Thursday 28 July 2022

Contributos para uma reflexão sobre a questão dos abusos na Igreja

Há mais de uma década que tenho estado a acompanhar os casos de abusos sexuais cometidos no universo da Igreja Católica em Portugal, mantendo uma cronologia actualizada no blog, que se encontra aqui.

Muita coisa mudou ao longo deste tempo, e nunca a questão foi encarada com tanta seriedade como agora.

Nas últimas semanas houve dois casos, contudo, que são inéditos no contexto português e que desafiam o paradigma até agora instalado, e um terceiro que também levanta algumas questões.

O primeiro caso tem a ver com um padre que foi suspenso não por cometer abusos, mas por não ter agido de forma suficientemente célere e conveniente para evitar que um leigo, com responsabilidades na sua paróquia, os cometesse. Que eu saiba é o primeiro caso deste género em Portugal e mostra que o problema a combater não é apenas o abuso sexual de menores, mas também o encobrimento de situações, ou inacção perante casos conhecidos, mesmo que não sejam praticados por membros do clero. É por isso um caso que deve servir de alerta para todos os sacerdotes e pessoas em posição de responsabilidade na Igreja.

O segundo caso envolve um padre que foi dispensado da actividade pastoral por enviar mensagens inapropriadas num grupo de WhatsApp em que constavam, entre outros, alunos menores, da escola da qual era capelão.

Este caso é relevante na medida em que parece testar os próprios limites do que constitui uma situação susceptível de ser considerada um abuso. Por um lado, o senso comum dir-nos-á que o envio de uma piada de mau gosto (e do que se sabe, estamos a falar disso mesmo), ou a utilização de linguagem discutível, num grupo – seja virtual, seja presencial – não é caso para grande alarme. Por outro, este caso demonstra que a própria definição daquilo que a Igreja, e a sociedade, consideram abusos está em evolução.

Em parte, isto acontece porque muitos abusos sexuais começam com coisas aparentemente inofensivas, e a troca de mensagens é uma delas. Não estou a dizer, de forma alguma, que este caso se enquadra, mas compreendo que num sistema que se quer rigoroso é preciso que mesmo estes casos, uma vez denunciados, sejam investigados pelas comissões diocesanas que têm sido montadas em cada diocese.

Importa, a este respeito, recordar que a averiguação não é nada mais que isso. Estes casos estão a ser averiguados porque houve uma denúncia e têm de ser averiguados. E os padres em questão foram dispensados da actividade pastoral porque, havendo uma investigação, as regras mandam que assim seja. Isso não significa que já tenham sido condenados por o que quer que seja. O melhor mesmo, nesta altura, é deixar as respectivas comissões fazerem o seu trabalho.

O terceiro caso, divulgado no dia 26 de julho pelo Observador, remonta aos anos 90 e diz respeito a um sacerdote que foi acusado de cometer pelo menos um acto de abuso sexual de menores, mas cuja vítima terá pedido a D. Manuel Clemente, quando se encontraram os dois, para não denunciar o caso nem o divulgar, apenas que garantisse que o padre não o pudesse repetir.

Esta situação não é inédita e coloca a Igreja num dilema. Respeitar a vontade da vítima e ficar de mãos atadas quanto à denúncia às autoridades, ou denunciar o caso, expondo assim a vítima e violando a sua vontade, correndo o risco de, com essa atitude, dissuadir outras vítimas de vir falar?

Não é uma questão fácil, mas eu tendo para achar que em todos os casos deve-se denunciar. Mais, num país como Portugal, as dioceses têm contactos suficientemente próximos com as autoridades para poder alertar para um padre sobre quem existe uma suspeita credível, sem expor a vítima, mas permitindo a estas que investiguem para ver se encontram mais dados que apontem para a existência de abusos, eventualmente contra outras vítimas. Claro que estamos a falar de um caso que se passou na década de 90 e esta minha posição é informada por muito do que se passou entretanto, o que pode justificar que há 30 anos a decisão da diocese tenha sido diferente.

Em todo o caso, não nos podemos esquecer que Portugal está a passar agora por uma fase que outros países já atravessaram há muito, e em circunstâncias muito mais graves, e por isso podemos e devemos aprender com essa experiência.

Termino com outra questão que me parece muito importante. O juiz Souto Moura disse, numa entrevista recente, que desde Maio a comissão de Lisboa, a que ele pertence, recebeu denúncias relativas a dois casos. Um é o caso das mensagens, mas o outro não é público, e sabemos que não é o caso reportado agora pelo Observador, porque segundo a Renascença, a comissão diocesana não recebeu qualquer denúncia relativa a este sacerdote. Se o segundo caso referido por Souto Moura não é público, é porque sobre esse caso não foi publicado qualquer comunicado pelo Patriarcado, o que nos deve motivar a pensar sobre a estratégia de comunicação do Patriarcado, e da comissão diocesana, neste campo dos abusos.

Uma das lições mais claras das crises de abusos noutros países é do valor da transparência. No começo, a imprensa era frequentemente apontada como sendo um dos inimigos, por estar a expor publicamente os males na Igreja, mas já se percebeu que isso foi um factor crucial para obrigar a uma mudança de paradigma que coloca as vítimas em primeiro lugar.

Temo que a Igreja em Portugal ainda esteja a olhar para a comunicação e para a transparência nestes casos apenas pela lente da reacção. Se a notícia se torna pública, ou se se sabe que vai tornar-se pública, então sai um comunicado, mas em caso contrário não se fala de nada.

