Muita coisa mudou ao longo
deste tempo, e nunca a questão foi encarada com tanta seriedade como agora.
Nas últimas semanas houve dois
casos, contudo, que são inéditos no contexto português e que desafiam o paradigma até agora instalado,
e um terceiro que também levanta algumas questões.
O primeiro caso tem a ver com
um padre que foi suspenso não por cometer abusos, mas por não ter agido de
forma suficientemente célere e conveniente para evitar que um leigo, com
responsabilidades na sua paróquia, os cometesse. Que eu saiba é o primeiro caso
deste género em Portugal e mostra que o problema a combater não é apenas o
abuso sexual de menores, mas também o encobrimento de situações, ou inacção
perante casos conhecidos, mesmo que não sejam praticados por membros do clero.
É por isso um caso que deve servir de alerta para todos os sacerdotes e pessoas
em posição de responsabilidade na Igreja.
O segundo caso envolve um
padre que foi dispensado da actividade pastoral por enviar mensagens
inapropriadas num grupo de WhatsApp em que constavam, entre outros, alunos
menores, da escola da qual era capelão.
Este caso é relevante na
medida em que parece testar os próprios limites do que constitui uma situação
susceptível de ser considerada um abuso. Por um lado, o senso comum dir-nos-á
que o envio de uma piada de mau gosto (e do que se sabe, estamos a falar disso
mesmo), ou a utilização de linguagem discutível, num grupo – seja virtual, seja
presencial – não é caso para grande alarme. Por outro, este caso demonstra que a
própria definição daquilo que a Igreja, e a sociedade, consideram abusos está
em evolução.
Em parte, isto acontece porque
muitos abusos sexuais começam com coisas aparentemente inofensivas, e a troca
de mensagens é uma delas. Não estou a dizer, de forma alguma, que este caso se
enquadra, mas compreendo que num sistema que se quer rigoroso é preciso que
mesmo estes casos, uma vez denunciados, sejam investigados pelas comissões diocesanas
que têm sido montadas em cada diocese.
Importa, a este respeito,
recordar que a averiguação não é nada mais que isso. Estes casos estão a ser
averiguados porque houve uma denúncia e têm de ser averiguados. E os padres em
questão foram dispensados da actividade pastoral porque, havendo uma
investigação, as regras mandam que assim seja. Isso não significa que já tenham
sido condenados por o que quer que seja. O melhor mesmo, nesta altura, é deixar
as respectivas comissões fazerem o seu trabalho.
O terceiro caso, divulgado no
dia 26 de julho pelo Observador, remonta aos anos 90 e diz respeito a um
sacerdote que foi acusado de cometer pelo menos um acto de abuso sexual de
menores, mas cuja vítima terá pedido a D. Manuel Clemente, quando se
encontraram os dois, para não denunciar o caso nem o divulgar, apenas que
garantisse que o padre não o pudesse repetir.
Esta situação não é inédita e
coloca a Igreja num dilema. Respeitar a vontade da vítima e ficar de mãos atadas
quanto à denúncia às autoridades, ou denunciar o caso, expondo assim a vítima e
violando a sua vontade, correndo o risco de, com essa atitude, dissuadir outras
vítimas de vir falar?
Não é uma questão fácil, mas
eu tendo para achar que em todos os casos deve-se denunciar. Mais, num país
como Portugal, as dioceses têm contactos suficientemente próximos com as
autoridades para poder alertar para um padre sobre quem existe uma suspeita
credível, sem expor a vítima, mas permitindo a estas que investiguem para ver
se encontram mais dados que apontem para a existência de abusos, eventualmente
contra outras vítimas. Claro que estamos a falar de um caso que se passou na
década de 90 e esta minha posição é informada por muito do que se passou
entretanto, o que pode justificar que há 30 anos a decisão da diocese tenha sido
diferente.
Em todo o caso, não nos
podemos esquecer que Portugal está a passar agora por uma fase que outros
países já atravessaram há muito, e em circunstâncias muito mais graves, e por
isso podemos e devemos aprender com essa experiência.
Termino com outra questão que
me parece muito importante. O juiz Souto Moura disse, numa entrevista recente,
que desde Maio a comissão de Lisboa, a que ele pertence, recebeu denúncias
relativas a dois casos. Um é o caso das mensagens, mas o outro não é público, e
sabemos que não é o caso reportado agora pelo Observador, porque segundo a
Renascença, a comissão diocesana não recebeu qualquer denúncia relativa a este
sacerdote. Se o segundo caso referido por Souto Moura não é público, é porque
sobre esse caso não foi publicado qualquer comunicado pelo Patriarcado, o que nos
deve motivar a pensar sobre a estratégia de comunicação do Patriarcado, e da
comissão diocesana, neste campo dos abusos.
Uma das lições mais claras das
crises de abusos noutros países é do valor da transparência. No começo, a
imprensa era frequentemente apontada como sendo um dos inimigos, por estar a
expor publicamente os males na Igreja, mas já se percebeu que isso foi um
factor crucial para obrigar a uma mudança de paradigma que coloca as vítimas em
primeiro lugar.
Temo que a Igreja em Portugal
ainda esteja a olhar para a comunicação e para a transparência nestes casos apenas
pela lente da reacção. Se a notícia se torna pública, ou se se sabe que vai
tornar-se pública, então sai um comunicado, mas em caso contrário não se fala
de nada.
Quando li a entrevista de
Souto Moura tentei contactar a comissão diocesana para tentar obter alguns
dados. Nunca pedi o nome da pessoa em causa, mas quis saber se se trata de um
sacerdote, de um leigo, de um caso recente, de um caso de abusos ou de
encobrimento, etc., com o objectivo de poder juntar este caso à cronologia, mas
não obtive qualquer resposta, nem sequer uma mensagem a dizer que não
pretendiam responder.
Este não me parece ser o
caminho a seguir. Sei que não sou o único jornalista a queixar-se disto.
Não é fácil, sei que não é, e sobretudo
não é claro. O envio de um comunicado a dizer que um padre foi suspenso pode
ser meio caminho andado para que a identidade do mesmo seja revelada, mas o não
reconhecimento público da existência sequer do caso é também um factor
essencial para facilitar o seu encobrimento. Não estou a acusar ninguém de
encobrir, apenas a dizer que é melhor que não existam os pressupostos que o
facilitem.
Claro que há quem queira apenas
escândalos para vender jornais e “dar clicks”, mas outros há, e julgo que não
poucos, que acreditam que a verdade e a transparência, também aqui, nos
libertarão.