Logo na primeira página das Confissões
lemos a frase muitas vezes citada: fecisti nos ad te et inquietem est cor
nostrum donec requiescat in te (“Fizeste-nos, Senhor, para ti, e o
nosso coração anda inquieto enquanto não descansar em ti”). Não há mal nenhum
em ler isto como apenas uma expressão piedosa, embora eu avise sempre os meus
alunos de que não devem presumir compreender o que Agostinho quer dizer aqui
com a palavra “coração”. Mas se continuarmos a ler obtemos uma exposição
profunda – por entre uma história de tentações e ambições mundanas, e confusões
intelectuais e espirituais, que têm tanta força agora como tinham na altura –
do que significam verdadeiramente essas palavras aparentemente tão simples.
Os comentadores costumam dizer
que “o mundo perdeu a sua história”. O que querem dizer é que deixámos de saber
porque é que existimos enquanto pessoas ou sociedades. No fundo, a história que
perdemos é a visão bíblica da história. O resultado é que as narrativas com que
a substituímos – o iluminismo, nacionalismo, progresso económico e até ciência
– que na sua raiz dependiam da existência de um sentido e direcção para a vida,
deixaram de ter verdadeira substância.
E isso vê-se nas tentativas
desesperadas de estabelecer uma “identidade” através da raça ou de “comunidades”
de género, no empenho em cruzadas políticas ou ambientais ou, por fim, nas
manifestações modernas de corações inquietos.
De certa forma, mesmo uma obra
hercúlea como “A Cidade de Deus”, que foi escrita para refutar a acusação de
que foi o abandono dos deuses pagãos pelo Cristianismo que levou ao saque de
Roma em 410 pelos Visigodos, reflecte a crença de Agostinho de que a confiança
na nossa própria capacidade, independente de Deus, de estabelecer a justiça
perfeita na terra não passa de uma ilusão para acalmar a nossa inquietude.
Nas Confissões, Agostinho
começa por narrar o desnorte de quem perde a verdadeira história do mundo.
Conta o drama da sua própria vida e conversão, intercalada com uma grande dose
de filosofia, teologia e psicologia, introduzindo algumas das grandes
personagens do seu tempo – filósofos proeminentes, líderes religiosos,
políticos, Santo Ambrósio, até o Imperador Romano, bem como muitos amigos e até
pessoas comuns.
Mas a sua história pessoal
começa finalmente a fazer sentido apenas quando recupera a história macro, um
assunto comum para autores de ficção. Louis de Wohl escreveu, há meio século,
um romance sobre Agostinho, A Chama Inquieta, que ainda mantém o seu
interesse, e a jovem concubina de Agostinho, que nas Confissões nunca é
nomeada, foi tratada de forma imaginativa em As Confissões de X, de
Suzanne Wolfe.
O Padre Aidan Nichols O.P. admite,
com uma humildade que é rara entre os académicos, que “com a possível exceção
de Cícero, sabe-se mais sobre Santo Agostinho do que sobre qualquer outra
figura da Antiguidade. Sabemos demasiado sobre ele para que seja sequer
possível lidar com esse conhecimento”.
Porém, o mesmo autor, em The Singing Masters: Church Fathers from Greek
East and Latin West, lida maravilhosamente. (À nossa propria escala mais modesta,
através dos cursos do The Catholic Thing, temos feito algumas introduções tanto
às Confissões como à Cidade de Deus.)
Ainda assim, o que é que temos
a aprender com um homem que morreu há 1600 anos, num local e num tempo tão
diferentes que requer um esforço sério – quer de imaginação como de estudo –
apenas para começar a compreender alguma coisa sobre ele?
Agostinho debaixo da Figueira |
O Pe Nichols resume tudo na
história das “duas árvores”.
A primeira árvore é a pereira
da qual Agostinho e o seu bando de adolescentes roubavam fruta, como se lê cedo
nas Confissões, não porque tinham fome ou porque as peras eram boas (não
eram), mas por casual perversidade. A refutação mais profunda daquilo a que
hoje se chama ser “woke” é a crença clássica cristã de que os corações dos
homens – todos os homens, incluindo o mais woke – vacilam entre o bem e – para
usar o termo correcto – o mal.
No mundo antigo as pessoas
estavam tão cientes da existência do mal que surgiu uma religião – o
Maniqueísmo – que defendia a existência de dois deuses, um bom e outro mau.
Agostinho passou cerca de uma década envolto nesta falsa fé até conseguir
pensar a coisa até ao fim, e sair. Mas muitos outros não saíram. Como escreve o
Pe Nichols: “o maior conjunto de escritos maniqueus está em chinês, o que
demonstra que a ‘Religião da Luz’ chegou tão longe no Oriente como no Ocidente.
Da Argélia à China, este foi o principal concorrente do Cristianismo até ao
surgimento do Islão.”
O episódio da pereira, tal
como o da árvore da ciência do Bem e do Mal, conta uma história profunda. No
final de contas não é a sociedade, ou as condições económicas, ou o contexto
familiar que explica o nosso mau comportamento, porque as imperfeições que
neles encontramos derivam da mesma fonte humana: corações inquietos atraídos pelo
bem e pelo mal.
Mas existe outra árvore na
história de Santo Agostinho. No momento da sua conversão, ele escreve: “mas eu,
não sei como, me retirei para a sombra de uma figueira” (Livro VIII). O Pe
Nichols repara aqui em algo que a muitos de nós poderá ter passado
despercebido: que esta segunda árvore é uma figueira, e que foi das folhas de
uma figueira que Adão e Eva teceram roupa depois de terem pecado, e se sentirem
nus.
Agostinho tinha certamente
isto em mente. E por isso aquilo que ele está a narrar é precisamente a
inversão da direcção que tomámos naquele dia fatal no Paraíso.
Que é aquilo que acontece
sempre que alguém se converte – que se volta para a direcção certa, que
recupera a história do mundo, que é também a nossa história pessoal, e vê
pacificado o seu coração.
Robert Royal é editor de The Catholic Thing e
presidente do Faith and Reason Institute em Washington D.C. O seu mais recente
livro é A Deeper Vision: The Catholic
Intellectual Tradition in the Twentieth Century, da Ignatius Press. The God That Did Not Fail: How
Religion Built and Sustains the West está também disponível pela Encounter
Books.
(Publicado pela primeira vez
na Segunda-feira, 28 de Agosto de 2023 em The
Catholic Thing)
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