Quando li a entrevista de Souto Moura tentei contactar a comissão diocesana para tentar obter alguns dados. Nunca pedi o nome da pessoa em causa, mas quis saber se se trata de um sacerdote, de um leigo, de um caso recente, de um caso de abusos ou de encobrimento, etc., com o objectivo de poder juntar este caso à cronologia, mas não obtive qualquer resposta, nem sequer uma mensagem a dizer que não pretendiam responder.

Este não me parece ser o caminho a seguir. Sei que não sou o único jornalista a queixar-se disto.

Não é fácil, sei que não é, e sobretudo não é claro. O envio de um comunicado a dizer que um padre foi suspenso pode ser meio caminho andado para que a identidade do mesmo seja revelada, mas o não reconhecimento público da existência sequer do caso é também um factor essencial para facilitar o seu encobrimento. Não estou a acusar ninguém de encobrir, apenas a dizer que é melhor que não existam os pressupostos que o facilitem.

Claro que há quem queira apenas escândalos para vender jornais e “dar clicks”, mas outros há, e julgo que não poucos, que acreditam que a verdade e a transparência, também aqui, nos libertarão.

 

Wednesday 27 July 2022

Não Criminalizem a Mulher que Aborta

David G. Bonagura Jr.
A revogação de Roe v. Wade reactivou uma série de leis em vários estados que criminalizam o aborto, mas que estavam suspensas há cerca de cinquenta anos. Ao contrário de outras leis mais recentes, como as de Oklahoma e da Florida, muitas destas prevêem que as mulheres sejam processadas por tentarem abortar. Nestes estados, se uma mulher obtiver um aborto ilegal poderíamos vê-la a ser algemada e julgada. E podem ter a certeza que o veremos mesmo, porque os media e os defensores do aborto cobrirão furiosamente cada segundo do processo. Aliás, o New York Times desafiou-nos a tentar fazê-lo.

De agora em diante a posição pro-vida deveria espelhar as recentes leis que proíbem que as mulheres sejam processadas, mas permitem que todos os outros envolvidos em facilitar a obtenção de um aborto o sejam. E devemos divulgar ao máximo esta posição.

Mas o aborto não é um assassinato? O homicídio deliberado de uma pessoa inocente? Normalmente as mulheres carregam alguma responsabilidade pelo acto. Mais, argumentam alguns, a responsabilização pessoal das mulheres pode desencorajá-las de terem comportamentos sexuais irreflectidos. Pelo contário, dizem, garantir a imunidade criminal poderá levá-las a tentar fazer abortos ilegais sem qualquer medo.

Uma mão-cheia de activistas pro-vida defendem a criminalização das mulheres. Claro que o New York Times lhes dedicou uma reportagem recentemente, com direito a manchete.

Mas processar mulheres por abortar é uma má ideia, e não só porque levaria o país a voltar-se instantaneamente contra a proibição do aborto – imaginem só as reacções a imagens de uma rapariga de dezasseis anos a ser detida. A ideia é errada sobretudo porque o aborto é um crime singular, que carrega uma sentença perpétua de natureza diferente.

Todos os homicídios partilham um mesmo e trágico resultado, a perda de vida inocente que não pode ser restaurada. Contudo, nem todos os homicídios são julgados da mesma forma. A lei diferencia entre três graus de severidade de um homicídio, determinados pelos motivos e os meios. Desta perspectiva, o direito criminal segue o exemplo da teologia católica no julgamento de um acto imoral: o acto em si tem primazia, mas a intenção e as circunstâncias também são tidos em conta e podem atenuar a culpa do autor, embora jamais possam justificar a decisão errada.

Os homicídios são quase sempre motivados por um (ou mais) dos sete pecados mortais. O aborto, pelo contrário, é quase sempre motivado por medo, insegurança e pressão social, que pode vir tanto da situação económica da mulher como do pai da criança. (Sim, a luxúria também pode conduzir a um aborto, mas não é causa directa). Os homicidas são uma ameaça à segurança pública, mas as mulheres que procuram um aborto não.

Quando contemplamos o acto em si, o aborto é tão repulsivo, tão contrário à natureza, que se pode até argumentar que é pior que outras formas de homicídio. Mas para uma mãe consentir na matança do seu próprio filho, com quem deve partilhar uma ligação mais singular e bela que qualquer outra na criação, não pode estar de mente sã naquele momento fatídico.

Mesmo quando invoca razões tão fúteis ou egoístas como “não estou pronta para ter um filho”, claramente não está a compreender a gravidade do acto, e uma vida inteira de sujeição a propaganda abortista, quer se aperceba disso ou não, dificulta o discernimento moral. As mulheres que celebram e divulgam os seus abortos em comícios e marchas não estão de mente sã.

Assim, vemos que o aborto produz duas vítimas: a criança e a mãe, ainda que esta seja simultaneamente a agressora contra os dois. As vítimas precisam de compaixão e de cura, não de se sentar no banco dos réus. A memória de uma criança perdida já é punição suficiente.

Já aqueles que querem ajudar as mulheres a obter abortos – médicos, enfermeiras, farmacêuticos ou traficantes de pílulas abortivas – participam no homicídio de uma forma diferente da mulher. Estes não têm qualquer ligação à criança e procuram ganhar com o sofrimento do outro. Devem ser punidos pelo seu crime, de acordo com a sua gravidade. Se uma mulher faz um aborto sem qualquer ajuda de terceiros, o que precisa é de ajuda psiquiátrica, e não de ir para a cadeia.

