Antes sequer de começar, eu sei que estes rótulos “conservador”
ou “liberal” são muito redutores. Mas por outro lado também são indicativos,
desde que nos lembremos que são estereótipos, e tenhamos algumas reservas.
O problema é que conservador abarca tanto as pessoas que são
ultra-tradicionalistas como outras que simplesmente estão com a Igreja em
questões fracturantes como o aborto, casamento, ordenação de mulheres etc.
Dito isto, muitas pessoas têm dito que este documento, à
imagem de todo o pontificado, tem posto os conservadores “nervosos”. Os
conservadores, por seu lado, sobretudo os mais conservadores, fazem logo questão
de desmentir e insistir que não há aqui nada de novo.
Nem tanto ao mar nem tanto à terra. É verdade que muitos
conservadores sustêm a respiração cada vez que o Papa diz ou escreve alguma
coisa. É uma questão de hábito, também… estavam habituados à total segurança de
Bento XVI e com Francisco há surpresas. Mas às vezes a ginástica torna-se
absurda, como quando alguns insistiram que nesta exortação não há qualquer
crítica ao capitalismo, porque o Papa nunca menciona a palavra capitalismo…
please!
Vejamos então algumas passagens.
“A quantos sonham com
uma doutrina monolítica defendida sem nuances por todos, isto poderá parecer
uma dispersão imperfeita; mas a realidade é que tal variedade ajuda a
manifestar e desenvolver melhor os diversos aspectos da riqueza inesgotável do
Evangelho.” (#40)
A questão aqui é que, por mais que isso custe a alguns, a
Igreja é de facto uma casa de variedades. Poderão dizer, sim, é certo, mas ao
menos em relação à doutrina não há dúvidas. O Papa aqui não usa a palavra
dúvidas, mas usa nuances… é mais neutro. Doutrina só há uma, mas como a
entendemos? Como a ensinamos? A Igreja não ensina que há hierarquias de
verdades? Penso que será essa a janela que o Papa está a abrir aqui.
“Por vezes, mesmo
ouvindo uma linguagem totalmente ortodoxa, aquilo que os fiéis recebem, devido
à linguagem que eles mesmos utilizam e compreendem, é algo que não corresponde
ao verdadeiro Evangelho de Jesus Cristo. Com a santa intenção de lhes comunicar
a verdade sobre Deus e o ser humano, nalgumas ocasiões, damos-lhes um falso
deus ou um ideal humano que não é verdadeiramente cristão. Deste modo, somos
fiéis a uma formulação, mas não transmitimos a substância. Este é o risco mais
grave.” (#41)
“O risco mais grave”… Isto não é brincadeira. E isto sim é
algo que eu identifico com alguma facilidade no “campo” conservador. A rigidez
da defesa da doutrina, sendo louvável em si, não pode abafar a surpresa e a
frescura que deve ser a mensagem cristã. Conhecer Cristo tem de ser mais do que
simplesmente ter a fórmula certa na cabeça e observar os rituais.
Podem até ser belos,
mas agora não prestam o mesmo serviço à transmissão do Evangelho. Não tenhamos
medo de os rever! Da mesma forma, há normas ou preceitos eclesiais que podem
ter sido muito eficazes noutras épocas, mas já não têm a mesma força educativa
como canais de vida. (#43)
Nalguns, há um cuidado
exibicionista da liturgia, da doutrina e do prestígio da Igreja, mas não se
preocupam que o Evangelho adquira uma real inserção no povo fiel de Deus e nas
necessidades concretas da história. Assim, a vida da Igreja transforma-se numa
peça de museu ou numa possessão de poucos. (#95)
Lamento, mas esta é uma forma querida e simpática de o Papa
dizer aquilo que muitos de nós, e uso o “nós” de propósito, temíamos. Francisco
está a falar precisamente das tradições de que tanto gostamos e que ao longo
das últimas décadas têm sido abandonadas. Liturgias elaboradas, ritos
diferentes e antigos, dos incensos aos paramentos pretos… E fala também de
outras curiosidades que Bento XVI estimava mas que Francisco mostrou desde cedo
não querer. Os sapatos encarnados, os mil e um apetrechos que, de facto, fazem
parte da história e da cultura da Igreja.
Mas não demos um passo maior que as pernas. Francisco não
tem paciência para estas coisas, mas não diz que devemos enterrá-las, como
muitos andam a tentar fazer desde o Concílio, baseando-se no tal “espírito”
vago, que não está na letra dos documentos.
