

Agostinho tinha certamente isto em mente. E por isso aquilo que ele está a narrar é precisamente a inversão da direcção que tomámos naquele dia fatal no Paraíso.

Que é aquilo que acontece sempre que alguém se converte – que se volta para a direcção certa, que recupera a história do mundo, que é também a nossa história pessoal, e vê pacificado o seu coração.


Robert Royal é editor de The Catholic Thing e presidente do Faith and Reason Institute em Washington D.C. O seu mais recente livro é A Deeper Vision: The Catholic Intellectual Tradition in the Twentieth Century, da Ignatius Press. The God That Did Not Fail: How Religion Built and Sustains the West está também disponível pela Encounter Books.

(Publicado pela primeira vez na Segunda-feira, 28 de Agosto de 2023 em The Catholic Thing)

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