Essencialmente, esta posição jurídica do movimento pro-vida segue a abordagem pastoral da Igreja Católica. Nenhuma entidade tem condenado o mal que é o aborto com a mesma força e consistência que a Igreja. E também nenhuma entidade tem convidado activamente as mulheres a obter o perdão, oferecendo aconselhamento espiritual e psicológico para as ajudar. Enquanto extensão temporal da encarnação, a Igreja revela ao mundo os atributos aparentemente paradoxais de Deus: Ele é Justiça e Ele é Misericórdia.

Ao rejeitar a criminalização das mulheres por abortar, a comunidade pro-vida demonstra que é ela, e não os defensores do aborto que se preocupa com os interesses da mulher. A não perseguição das mulheres não significa que o aborto não seja sério. Pelo contrário, a seriedade do aborto explica porque é que é ajuizado de forma diferente de outros homicídios. O aborto mata uma criança, mas mata também a alma de uma mãe. Os activistas pro-vida estão à mão com medidas criativas e atenciosas para lhe devolver a paz de alma.

Desde a queda de Adão e Eva que homens e mulheres sucumbem a tentações sexuais, não obstante o medo da gravidez e as terríveis consequências sociais. A ameaça de penas de prisão para o aborto terá pouca influência no desencorajamento da actividade sexual extraconjugal que conduz ao aborto. Para isso é preciso uma enorme mudança de paradigma social, a começar com o confronto da mentalidade contraceptiva (a venda de contraceptivos disparou desde a revogação de Roe v. Wade), e a proibição do aborto é a primeira de muitas contribuições para este fim.

O que nós queremos, para proteger melhor a vida, é que todos aqueles que promovem a indústria abortiva sejam afastados por via de ameaças legais. Mas para as mulheres que procuram um aborto é preciso um conjunto de medidas diferentes, uma vez que elas participam neste crime de uma forma muito diferente de todos os outros. A resposta pro-vida para as mulheres enganadas pela cultura da morte é amor, misericórdia e esperança.


David G. Bonagura, Jr. leciona no Seminário de São José, em Nova Iorque. É autor de Steadfast in Faith: Catholicism and the Challenges of Secularism, que será lançado no próximo inverno pela Cluny Media.

(Publicado pela primeira vez na quinta-feira, 21 de Julho de 2022 no The Catholic Thing)

© 2022 The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de reprodução contacte: info@frinstitute.org

The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing. 

Wednesday 20 July 2022

Ignorar as Escrituras é Ignorar a Cristo

Pe. Jay Scott Newman

Ignorar as Escrituras é ignorar a Cristo. Este juízo severo é feito por São Jerónimo, num comentário a Isaías, quando fala da necessidade de cada cristão ter conhecimento direto e pessoal dos livros inspirados da Bíblia Sagrada. Nessa passagem, Jerónimo insiste que Isaías não é apenas um profeta da Antiga Aliança, mas também um evangelista e apóstolo da Nova Aliança, por causa do papel essencial que desempenha em nos ensinar sobre a missão do messias e a identidade do Verbo encarnado.

Na sua convicção da necessidade de se conhecerem as Escrituras, Jerónimo antecipou a visão de Santo Agostinho de que o Novo Testamento está escondido no Antigo, e que no Novo o Antigo é revelado. Lá se vai o marcionismo, com a sua vontade de descartar as Escrituras judaicas e negar que o Deus de Israel também é nosso Pai. E lá se vão os argumentos daqueles que argumentam que por causa da presença de Cristo nos sacramentos é possível ser um discípulo maturo do Senhor Jesus sem o contacto regular e íntimo com as Sagradas Escrituras, tanto do Antigo como do Novo Testamento.

Na tarde do Domingo de Páscoa o Senhor Jesus Ressuscitado juntou-se no caminho de Jerusalém para Emaús a dois discípulos macambúzios, “mas os olhos deles foram impedidos de o reconhecer” (Lc 24,16). Os dois homens falaram ao desconhecido da sua incompreensão face à morte de Jesus de Nazaré, que eles acreditavam ser “um profeta, poderoso em palavras e em obras diante de Deus e de todo o povo” (Lc 24,19).

Depois de os dois homens reconhecerem que algumas mulheres do seu grupo afirmavam ter visto anjos, nessa mesma manhã, a anunciar que Jesus estava vivo, o Senhor Ressuscitado declarou: “‘Ó gente sem inteligência! Como sois lentos de coração para crerdes em tudo o que anunciaram os profetas! Porventura não era necessário que Cristo sofresse essas coisas e assim entrasse na sua glória?’. E começando por Moisés, percorrendo todos os profetas, explicava-lhes o que dele se achava dito em todas as Escrituras” (Lc 24,25-27).

Por fim, depois de se ter juntado aos dois discípulos para comer, “tomou o pão, abençoou-o, partiu-o e serviu-lhos. Então, se lhes abriram os olhos e o reconheceram, mas ele desapareceu. Diziam então um para o outro: ‘Não se nos abrasava o coração, quando ele nos falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras?’” (Lc 24, 30-32).

Para poder reconhecer o Senhor Ressuscitado no seu incomparável dom da Santíssima Eucaristia, para o poder reconhecer no aflitivo disfarce de pobre e para o poder reconhecer na irmandade de outros cristãos, reunidos para louvar a Deus, primeiro é necessário reconhecê-lo na Página Sagrada, escutar e obedecer à Palavra de Deus na Bíblia, porque “Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção e para a instrução na justiça, para que o homem de Deus seja apto e plenamente preparado para toda a boa obra” (2 Tim 3, 16-17).