E por isso mesmo, esta atitude do Papa e as suas palavras
não deixam de ser absolutamente certeiras. Porque para muitos os paramentos, os
incensos, as liturgias, a língua e a orientação do padre deixaram de ser setas
a apontar no sentido de Cristo e passaram a ser o próprio objectivo e destino.
O Papa não nos diz que estas coisas são más em si, só nos diz que na medida em
que não contribuem para iluminar o caminho para Cristo, são dispensáveis.
E não iluminam? Nalguns casos, provavelmente não. Noutros,
sim. É esse discernimento que é preciso saber fazer. Não guardar a tradição só
porque é antigo e tradicional, mas sim na medida em que contribui para o
conhecimento da verdade.
A todos os que sentem agora a tentação de citar estas
palavras para celebrar liturgias francamente feias, e igrejas que mais parecem
contentores e armazéns, não esqueçamos que o mesmo Papa, neste mesmo documento,
pede liturgias belas. Para Jesus o melhor, só o melhor. O melhor tem muitas
formas e feitios. Não tem de ser sempre igual e parado no tempo. Mas é sempre
belo.
A Eucaristia, embora
constitua a plenitude da vida sacramental, não é um prémio para os perfeitos,
mas um remédio generoso e um alimento para os fracos. Estas convicções têm
também consequências pastorais, que somos chamados a considerar com prudência e
audácia. Muitas vezes agimos como controladores da graça e não como
facilitadores. Mas a Igreja não é uma alfândega; é a casa paterna, onde há
lugar para todos com a sua vida fadigosa. (#47)
Esta foi uma passagem que levou muita gente a pensar que o
Papa preparava terreno para permitir que os divorciados recebam os sacramentos.
Eu também a assinalei por causa disso. Contudo, na sua mais recente entrevista,
publicada pelo “La Stampa”, o Papa desmente essa ideia e diz que não era isso
que queria dizer, que pensava mais especificamente na situação de quem recusa
baptizar filhos de mães solteiras e que, no caso dos divorciados “recasados”, o
impedimento de comungar não é uma sanção.
A outra maneira é o
neopelagianismo auto-referencial e prometeuco de quem, no fundo, só confia nas
suas próprias forças e se sente superior aos outros por cumprir determinadas
normas ou por ser irredutivelmente fiel a um certo estilo católico próprio do
passado. É uma suposta segurança doutrinal ou disciplinar que dá lugar a um
elitismo narcisista e autoritário, onde, em vez de evangelizar, se analisam e
classificam os demais e, em vez de facilitar o acesso à graça, consomem-se as
energias a controlar. (#94)
Nada a acrescentar a estas palavras, que são muito
claramente direccionadas a um estilo de tradicionalistas que, infelizmente,
cumpre criteriosamente cada ponto da descrição.
A diversidade deve ser
sempre conciliada com a ajuda do Espírito Santo; só Ele pode suscitar a
diversidade, a pluralidade, a multiplicidade e, ao mesmo tempo, realizar a
unidade. Ao invés, quando somos nós que pretendemos a diversidade e nos
fechamos em nossos particularismos, em nossos exclusivismos, provocamos a
divisão; e, por outro lado, quando somos nós que queremos construir a unidade
com os nossos planos humanos, acabamos por impor a uniformidade, a homologação.
Isto não ajuda a missão da Igreja. (#131)
Esta passagem é muito importante para os nossos dias, quando
os novos meios de comunicação tornam cada vez mais fácil encontrar quem pensa
como nós e assim formarmos grupinhos e grupetas, cuja legitimidade
reivindicamos em nome da diversidade.
Por outro lado, não deixa de ter piada ver a ala mais
liberal a exigir o fim sem tréguas de tudo o que é movimento e grupo mais conservador,
contrariando precisamente essa diversidade que, supostamente, tanto prezam.
O Papa dá aqui uma resposta que desarma ambos esses
excessos. A diversidade e a unidade não são incompatíveis… Desde que
verdadeiramente inspirados pelo Espírito Santo. E essa confirmação vem-nos pela
oração, antes de mais, mas vê-se também nos frutos. De resto o Espírito Santo
não é monopólio nem de conservadores nem de liberais, mas serve os propósitos
de Deus, sempre.
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