São Jerónimo, de Durer, MNAA
Simplesmente não existe qualquer substituto para o conhecimento pessoal e directo da Sagrada Escritura adquirido ao longo de muitos anos de estudo e de oração, e quanto mais profundamente se compreende a Bíblia, mais profundamente podemos conhecer e amar o Senhor Jesus Cristo.

Mas tal experiência da Sagrada Escritura não afecta apenas o discipulado do crente individual, também dá forma a tudo na vida da Igreja, incluindo os seus ensinamentos e o seu louvor. Na Constituição Dogmática sobre Revelação Divina, Dei Verbum, o Concílio Vaticano II ensinou que “a santa mãe Igreja, segundo a fé apostólica, considera como santos e canónicos os livros inteiros do Antigo e do Novo Testamento com todas as suas partes, porque, escritos por inspiração do Espírito Santo, têm Deus por autor, e como tais foram confiados à própria Igreja (#11).

Vemos assim que a Bíblia é recebida e reverenciada como sendo revelação divina, e o mesmo não se pode dizer de qualquer outro texto na Igreja, incluindo livros litúrgicos, orações devocionais e decretos conciliares, sendo por isso mesmo que o Concílio insiste que as Escrituras, juntamente com a Sagrada Tradição, são a “regra suprema da sua fé; elas, com efeito, inspiradas como são por Deus, e exaradas por escrito de uma vez para sempre, continuam a dar-nos imutavelmente a palavra do próprio Deus, e fazem ouvir a voz do Espírito Santo através das palavras dos profetas e dos Apóstolos (#21).

O Cristianismo ou é uma religião revelada, ou é uma religião falsa, e o dom sobrenatural da revelação divina é-nos entregue no Evangelho de Jesus Cristo, que é “uma força vinda de Deus para a salvação de todo o que crê” (Romanos 1,16).

Sim, a proclamação do Evangelho começou antes de os textos do Novo Testamento terem sido escritos, mas as Sagradas Escrituras são um singular e divino dom para a Igreja. “Porque a Palavra de Deus é viva, eficaz, mais penetrante do que uma espada de dois gumes e atinge até a divisão da alma e do corpo, das juntas e medulas, e discerne os pensamentos e intenções do coração” (Hebreus, 4, 12).

E é por isso que cristãos maduros devem conhecer a Bíblia através do estudo e da oração, porque ignorar as Escrituras é ignorar a Cristo.


Jay Scott Newman, é padre da Diocese de Charleston e pároco da Igreja de Saint Mary’s em Greenville, Carolina do Sul.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na Domingo, 17 de Julho de 2022)

© 2022 The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de reprodução contacte: info@frinstitute.org

The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing.

 

Friday 15 July 2022

Novidades sobre abusos e outra visão da crise no SNS

Nos últimos dias tem-se falado muito sobre casos ligados à questão dos abusos sexuais na Igreja. Primeiro foi o caso do padre suspenso por enviar mensagens de conteúdo impróprio numa conversa de WhatsApp, depois o caso de um padre suspenso na arquidiocese de Évora, por não ter agido de forma correcta num caso de abusos praticados por um leigo. Entretanto soubemos que a Comissão Independente que está a analisar a situação nacional pretende edificar um memorial às vítimas, encomendado a Siza Vieira e hoje o juiz Souto Moura deu uma entrevista à Renascença em que, entre outras coisas, refere que desde Maio houve dois casos reportados em Lisboa. Ora, um dos casos será o acima referido, mas não se sabe qual é o segundo.

Pretendo escrever sobre tudo isto nos próximos dias, porque há muito a analisar e a dizer, mas entretanto recordo que aqui vou mantendo uma cronologia dos casos que têm surgido em Portugal, e que está o mais completo possível. Se notarem alguma falha, algum caso que não tenha sido reportado ou um caso que já tenha sido julgado, ou arquivado, avisem sff, nos comentários.

A semana passada o episódio do Hospital de Campanha foi sobre a crise no SNS, com o convidado José Diogo Ferreira Martins. Se ainda não ouviram, oiçam. Mas depois leiam também o comentário que entretanto publicámos, feito por uma médica católica que trabalha num hospital público em Trás-os-Montes. A Teresa apresenta uma visão diferente, discordando de alguns aspectos e complementando outros. Acima de tudo, são visões de duas pessoas de fé que trabalham em especialidades e realidades muito diferentes e que nos ajudam a ter uma melhor perspectiva do que se passa. Deixo já em aberto o convite a outros profissionais de saúde que queiram comentar e partilhar as suas opiniões. Podem fazê-lo na caixa de comentários, ou por mail para mim.

Ainda no rescaldo da decisão do Supremo americano que acabou com o aborto como direito constitucional nos EUA, o artigo desta semana do The Catholic Thing pergunta se não vale a pena reconsiderar o conceito de “liberdade procriativa”, que é excessivamente negativo e individualista. Um tema interessante a explorar.

A semana passada dei conta da “epidemia” de raptos e assassinatos de padres na Nigéria. Em resposta a Associação de Padres Diocesanos publicou um apelo a uma semana de oração e jejum e termina hoje. É um apelo muito bonito, que rejeita a resposta violenta. Leiam sobre o assunto aqui e, já agora, rezem também.

Em Cuba passou um ano sobre as manifestações pela liberdade, que foram duramente reprimidas. O país está na miséria – mais um caso em que o comunismo estranhamente falhou, mas algum dia hão de acertar, garantem-nos! – mas a pior pobreza de todas é mesmo a falta de liberdade, diz este padre cubano.

Para muitos já estamos em tempo de férias. Para quem não sabe ainda para onde ir, aconselho uma viagem ao mundo do Patriarca Cirilo, de Moscovo. Deve ser um local fantástico! Surreal é certamente. Aqui encontram a análise a algumas das suas mais recentes e extraordinárias declarações e aqui encontram todas as declarações dos principais líderes religiosos relevantes, sobre a guerra na Ucrânia.

A crise no SNS - Outra visão

No seguimento do último episódio do Hospital de Campanha, sobre a crise no SNS, recebemos este comentário muito interessante de uma amiga que é médica, especializada em oncologia e paliativos, e que trabalha num hospital em Trás-os-Montes. Discordando de algumas das coisas que disse o nosso convidado, José Diogo Ferreira Martins, na verdade o comentário da Teresa acaba por complementar muitas das coisas que ele disse e parece-me demasiado importante para ficar apenas na secção dos comentários, pelo que o publico aqui na íntegra, tendo feito apenas um pouco de edição, corrigindo gralhas e eliminando emojis, por uma questão de objecção de consciência.


Mais uma vez ouvi o vosso podcast e gostei muito.

Não concordo com todas as opiniões do colega, mas admiro a fantástica capacidade de manter a humanidade e continuar a acreditar na verdadeira essência do que é ser médico!

Contudo, gostava que parassem de dizer que a crise do SNS vem da fuga dos médicos para o privado! Não é verdade!

A crise do SNS vem do subfinanciamento brutal e da total centralização de todas as decisões!

Nós até não nos importávamos de trabalhar a receber pouco se pudéssemos trabalhar com qualidade e desenvolver projetos que fizessem a diferença para o doente.

A maioria de nós continua a acreditar na beleza e utilidade do sistema público, mas é muito difícil trabalhar com a equipa que é volátil, pois depende de um concurso central.

Pior ainda é ter doentes graves à espera durante meses de um exame porque o aparelho está avariado e o concurso para a sua manutenção caducou.... Doentes com cirurgias adiadas sucessivamente por falta de material... Pedir por favor (como se fosse para a nossa mãe) ao colega que veja em extra um doente urgente e grave... Sim, porque as cunhas não tiram o lugar a outro, pelo menos na minha consulta, acrescentam um doente extra à lista, e tiram-me a hora de ir buscar os meninos à escola!

Cansa trabalhar em gabinetes sem mínimas condições, ter de levar de casa luvas e máscaras (como aconteceu!) ou andar a abanar os tinteiros da impressora para poder imprimir uma receita ou outros milhares de burocracias a que nos obrigam.

Esta narrativa da fuga para o privado tem também alguma demagogia. Por exemplo, este ano acabaram a especialidade de ginecologia e obstetrícia cerca de 20 médicos. O Estado abriu um concurso com mais ou menos 40 vagas. Como é evidente, apenas metade foi preenchida, pois só existiam no país cerca de 20 médicos em condições de concorrer! Como é que isto chega à imprensa? “Apenas metade das vagas para GO no SNS forma ocupadas. Médicos fogem do SNS”

Sobre a Covid, foi extremamente doloroso trabalhar durante estes dois anos, em especial na área em que trabalho, de oncologia e paliativos. Fizemos tudo o possível para combater a solidão e o isolamento, mas deu vontade de chorar todos os dias! Terríveis as enfermarias de "covid paliativos" onde estavam doentes Covid que toda a gente sabia que iam morrer, mas onde não se podia ceder um milímetro nos procedimentos e equipamentos de protecção individual. Ainda agora mantemos regras estúpidas, mas na realidade recuámos 20 anos em termos de humanização hospitalar e vamos demorar a recuperar.

Uma nota quanto à assistência espiritual: de louvar o trabalho de alguns capelães fantásticos que tudo fizeram para se fazer presentes, apesar das limitações, muitas vezes a ter de desafiar as autoridades. Mas o atendimento das necessidades espirituais dos doentes (crentes ou não crentes) é essencial e é das áreas mais negligenciadas! Não é da responsabilidade apenas dos capelães ou famílias, mas dos profissionais, numa perspectiva de ir ao encontro daquilo que dá sentido à vida e é a espiritualidade particular de cada doente. Esta lacuna é uma das maiores causas de sofrimento no final de vida.

Como diz Cassel: "os corpos doem, as pessoas sofrem", e nós medicamos a dor e abandonamos o doente ao seu sofrimento.

Mas isso dava para mais uma longa conversa.



Wednesday 13 July 2022

Repensando a “Liberdade Procriativa”

John M. Grondelski

No rescaldo da decisão do processo Dobbs, que reverteu o Roe v. Wade, os defensores do aborto estão a usar todo o género de tácticas histéricas para sugerir que os juízes que formaram a maioria nesta sentença estão a ameaçar “direitos” e “liberdades”. Apesar de o juiz Samuel Alito ter assegurado que a decisão em Dobbs se restringe ao aborto, os activistas citam a opinião concordante de Clarence Thomas – em que ele ataca o conceito legal do devido procedimento legal, e não os assuntos éticos a que tem sido aplicado – para dar a entender que a seguir vamos ter de viver com leis que proíbem o casamento inter-racial.

Temos de focar esta discussão, com os seus méritos, noutro ponto, mais precisamente no conceito de “liberdade procriativa”.

O conceito de “liberdade procriativa”, desenvolvido pelo Supremo Tribunal, tem sido altamente individualista e em larga medida negativo. Esses pressupostos devem ser contestados, por não terem qualquer base científica e porque têm excluído outros interesses legítimos.

A passagem para um conceito altamente individualista de “liberdade procriativa” começou com Eisenstadt v. Baird, um caso de 1972 envolvendo contracepção. O Supremo Tribunal anulou a proibição não aplicada da contracepção por casais casados em Griswold v. Connecticut (1965), afirmando que o acesso à contracepção é defendido por um direito marital à privacidade.

Contudo, sete anos mais tarde esse mesmo Tribunal anulou uma lei de Massachusetts que restringia o acesso à contracepção para pessoas não casadas. Sem querer discutir os méritos dessa lei, o ponto aqui é a mudança de perspectiva, que passou a ver a procriação principalmente como uma questão individual, devido ao abandono do aspecto “marital”.

Essa abordagem deve ser contestada, em primeiro lugar por estar desprovida de bases científicas. Como Ryan Anderson explica no seu livro “When Harry Became Sally”, o sistema reprodutor é o único dos nove sistemas do corpo humano que não é autónomo. É o único sistema que requer a colaboração de outra pessoa para funcionar. Conseguimos respirar, circular sangue e digerir o nosso jantar sozinhos, mas não podemos procriar sozinhos.

Para além do envolvimento directo de outra pessoa na procriação da vida humana, a cultura ocidental sempre assumiu a existência de um interesse social na procriação. A própria existência e continuidade da sociedade como um todo depende daquilo a que Irving Berlin chamou “fazer o que vem com naturalidade”.

Em 1972 a elite americana acreditou no apelo de Paul Ehrlich para um Crescimento Populacional Zero, não fosse a “bomba populacional” explodir e transformar o mundo no planeta Gideon, da série Star Trek, a abarrotar de pessoas. Ironicamente, como até Elon Musk reconheceu recentemente, a grande ameaça para o ocidente agora é o inverno demográfico.

Esta abordagem individualista à “liberdade procriativa” foi-se afirmando, mesmo quando o Tribunal insistia que estava a fazer o contrário. Assim, em Roe v. Wade, o juiz Blackmum afirmou que “a mulher grávida não pode ficar isolada na sua privacidade”.  (410 US 113 at 159).

Contudo, foi precisamente isso que o Tribunal fez ao longo dos próximos 49 anos, insistindo que o progenitor masculino não tinha qualquer palavra a dizer sobre o destino do seu nascituro, porque o Estado não podia “delegar” nele um poder de veto, o que é uma ideia bizarra, uma vez que a paternidade antecede o Estado e, por isso, não precisa de basear o interesse paterno numa delegação do mesmo.

Assim, o tribunal negou os direitos paternais para aprovar ou sequer tomar conhecimento do aborto de uma criança menor. Aboliu tentativas por parte dos estados para travar a matança dos deficientes, impedindo a proibição de abortos eugénicos, motivados por intenções discriminatórias que seriam absolutamente ilegais um minuto após o nascimento.

No rescaldo de Dobbs, podemos começar a ter esperança na reversão de alguns destes casos que mutilaram os direitos parentais e paternais, legitimando a discriminação pré-natal, em particular contra crianças deficientes e do sexo feminino, como acontece com a esmagadora maioria dos abortos por selecção de sexo.

A invenção da “liberdade procriativa” por parte do Tribunal foi largamente negativa, sobretudo porque até 1978 as pílulas ou os abortos evitavam ou punham fim a gravidezes. Mas esse traço individualista e negativo perdurou, mesmo depois da tecnologia reprodutiva reduzir os pais a dadores de esperma e as mães a dadoras de óvulos ou senhorias de úteros.

Assim, em Davis v. Davis, o Supremo Tribunal do Tennessee, tendo por base os fundamentos não-científicos de Roe, que fingiu que a questão do começo da vida humana não tem resposta, decidiu num caso de divórcio em que se discutia a custódia de óvulos fertilizados, que Junior Davis não podia ser obrigado a “tornar-se” pai. Temos novidades para o Junior… Já és.

A “liberdade procriativa” tem sido apresentada quase sempre em termos de prevenir ou pôr fim às vidas de crianças, conforme os desejos dos adultos.

Porém, o avanço da tecnologia reprodutiva coloca novas questões sobre a “liberdade procriativa” individualista. Se a procriação – não obstante a ciência – deve ser entendida em termos de escolha individual, então nenhuma criança tem direito a ter dois pais, um pai e uma mãe, ou a uma relação genética com esses pais, ou a ser concebido e a vir ao mundo como acontece com crianças desde tempos imemoriais.

As crianças e os seus direitos são subordinados às vontades, preferências e “escolhas” de um adulto, ou adultos. Mas, como disse o antigo Arcebispo de Paris, Michel Aupetit, quando as crianças se tornam “projectos parentais” devem inevitavelmente ser reificados, porque se transformam inelutavelmente em produtos que vão (ou não) ao encontro das especificações de outro.

É isso que nós queremos enquanto sociedade?

Deixando o histerismo de lado, poderá a anulação de Roe remover limites constitucionais à discussão destas questões, incluindo de saber que tipo de sociedade queremos para os nossos filhos?

Entrar nessa discussão levará tempo e esforço, porque há forças poderosas que querem manter o regime de “liberdade procriativa” que culminou em Roe. E muitos outros americanos simplesmente nunca imaginaram, ou não conseguem imaginar outra forma de organizar as coisas.

Mas esse é um esforço imperativo, porque não se trata de uma questão de adultos que, como crianças, insistem em ter, ou exigem o que querem. A questão de fundo é mesmo sobre as crianças.


John Grondelski (Ph.D., Fordham) foi reitor da Faculdade de Teologia da Seton Hall University, South Orange, New Jersey.  As opiniões expressas neste texto são apenas suas.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na Quinta-feira, 7 de Julho de 2022)

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Friday 8 July 2022

A Crise no SNS e a Epidemia na Nigéria

Foi preciso esperar nove episódios, mas no Hospital de Campanha desta semana temos finalmente um médico a sério em estúdio. O José Diogo Ferreira Martins é um crente no SNS, mas isso não o impede de fazer um diagnóstico pessimista. O também presidente da Associação de Médicos Católicos fala ainda das ameaças à objecção de consciência, dos desafios de se viver com fé no mundo da medicina e da forma como a pandemia afectou os cuidados espirituais nos hospitais. Foi uma excelente conversa, vale bem a pena ouvir!

Não será propriamente uma pandemia, mas uma epidemia, pois está sobretudo localizada na Nigéria, mas a onda de raptos e assassinatos de padres está a tornar-se um fenómeno descontrolado. A maioria dos padres acaba por ser libertado, mas nem todos, e o país mergulha cada vez mais no caos e aproxima-se perigosamente do conflito inter-religioso.

 

Mudando de latitude, recentemente conversei com o bispo Jules Boutros. Nunca ouviram falar dele? Pois saibam que aos 39 anos é o bispo mais novo do mundo. Recém-nomeado, pertence à Igreja Católica Siríaca, uma das mais pequenas igrejas de rito oriental na Igreja Católica. Falou sobre a situação da sua comunidade no Líbano, Iraque e Síria, e do drama que é a emigração em massa dos cristãos do Médio Oriente para o ocidente.

 

Do Burkina Faso chega a triste notícia de mais um massacre de cristãos, mas não é só em África e no Médio Oriente que os cristãos são perseguidos. A Nicarágua está a assistir à maior perseguição na América Latina.

 

Como se sabe, os protestantes insistem na doutrina do Sola Scriptura. No artigo desta semana do The Catholic Thing o autor Michael Pakaluk defende a ideia de que numa Igreja ideal nem teríamos registos escritos… Leiam o “Nula Scriptura” e decidam por vocês se ele tem razão ou não.

 

Acaba de ser publicado o livro "Temas de Ética - Reflexões e Desafios", pelo Movimento Acção Ética, e para o qual tive o privilégio de contribuir com um capítulo. O livro aborda 14 temas, o meu explora a ética no jornalismo e nas redes sociais. Sem pretensiosismos, procuro abordar o assunto da perspectiva prática, apontando alguns dos pontos principais a ter em conta num assunto cada vez mais importante.


Morreu o Cardeal Cláudio Hummes, um bispo muito importante para o Brasil e para todo o mundo. Morreu também o padre António Vaz Pinto, um sacerdote que deixou uma magnífica obra na Igreja em Portugal e que certamente descansa agora em paz. 

Thursday 7 July 2022

Hospital de Campanha - Episódio 8: A Crise na Saúde

Foi preciso esperar nove episódios, mas no Hospital de Campanha desta semana temos finalmente um médico a sério em estúdio. 

O José Diogo Ferreira Martins é um crente no SNS, mas isso não o impede de fazer um diagnóstico pessimista ao SNS. O também presidente da Associação de Médicos Católicos fala também das ameaças à objecção de consciência, dos desafios de se viver no mundo da medicina com fé e da forma como a pandemia afectou os cuidados espirituais nos hospitais. 

Foi uma excelente conversa, vale bem a pena ouvir!


Wednesday 6 July 2022

“Nulla Scriptura”

Michael Pakaluk

Os católicos conhecem o argumento de que a “sagrada tradição” é necessária como regra de fé juntamente com a Sagrada Escritura. Não é verdade que é preciso a autoridade da Igreja para determinar o que constitui Escritura (o Cânone)? Aqueles que rejeitam a ideia da existência da autoridade da “sucessão apostólica”, que é explicada na tradição (Clemente de Roma, Inácio de Antioquia), afirmam precisamente que não está nas Escrituras.

Logicamente a Escritura não pode determinar o seu próprio Cânone. Mais, a doutrina protestante da “sola scriptura” (só Escritura) é contraditória, pois ela também não está nas Escrituras.

Mas o que podemos dizer da ideia mais provocatória de que a tradição não só é necessária, como devia até ser suficiente, e que a Escritura devia ser desnecessária? Chamemos-lhe “nulla Escritura” (“sem Escritura”).

Esta visão aparece de forma embrionária no tratado do dominicano Melchor Cano, Fontes Teológicas (De Locis Theologicis, Salamanca, 1562). Cano argumenta, e bem, que a Igreja é anterior à Escritura; que o Senhor não escreveu qualquer livro, nem mandou os Apóstolos escrever livros, mas antes que os mandou pregar, e que muitas questões em que os cristãos têm de crer, como a existência de três pessoas numa só natureza, não estão explícitas nas Escrituras.

Depois refere que Paulo e João, nas suas epístolas, referem os ensinamentos que transmitiram oralmente, mas que não foram escritos, acrescentando que São Pedro escreveu duas epístolas, mas sabemos que ele esteve sete anos em Antioquia e outros 25 em Roma:

Devemos então acreditar que ele não ensinou nada por palavras para além daquilo que deixou por escrito nestas duas epístolas? Como é que é possível? E não é verdade que André, Tomé, Bartolomeu e Filipe fundaram igrejas nos lugares para onde foram enviados, e onde permaneceram, na continuidade da nossa fé e da nossa religião, apenas com base nas palavras e sem quaisquer escritos? Reconheçamos então – nem se pode negar – que a doutrina da fé, na sua totalidade, não está resumida ao que está escrito, mas chegou-nos em parte nas palavras que radicam nos apóstolos.” [Ênfase minha]

A frase é mesmo essa, “sem quaisquer escritos”. Essa foi a condição da Igreja primitiva durante pelo menos trinta anos.

Entretanto encontrei esta mesma posição explanada em mais detalhe na maravilhosa série de 90 homilias sobre Mateus de São João Crisóstomo. Começa assim:

O ideal seria nem precisarmos da Palavra escrita, mas exibir uma vida tão pura que a graça do Espírito devia estar antes nas nossas almas do que nos livros, e que tal como estes estão inscritos com tinta, também os nossos corações deviam estar inscritos com o Espírito. Mas uma vez que afastámos de tal maneira de nós esta graça, pelo menos que nos valhamos da segunda hipótese.

O Santo mostra como Deus falou de modo familiar com Noé, Abraão, Job e Moisés, sem escritos. Mais, a Palavra Incarnada não deixou escritos aos Apóstolos, como poderia ter feito, mas antes lhes prometeu e concedeu o Espírito.

Mas então porque é que temos as Escrituras? Pela mesma razão, diz, que Moisés trouxe as tábuas da Lei, por causa da nossa maldade: “uma vez que, passados os anos, naufragámos, uns em relação à doutrina, outros em relação à vida e às maneiras, houve novamente a necessidade de que fossem recordados pela palavra escrita”.

Tudo isto apenas sublinha a importância actual, diz Crisóstomo, de estudar a Escritura: “Reflictam então sobre como é um grande mal para nós, que devemos viver de forma tão pura que nem precisamos de palavras escritas, entregando os nossos corações, como livros, ao Espírito; agora que perdemos essa honra, e temos necessidade delas, voltarmos a falhar em fazer bom proveito até deste segundo remédio”.

E acrescenta, para encorajar ainda mais o seu rebanho: “Se estamos em falha por precisar do auxílio de palavras escritas, e não termos feito descer sobre nós a graça do Espírito, então considerem quão grave será a acusação de optar por não lucrar até com este auxílio, mas antes tratar com desprezo aquilo que está escrito, como se fosse uma obra sem propósito, aleatória, invocando sobre nós um castigo ainda mais duro”.

Tudo isto faz sentido. O Espírito está connosco, tão certo como o Filho estava connosco na Fundação da Igreja. Mas porque é que a Sua presença, que em princípio nos devia bastar, não nos basta na prática?

Não podemos regressar às primeiras décadas da Igreja, mas podemos pensar na vida cristã como estando estratificada. Imaginem, primeiro, que tudo o que está escrito nos era retirado. Não só a Bíblia, mas todos os escritos dos Concílios, isto é, a tradição entretanto escrita. Continuamos com consideráveis riquezas. Tiramos delas o melhor proveito?

O que é que quero dizer com isto? Quero dizer que conhecemos o Credo, as orações mais básicas, o terço. Podemos ir ao sacrário e rezar diante do Senhor. Logo veremos que precisamos de rezar muito mais, para nos tornarmos mais familiares com Deus. E que devemos praticar a mortificação, para criar aberturas para o Espírito.

Temos os exemplos dos santos, cujas vidas conhecemos. Provavelmente temos conhecimento de milagres entre os nossos amigos. Mesmo a existência de bispos, seja qual for a sua santidade, testemunha a realidade da fundação da Igreja. Qualquer padre é um testemunho da instituição da Eucaristia.

E temos os sacramentos.

Tente viver assim no Espírito. Agora acrescente a Escritura e a tradição escrita. Claro que estes estratos não são temporais, nem isoláveis, mas cada um tem por objectivo complementar o outro.

Podemos até argumentar que o conceito de “sola scriptura” apenas poderia parecer uma regra necessária para os reformadores protestantes porque os católicos daquela altura claramente não estavam a viver de forma suficiente a fé “nulla scriptura”.


Michael Pakaluk, é um académico associado a Academia Pontifícia de São Tomás Aquino e professor da Busch School of Business and Economics, da Catholic University of America. Vive em Hyattsville, com a sua mulher Catherine e os seus oito filhos.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na quarta-feira, 6 de Julho de 2022)

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The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing.

 



Tuesday 5 July 2022

Temas de Ética - Reflexões e Desafios

Foi um enorme privilégio ser convidado para escrever um capítulo do livro "Temas de Ética - Reflexões e Desafios", publicado recentemente pelo Movimento Acção Ética.

O livro contém 14 capítulos sobre variados temas, o meu explora a ética no jornalismo e nas redes sociais. Sem pretensiosismos, procuro abordar o assunto da perspectiva prática, apontando alguns dos pontos principais a ter em conta num assunto cada vez mais importante. 

O livro está à venda nas livrarias e através do site do MAE. Toda a informação aqui.

Outros temas abordados no livro são a objecção de consciência, relações internacionais, desporto, política e medicina. Podem ler o índice aqui.

Lista completa de autores: André Azevedo Alves, Isabel Almeida e Brito, Filipe Almeida, Filipe d’Avillez, José Carlos Lima, João César das Neves, José Manuel Moreira, Manuel Monteiro, Margarida Góis Moreira, Margarida Machado Gil, Margarida Mateus, Maria da Glória Garcia, Maria do Céu Patrão Neves, Marta Lince Faria, Paulo Otero, Pedro Afonso e Pedro Vaz Patto, assinam os catorze artigos, a maioria a título individual, alguns em co-autoria.

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